Bem diferente das imagens comuns de uma Amazônia verde e em certo estado de dádiva ou prenhez eterna, com rios de dimensões martítimas, Enquanto o Céu Não Me Espera apresenta uma vida ribeirinha cinza e claustrofóbica, apesar de toda amplitude, e progressivamente esmagada entre dois espelhos: o céu sobre a cabeça e o Rio Negro sob os pés.
Apostando num futuro de cheias cada vez mais agressivas para a região, o filme nos apresenta uma família que vive num palafita no interior do Amazonas, tirando sustento do cultivando juta, planta que se adapta melhor a ambiente tropicais úmidos e da qual se retira uma fibra que pode receber diversos usos, principalmente têxteis. Neste sentido, a realidade de Vicente – interpretado por Irandhir Santos – mesmo neste futuro distópico, acaba não diferindo muito das histórias de antigos soldados da borracha de séculos antes. Escravizado pela própria insalubridade da relação entre trabalho e território, e principalmente pelas dívidas assumidas com um patrão cuja autoridade mais parece a de um capataz, Vicente absorve a brutalidade como modo de navegação social e na construção deste núcleo de relações o filme de Christiane Garcia remete a um clássico do cinema nortista sobre a dureza da vida ribeirinha: Brutos Inocentes (1973), dirigido por Líbero Luxardo, com Zózimo Bubul no papel principal.
No contraponto dessa brutalidade encontramos Rita (muito bem interpretada por Priscila Vilela), esposa de Vicente e matriarca da família em cuja casa acompanhamos a subida do rio como transposição imagética das tensões sociais do contexto ribeirinho amazônico, mas também da história desse casal. Mesmo com todas as dificuldades em manter a família nutrida e segura, Vicente teima em permanecer na casa enquanto Rita acredita que a solução seja partir.
Na esteira do adensamento desse conflito, o filme entrega diversas imagens da água como espelho e figura ligada ao transbordar de sentimentos, concentrados especialmente em Rita, personagem que já percebeu a queda do céu e não suporta mais a condição sufocante daquela vida submersa em melancolia. Vale destacar essa figuração da água como condição melancólica numa metáfora da atitude calada e ensimesmada do caboclo amazônida, lindamente representadas aqui.
Ainda que seja louvável a coragem técnica para realização de um filme praticamente gravado dentro d’água, a mercê dos humores do Rio Negro e da grandiosidade da natureza amazônica, para uma história que pensa o futuro da região, suas escolhas formais expressam a tradição de um cinema antigo e masculino, apesar da direção feminina de Christiane Garcia. A maior expressão dessas escolhas está na cena do estupro marital, que não possui função narrativa para além da reiteração de uma crueldade que se quer naturalizar, ao confundir a crueza do entorno à dureza de uma alma ribeirinha, que não encontra reflexo numa observação atenta. Mais um filme que escolhe repercurtir imagens de estupro, numa chave que parece buscar respostas para a estupidez humana, mas acaba esbarrando na reafirmação da cultura da violência sexual e de gênero.
Que os espelhos da realidade amazônica possam se valer das múltiplas possibilidades da fabulação para seguir contando histórias sobre essa região tão plural quanto desconhecida, trabalhando a delicadeza das epistemologias caboclas e apontando para um futuro em que séculos de manejo de vida fluvial possam gerar imagens prenhes de futuros possíveis.
Visto na Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília
A relação do cinema com a palavra – escrita, falada, intencionada – é inerente à linguagem dos filmes narrativos e condensa seu rumo após o cinema das atrações. Seja pela relação direta como cartelas que comunicam intenções, sentimentos e caminhos de um filme sobretudo na fase do “cinema mudo” indo daqueles que mais investiram no lirismo das imagens como Dreyer ou daqueles que usavam palavras como um complemento às ações corporais como Chaplin e Buster Keaton. Há outros, como Jonas Mekas ou Hollis Frampton, que usufruíram da força das letras e palavras para comunicar, ou aqueles como Godard, que pagam tributo à palavra pela força da leitura, ou como Straub e Huillet, que transformam o exercício de compreensão em beleza. Ausência de explícita comunicação como forma de tensão narrativa e de representação, como são os casos de Chantal Akerman e James Benning, por exemplo, também perpassam a relação das imagens e da comunicação.
Se hoje é possível vermos uma teia de elementos de comunicação em um só plano em filmes como Unseen (Yoko Onomura, 2023), Desaparecida (Missing, Nicholas D. Johnson, Will Merrick, 2023) e Unfriended (Levan Gabriadze, 2014) na junção da palavra, mensagem de textos, imagens de desktop com o desenrolar da trama, chamam atenção dois realizadores contemporâneos que, de formas distintas, realçam a relação com a palavra e o verbo. A realizadora argentina Lucía Seles, de carreira prolífica e de método rígido em relação ao desenvolvimento de trama e construção de personagens, e o norte-americano Charles Roxburgh, que baseia suas comédias na verborragia e no como ela molda o cotidiano absurdo de seus personagens.
São dois realizadores que residem em extremos opostos quando pensamos em construção e efeitos. Seles desenvolve suas tramas como contos passíveis de seus próprios comentários. Eles vêm em frases escritas na tela, tal qual uma mensagem de texto em um desktop movie. Ela comenta o caminho dos personagens, as locações, as reviravoltas e, claro, seus próprios métodos. Já Roxburgh utiliza de formas estabelecidas na sociedade moderna, como propagandas para televisão, espetáculos de stand up-comedy ou palestras, para dialogar com situações que se costuram muito bem com o subúrbio americano, local no qual seus filmes se desenvolvem.
Roxburgh sempre trabalha em parceria com Matt Farley, protagonista de todos os seus filmes e que dirigiu Local Legends: Bloodbath (2024), longa-metragem que serve como representação satírica do pequeno núcleo que representa o cinema independente, sobretudo dos realizadores que usam de seus arredores e amigos para filmar e, que no primeiro lampejo de reconhecimento, entram em crise. Farley simplesmente utiliza das cartelas para afirmar que se trata de um filme de Roxburgh, ou seja, não há grandes mudanças nos métodos de composição. Bloodbath parece sair do mesmo mundo de Boston Johnny (2023) e Heard she got married (2021), estes sim dirigidos por Roxburgh, que está no elenco do novo filme de Farley.
Em comum, Seles e Roxburgh têm seus próprios universos desenvolvidos pelas palavras. Em Seles vemos os mesmos atores, personagens, locações e que aos poucos passam por mutações como uma série de filmes que muda de temporada, a exemplo da “tetralogia do tênis” composto por Smog en tu corazón (2022), Saturday disorders (2022), Weak rangers (2023) e Terminal Young (2023). O método de Seles segue intacto em seus mais recentes filmes como The Urgency of Death (2023) e Escuela Privada Alfonsina Storni (2024), mas o que chama atenção desta primeira “série” são as respostas vindas na mesma forma que seu método como vemos nas reações do público via Internet registradas pela Revista Caligari:
Roxburgh recomeça suas intrigas a cada filme, porém, como Seles ou Sang-Soo, seus métodos e referências dizem mais que os próprios personagens ao (re)compor seu mundo no subúrbio norte-americano. Frequentemente composto por relações do “dizer”, ou seja, recontar o que foi dito e, neste ato, ter tempo para ouvir as palavras escutadas com mais – ou menos, dependendo do caso – atenção e caminhar, durante o filme, para embates envolvendo situações passadas, Roxburgh condensa a vida cotidiana e seus pequenos curtos-circuitos. Seja em uma promessa feita que é obrigada a ser descumprida e que levará às mágoas de um homem a explodir, ou um homem apaixonado que tocará suas músicas em um restaurante para conquistar o seu amor e renega a força de uma boa conversa, o diretor cria teias de relações de caos e bonança com o humor que lhe é característico e que dá espaço para seu protagonista-parceiro Farley refazer seus caminhos e ironizar este feito.
O que difere de Farley a emular Roxburgh com John Turturro a fazer um filme de Woody Allen em Fading Gigolo (2011) ou Alfonso Arau em Picking up the Pieces (2000) por exemplo, é como sua frontalidade é passível de mudanças suaves como um divertido jogo dos sete erros. A pergunta é justamente se Roxburgh se comunicaria da forma que Farley ou se teríamos uma abordagem distinta. Este ruído que é intuitivo entre Roxburgh e Farley toma corpo na filmografia de Lucía Seles que utiliza de espaços coletivos – clubes, colégios – e pauta o espectro social e as distorções e repercussões das palavras ditas ou intencionadas. Como uma grande ação do ver e ouvir, Seles se permite intervir como uma ouvinte sentada à mesa com aqueles que contam a história, com seus braços cruzados e com frieza cirúrgica pronta para rebater o que se vê e o que se diz, ou, simplesmente, assumir suas identificações com personagens, espaços, situações e emoções. Dois casos ricos do cinema contemporâneo sobre a plurivalência do ensejo, mesmo quando se assume como diversão domesticada – ou poesia do mundo capitalista e que produzem em alta escala pois têm muito a dizer. Como um dos personagens de Local Legends diz: “você faz filmes com mais velocidade do que eu para vê-los”.
Se para Chris Marker e Alain Resnais as estátuas também morrem, para Mati Diop, elas vivem e sofrem eternamente com a dessacralização atrás das vitrines dos museus. “O museu ocidental se baseia em crimes”, clama Françoise Vergès. Mas, se mesmo devolvidas para suas nações de origem, estátuas produzidas por nações africanas continuam condenadas à escuridão sem fim das salas de palácios e museus, há espaço para a utopia emancipatória da descolonização?
Em Dahomey, a diretora franco-senegalesa resiste a responder qualquer uma dessas questões. Ao documentar o retorno de 26 tesouros roubados do antigo Reino de Dahomey – atual Benin – pelos franceses, Diop prefere dar voz aos estudantes da Universidade Abomey-Calavi e às próprias estátuas ao invés de patronear a discussão com a voz-off que caracteriza o tradicional documentário dito decolonial.
O tom do relato, no entanto, está longe da neutralidade do documentário jornalístico. Entre imagens de trabalhadores que catalogam e embalam as estátuas e filmagens da celebração do povo do Benin em recepção aos tesouros roubados, Diop destaca a forma como a grande imprensa local estampa as capas de seus jornais: fotos de Emmanuel Macron e do presidente beninês Patrice Talon roubam o espaço e o crédito dos militantes que lutaram pelo retorno durante séculos.
A discussão ganha forma nas palavras dos estudantes beninenses, cujas falas dão nome ao crime colonial: após o espólio francês, uma fração das obras desenraizadas retornam a um país desigual que ainda carrega, em todos os seus aspectos sociais, as cicatrizes do colonialismo. Como celebrar uma pequena vitória nacional sem se enganar sobre as verdadeiras intenções políticas e diplomáticas por trás delas? Como falar da violência na língua do dominador? É notável que a voz profunda da estátua do Rei Guizo de Dahomey não se expresse na opressiva língua francesa, mas em Fon.
A voz da estátua se mistura com a trilha de Dean Blunt e transforma a ausência de imagens que toma conta de boa parte do documentário – a escuridão da sala do musée du quai Branly Jacques Chirac, em Paris, da caixa de transporte e do Palácio da Marina, em Cotonou – em algo de virtuoso ou sagrado.
O resultado é um filme que evita o insulto que seria uma produção francesa que observa de cima os desdobramentos de um crime francês, ao filmar de forma horizontal, igualando as vozes de jovens locais – que ditam o futuro daquelas figuras – à voz das estátuas, que, libertas do passado de espólio, retornam à superfície do tempo.
VISTO NA 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO
Cunhado pelo teórico Tom Gunning, o termo “cinema de atrações” relacionava o desenvolvimento do chamado “primeiro cinema” com forças além da narrativa, ou seja, além dos fomatos de contar uma história. Números musicais, música ao vivo, performances ou cenas extraordinárias que ressignificavam o espaço da sala de cinema e do tempo nos filmes. O termo passou por atualizações e seu grande estudo se dá em Cinema of Attractions Reloaded (2006), livro organizado por Wanda Strauven com textos de André Gaudreault, Thomas Elssaesser e do próprio Gunning. A atualização do termo de Gunning passa pela noção que o espectador garante o ingresso esperando por um momento específico do filme quando falamos do cinema “de gênero”. Uma sequência de ação com perseguições, tiroteios, cenas de brigas e explosões estão no cardápio daqueles que vão ao cinema para ver um filme de ação ou os efeitos especiais daqueles interessados pelo sci-fi, por exemplo. O mesmo serve para os números musicais ou a morte do vilão em musicais e em filmes de horror, respectivamente.
Já Coringa: Delírio a Dois é um caso minimamente curioso do que chamamos de “atração”. À priori, o longa de Todd Phillips aparenta uma postura subversiva principalmente se lembrarmos de seu início de carreira do realizador com Hated (1993) e Frat House (1998). Num primeiro encontro com o filme, além da ideia de alteração de forma e levantando possíveis relações com filósofos que desenvolveram questões sobre forma inteligível, infraestrutura e afins, o que parece mais interessante, porém, é como o filme parece um interlúdio. Naturalmente o que se espera de seu personagem virá, mas por vias completamente incalculáveis para os que seguem as normas das “atrações”.
Àqueles que esperavam uma linha de moderação narrativa que implicitamente carrega exigências comerciais, um filme anódino como este, a julgar sua fanbase, é um desgosto. Porém, aos interessados em questões comportamentais e psicológicas além de costurar referências da HQ e buscar “veracidade” nas comparações entre filme e gibi, o filme de Phillips tem uma sustentação: o hino do triunfo. Da mesma maneira que Arthur Fleck desce as escadas a dançar no primeiro Coringa, neste, com o protagonista apaixonado, se dá num estado de espírito que coloca a autoestima como impulsor. É pelo desejo que o homem canta, dança, imagina e cria um universo onírico e muito particular depois de anos de escuridão. E aqui o termo de Gunning ganha um peso singular, afinal, o que se espera de Fleck é o caos tantas vezes traduzidas em imagens, porém Phillips toma caminho inverso.
Desde sua estreia em Veneza se fala sobre “sabotagem” com o próprio universo, de decepcionar os fãs gratuitamente e como a franquia perderá forças. No entanto, o atravessamento de um sentido tão extremo quanto as aparições do Coringa feito à base de um sentido excluído deste universo – ainda que estes homens possuam fragilidades, elas logo são contornadas ou transformadas em alguma forma de violência como estudo – é no mínimo interessante como preparação para uma próxima jogada, afinal falamos de uma “franquia”. Por mais que Lucrecia Martel e sua trupe tenham premiado o primeiro filme em Veneza ou nas incontáveis comparações com Scorsese e até Chantal Akerman e que este novo tenha levantado comparações a Demy e A Star is Born, musical de Bradley Cooper estrelado pela própria Lady Gaga, esta noção segue intacta. O deslocamento inesperado é como um interlúdio, um recorte muito específico de tempo da vida de Fleck, uma espécie de respiro antes de uma nova ação – que Phillips sabiamente deixa em aberto. No antro de filmes pasteurizados feitos em piloto automático, atravessa-los vulgarmente como irônico comentário acerca da leitura deste subgênero é interessante. É jogá-lo numa caixa destoante e igualmente incômoda para muitos e com lacunas suficientes para infinitas comparações, referências e levantá-lo novamente à estante de “filme de arte” – o que só parece interessante para aqueles que faturam com isso. Falamos de indústria, novamente. Eis a grande piada de Todd Phillips para colocar “um sorriso no rosto”.
Petrus Cariry é um diretor de carreira muito particular no cinema brasileiro contemporâneo. Dono de um universo próprio com referências concomitantes ao campo lírico e imagético e versátil o bastante para mudar abordagens, gêneros e formas de registrar as ruínas da existência. Seu mais novo filme Mais pesado é o céu foi lançado recentemente nas salas do Brasil e conversamos sobre sua filmografia, abordagens, ruínas e, claro, o que está por trás do filme: um país distópico.
Multiplot: Petrus, obrigado por aceitar o nosso convite. Da primeira vez que o entrevistei, há mais de dez anos, na ocasião do lançamento de Mãe e Filha (2011), conversamos sobre as locações do filme, que também aparecem no seu curta Dos Restos e das Solidões (2006). Ambos os filmes abordam temas como a morte e o fim. Muitas coisas aconteceram no Brasil desde então, e Mais Pesado é o Céu (2023) me traz a sensação de um retorno indesejável ao mesmo ponto, ainda que sua roupagem ensolarada possa sugerir, à primeira vista, algum avanço social e existencial. O que, nesse intervalo de tempo, foi somado ao seu imaginário para criar uma forma de imersão inédita em sua filmografia?
Petrus: O filme Dos Restos e das Solidões serviu como um ensaio para a realização de Mãe e Filha – nesse longa tínhamos uma cidade fantasma, em ruínas, com uma velha que deposita sua esperança em um futuro por meio de um neto que está morto, mas que ela parece negar essa realidade. A protagonista rompe com essa inércia. Em Mais Pesado é o Céu, temos o mesmo sertão, um não-lugar à beira da estrada, onde os personagens surgem dos escombros de suas próprias ruínas, ou melhor, são vítimas de um país arruinado. O progresso parece trafegar nos carros que transportam mercadorias, no posto de gasolina, mas a miséria que exclui milhares de pessoas de qualquer bem-estar social continua. Esse filme foi feito no final da pandemia, quando ainda vivíamos sob um governo quase fascista, numa situação opressora, distópica. Os personagens imaginam ser a família que não são, lutam por sobras para sobreviver, submetem-se a trabalhos pouco dignificantes, onde sofrem violências machistas, entre outras coisas. No final, como em Mãe e Filha, há uma ruptura.
Multiplot: Sua filmografia lida diretamente com a ruína existencial e frequentemente utiliza o horror em suas frestas – ou frontalmente, no caso de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015) – enquanto o lado social, em diversas formas, serve como sustentação para as tramas. Em Mais Pesado é o Céu, parece haver um equilíbrio entre essas duas frentes. Seria essa uma mudança de chave na composição das fissões de um mundo particular e arruinado?
P: Muitos pensadores pós-modernos trabalham com o conceito de “ruínas”, de uma civilização em grande crise, tanto cultural quanto existencial. Eu trabalho essa crise, esse mal-estar, em Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, com uma relação de uma mulher contra o patriarcado, o peso do passado que ela precisa se livrar, mostrado em um flerte com o horror. Em Mais Pesado é o Céu, temos o horror da própria realidade que vai se construindo como algo insuportável; se temos a intimidade de um casal perdido que alimenta sua esperança em uma criança que surge do nada, temos também o apontamento para uma situação social mais grave.
Multiplot: Falando nisso, há a noção de um falso road movie. Todas as suas alegorias do gênero estão lá, mas o deslocamento leva sempre ao mesmo ponto. Gostaria de saber como a estagnação ganhou uma relação gráfica diferente em Mais Pesado é o Céu, se ela já era um contorno definido no desenvolvimento do filme.
P: Sim, pode ser percebido como um “falso road movie”, no sentido de que temos uma estrada que vem de algum lugar e se dirige a outro, mas os personagens estão à margem dessa estrada, à margem da sociedade, à margem da vida, quase impedidos de ter um futuro. Daí a geografia, o peso da natureza, com sua poética e beleza insólita, esmagando o homem e desprezando a estrada. Daí as águas do Castanhão que submergiram o passado e algum momento de felicidade, tornando-se memória. Todos esses elementos dão o tom que ajuda na elaboração estética do filme.
Multiplot: Creio que este é o seu filme com maior investimento e também o mais direto em termos narrativos. A poesia atravessa o filme, a meu ver, mas sua relação com pais e filhos – e a figura do natimorto – segue intacta. Poderia falar um pouco mais sobre essas figuras tão importantes em seus filmes?
P: Esse filme foi um grande desafio, pois minha ideia era realizá-lo com todo o rigor técnico e busca estética, apesar dos recursos de um baixo orçamento. A Bárbara Cariry ajudou muito nesse sentido, otimizando os recursos e viabilizando possibilidades para que eu pudesse realizar o filme. A história, embora tenha voos e possibilidades poéticas, no sentido de novas percepções sensíveis, tem uma base realista. Em quase todos os meus filmes, trato dessa questão da família como um microcosmo da sociedade, a partir de um insight mais sociológico, eu diria até antropológico, no sentido de que os conflitos familiares na totalidade, e no sertão em particular (por conta da força do patriarcalismo), moldam as pessoas de forma traumática. Quase sempre trabalho com personagens femininas muito fortes, que geralmente rompem com a situação opressiva ou buscam saídas. São mulheres fortes e sensíveis ao mesmo tempo. Talvez representem a possibilidade de um novo tipo de família, não patriarcal e não nuclear.
Multiplot: Há uma particularidade neste filme em relação aos outros longas: é possível ver instâncias diferentes de ruína. Nelas, os protagonistas flutuam, e a deterioração da condição humana é mais gráfica. Lembro-me de Clarisse, que pode ser uma exceção, mas gostaria de saber como foi o seu processo de criação deste mundo menos alusivo na parceria com Rosemberg Cariry e Firmino Holanda.
P: Nesse filme, escrevi um argumento desenvolvido, com escaleta. Depois, o Rosemberg fez um primeiro tratamento do roteiro e chamamos Firmino para os tratamentos seguintes, com ótima contribuição. Firmino, além de ter muita noção da dramaticidade de um roteiro, é também um ótimo argumentista. Rosemberg é um grande conhecedor do sertão e da realidade brasileira. Eles trabalharam a partir da minha ideia inicial e da minha proposta para o filme, mas houve, no percurso, uma transformação por conta da difícil realidade que o país vivia. Primeiro pensei em um filme solar, menos duro na abordagem da realidade, mas o “espírito da época” era realmente sufocante e tudo se encaminhou para o resultado que hoje vemos na tela. Um filme é sempre isso: um processo, em que o que acontece na sociedade termina também influenciando nosso processo criativo.
Do cinema de Werner Herzog a relação intrínseca com a natureza é uma de suas maiores características, tanto na construção ficcional a usando com as mais diversas representações, como em sua ampla filmografia como realizador de documentários. Herzog, independentemente do dispositivo que parte, cria relações do etéreo com o material de formas que vão do sobrenatural à radicalidade selvagem. Apesar de servir como referência-máxima para o uso de diferentes metodologias no cinema do diretor alemão, é sempre pertinente lembrar da relação cruel de poder e violação que envolve transpassar um navio por uma montanha em Fitzcarraldo (1982). Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), o olhar para a pré-história e as formas de comunicação analisadas originalmente em experiência 3D completa a proposta do uso do que é natural unido ao corpo – do que escreve e do que assiste – para a comunicação feita por desenhos à priori, mas que ao longo dos tempos ganhou a forma de gesto. São diversos os exemplos de relação entre Herzog e a natureza e seus eventos (extra) ordinários como em The Fire Within (2022), Aguirre (1972) ou Lessons of Darkness (1992), porém em alguns de seus trabalhos Herzog mostra-se dono de uma crueldade singular quando rechaça a força da observação naturalista do espaço e seus personagens.
É do tempo, dos mais complexos meios dimensionais de nossa existência, que o diretor parte para a relação com seu assunto e seus protagonistas. Um díptico produzido no início da década de 2000 representa muito bem este caminho tomado pelo realizador: The White Diamond (2004) e O Homem Urso (2005), este último exemplo de retorno inesperado para Herzog, o que nos leva à relação do humano com o trágico, com a morte. A natureza do humano é estudada por este meio. Herzog, assim, usa sua câmera como o principal recurso para a quebra geral de funcionamento do tempo, da vida, do espaço. Da mesma maneira que Eduardo Coutinho sinalizava certa distância de seus entrevistados (ou seja, de sua matéria-prima) afim de evitar um desvio comportamental, como mostrado em Apartamento 608 (Beth Formaggini, 2009), Herzog o leva para outro extremo. Porém, não se trata de manipular o conceito de um filme, mas sempre de questionar o que se fala e o que se faz, uma ação sugerida tanto para quem vê e ouve como para quem fala.
Timothy Treadwell, o “homem urso” por si quebra a natureza da observação. Como operador da câmera e ciente do destino que suas imagens terão – seus documentários -, mudava a dinâmica do real ao apertar o “rec.”. Se tornava, antes de tudo, um performer. A mistura de apresentador de TV e uma estrela pop. O longa de Herzog parte da morte de Treadwell para entender, em retrospecto, o comportamento do protagonista nos últimos treze verões na natureza selvagem até o fatídico dia que Treadwell foi atacado por um urso, este que também vitimou Amie Huguenard, namorada de Treadwell. A dinâmica do natural é mudada tão radicalmente que Herzog questiona se a vítima de alguma maneira preservou a câmera para que ela registrasse o seu fim, ou seja, que o espetáculo continuasse mesmo que seu corpo fosse destruído. E, obviamente, empurra o espectador e seu gosto pelo mórbido contra a parede. Não se trata de questões moralistas, pois Herzog nunca tomara este caminho.
O Homem Urso (2005)
A metodologia de White Diamond e Homem Urso é a mesma: o comentário de Herzog se dá no silêncio e como ele também é inerente à natureza como uma forma de comunicação. Quanto maior o silêncio, mais incisivo é o comentário do realizador, e em boa parte das vezes maior é a necessidade dos personagens de agir em frente à câmera graças ao desconforto criado pelo diretor.
White Diamond exibe também uma característica de Herzog como realizador que é o de estar na experiência e não somente registrá-la. O dirigível construído por Graham Dorrington parte de um trauma particular e por pouco não cria mais um, com Herzog a bordo quando ambos, de certa maneira, prestam tributo ao cineasta alemão Dieter Plage que faleceu em um experimento com um protótipo de dirigível para filmar pela floresta da Sumatra. Já Treadwell por si cria o ritmo da obviedade: por treze anos tratou os animais como seu resguardo, mas comportava-se como um super-herói. A Herzog basta montar, contextualizar e trata-lo com respeito.
A empolgação inicial de Dorrington, que abraça rapidamente a posição de protagonismo em White Diamond para sua aventura na Amazônia, logo revela sua insegurança pelos métodos de Herzog ao falar sobre a tragédia que vitimou Plage. A dualidade de uma nova chance e a culpa do passado vira apontamento certeiro por Herzog justamente pela elasticidade do tempo. Ao dar toda atenção para o protagonista, ou seja, dar a câmera e seu tempo para ele, a matemática do cinema é fissurada quando o corte não aparece no tempo que lhe fora instituído pela linguagem clássica. O corte é o sinônimo da veracidade das palavras, da seriedade de um assunto e, principalmente, a impossibilidade de questionar o tema, o personagem, o diretor e o filme.
White Diamond (2004)
É necessário seguir e, portanto, não há porque questionar. Ao emitir o que planejara para a câmera, Dorrington é traído pelo o que não planejara. Desta maneira, o protagonista transparece uma insegurança cavalar através de comentários bem-humorados ou rápidos passos de dança para representar seu ânimo para a nova viagem. O método não é o mesmo para todos os filmados e entrevistados por Herzog, o que mostra a antecipação do realizador alemão na feitura das entrevistas, porém, se a natureza prevalecerá, o acaso é capaz de intervir em qualquer modelo. A intimidade de Herzog com a natureza selvagem lhe dá cancha para proceder de maneira que respeita o que filma da mesma forma que registra a beleza do que não é concedido pelas metrópoles. Este é, entre tantos outros, um exemplar de como Herzog busca, de diferentes formas e visões, quebrar o que nos é mecânico e se aproximar da pureza dos gestos e das palavras, da mesma forma que suas paisagens são retratadas.
“Em 2020 pude assistir Luz nos Tópicos 3 vezes, em diferentes festivais, que na época estavam acontecendo em versões online por conta da pandemia de Covid-19. Imediatamente soube que para falar sobre ele, eu precisaria remontar, criar a partir dele outras imagens, destacar algumas delas, mexer com a carne do filme. E foi o que tentei com esse video-ensaio, um dos meus primeiros.
Fazendo pensar em Lucrecia Martel e Video nas Aldeias, Luz nos Trópicos produz imagens poderosas sobre a criação da América, sobre a natureza experimental dos encontros que deram origem a esse projeto de colonização, que segue sendo atualizado, às expensas dos povos do Sul Global.
Como na cena em que um passarinho é dissecado, me senti convidada a intervir no filme para tentar dar conta do quanto fui impactada por ele.
Enquanto lia Akira Mizuta Lippit divagar sobre o aparato de memória a partir do cinematógrafo, me chamou atenção a máxima “cinema como mnemosyne” citada pelo autor e professor, ou seja, a prática de coletar e recoletar impressões da vida via cinema e psique. Atrelada aos belos argumentos de Lippit[1] à questão do jogo de memórias, a reflexão me levou a Aby Warburg e como as imagens de seu Atlas[2] costuravam um labirinto de referências da memória num jogo de coletagem de informações, conhecimento e o prazer da observação em imagens que não dialogam entre si. Foi assim que cheguei num tema que reside em outro extremo, mas que, de diversas maneiras, dialoga com o conceito de Mnemosyne de Warburg.
Em 2000, um projeto liderado pelos diretores Jeff Tremaine, Spike Jonze e o ator Johnny Knoxville foi criado após Tremaine descobrir Knoxville e seus comparsas (Chris Pontius, Steve-O e Dave England) em um vídeo da revista Big Brother testando equipamentos de defesa em si mesmos. O projeto ganhou o nome de Jackass – em livre tradução, algo semelhante a “idiota” ou “burro”. O programa usou por anos conceitos semelhantes aos apresentados aqui anteriormente, em especial o prazer da observação e da memória como associação de quadros em justaposição não dialógica. Deste ponto, ligo Jackass ao tema desta edição: o uso do corpo para representações diversas do erotismo, pornografia e voyeurismo, o conflito direto com o puritanismo americano, a destituição de valores pré-concebidos na sociedade e trazer para o horário nobre assuntos espinhosos para uma nação majoritariamente conservadora. A subversão de um conceito popular como um conjunto de gags que em nada dialogavam entre si aumentava a potência da proposta de Tremaine e cia. Jackass foi exibido em uma emissora que carrega seu valor justamente pela memória e como ela influencia até hoje o mundo da cultura popular, sobretudo o da música e da linguagem dos clipes: a MTV. O programa se constituía de um conjunto de gags entre amigos – e construía, assim, um universo de associações e subversões à linguagem televisiva, pois a única linha, na superfície, é a de gerar caos e risadas.
Desta maneira, o programa, que logo ganhou as telas de cinema com o mesmo formato, colocava em primeiro plano o que estava no obscurantismo que realizadores americanos usavam com certa tendência sensacionalista no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Knoxville, Bam Margera e sua trupe extrapolavam os limites justamente por não ter uma linha narrativa. A destruição dos meios e valores era a “atração”. Com isso, as margens para o diálogo com o que é erótico e pornográfico são extensas e muito interessantes. A julgar, em primeiro lugar, como o exibicionismo e a tortura faziam parte frequentemente do programa. O personagem Party Boy, vivido por Chris Pontius, era uma representação muito inocente e funcional de como a nudez incomoda além de um choque inicial. Ao longo dos anos, a nudez em Jackass foi impregnada, em confirmação de que não há qualquer necessidade de justificativa, apenas o prazer; gesto que, de certa maneira, se alinha com a proposta geral de Jackass. Steve-O e Pontius seguiam nus para seus quadros, enquanto Wee Man, skatista e dublê que é portador de nanismo, junto ao perfomer Preston Lacy, com frequência usavam seus corpos para algum tipo de tortura e, por seus corpos estarem desnudos, lidam diretamente com o fetichismo. É importante notar que, em boa parte dos quadros em que homens desnudos atuam, os outros integrantes da trupe estão lá, em geral semi-nus, com o prazer perverso da observação. O torture porn, ou seja, o que liga o prazer ao perverso segundo Frederico Feitosa[3], naturalmente dá estética ao gozo. Mas, no caso de Jackass, além de eliminar qualquer narrativa – a lembrar que os filmes pornográficos possuem, em geral, uma introdução, uma linha narrativa mambembe para chegar à sua real atração – e transformar o seu senso estético na perversidade em si. É o grupo de amigos desnudos a rir incontrolavelmente do sofrimento de outro amigo nu, vez ou outra de pênis ereto, ou em posições que emulam o ato sexual, mas sem o prazer da dor. O gozo é exclusivo de quem assiste neste caso.
Wee Man e Preston Lacy em 69 simbólico.
Steve-O e Chris Pontius
O que chamamos de broderagem atualmente, algo que engloba o companheirismo, confiança e cumplicidade entre homens heterossexuais que pode ou não ter envolvimento sexual, é latente nos quadros de Jackass. Os quadros que envolvem genitálias e orifícios possuem uma dança de proximidade e distância entre os integrantes muito curiosa. Há o acordo silencioso que não há limites para o toque ou para a visão, mas não veremos uma troca de fluídos propriamente dita nem mesmo sob a justificativa de um quadro. Quando a proximidade é latente, geralmente vem em forma de uma pegadinha – como a emblemática barba feita dos pelos pubianos de todos os integrantes colada no rosto de Danger Ehren -, ou com o auxílio de um terceiro – como o quadro do primeiro longa-metragem da série, em que Ryan Dunn insere carrinhos de brinquedo no cu e precisa de auxílio médico para resgatá-los.
Ehren e sua barba de pelos pubianos.
Jackass se consolidou como um sortido conjunto de ações caóticas a fim de questionar a física, os valores, o conservadorismo e sobretudo a linguagem televisiva/cinematográfica sem austeridade. Sua relação com a memória está ligada também ao seu legado, que permitiu diversas adaptações e releituras em diversos países, incluindo o Brasil. O que difere Jackass de todos os outros – incluindo Wild Boyz, série protagonizada por Steve-O e Chris Pontius que, em seu episódio mais marcante, masturbam um bichano marítimo que para se defender expele um líquido branco – é como a série se destituía do pudor. Porém, ao usar seus corpos, optavam pela tensão sexual com o auxílio de um tapume criado pelo humor.
Após dois filmes que são como uma versão prolongada do programa, o terceiro filme tem o auxílio do uso do 3D. O lado escatológico é aflorado com a oportunidade de jogar na cara do público excrementos, mas também aproveitam para usar a tecnologia para colocar pênis voadores com o aval de ninguém menos que John Waters – com quem Knoxville trabalhou em A Dirty Shame (2004), e que participou do segundo filme da série em 2006. Este é o filme mais interessante da série já que, na liberdade que o programa vive, absolutamente qualquer adereço cênico pode ganhar destaque na imagem 3D. Curiosamente, o filme também parece ser o mais sóbrio no sentido artístico, com uso de coreografias e números musicais, algo entre um filme de Buster Keaton e um musical kitsch. Poderia ser um novo caminho para a série, mas o projeto entrou em hiato, retornando para um gran finale em Jackass Forever (2022) que volta ao formato de episódio prolongado.
Preston Lacy e Steve-O: ligados por orifícios e escatologia
A grosso modo Jackass pode ser uma grande estripulia feita por homens se passando por adolescentes com dinheiro e aval para isso. Pegar um bugre e, enquanto o veículo quica sem parar, ganhar uma tatuagem que parece um grande borrão, lutar com um boxeador profissional em uma loja de departamentos ou usar um carrinho de rolimã para jogar o corpo em uma porção de cactos, além da questão exibicionista, mostra certa devoção ao ritual de colocar o corpo sempre em risco e também ao prazer da dor para uma plateia sempre sedenta. Aqui que se engloba o lado erótico e pornográfico da série. Da tortura à escatologia, da nudez e da intimidade que se dá na troca de olhares, risadas e toques ao voyeurismo, a grande proeza do grupo de Tremaine é de levar homens indo ao limite justamente no horário nobre da TV e para as grandes cadeias de cinema do mundo inteiro. Pautar, através do choque e da graça, temas intocáveis àquela época e ainda delicados até os dias de hoje.
[1] Disponíveis em Ex-Cinema: From a theory of experimental film and vídeo, UCPress. 2008.
[2] Foi o projeto mais ambicioso de Warburg, inacabado, que pretendia estabelecer “cadeias de transporte de imagens”, linhas de transmissão de características visuais através dos tempos, que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no nascimento da civilização ocidental, nessas imagens. (Wikipedia).
Hirokazu Kore-eda consolidou seu trabalho ao longo dos anos com abordagens melodramáticas em conluio com tramas de temas diversos, mas com poucas mudanças de perspectiva quando se trata da posição do narrador – em comum, o ensejo de transparecer a consciência das emoções. Monster, seu novo filme, significa uma mudança importante neste método. Após uma trinca questionável com Shoplifters (2018), The Truth (2019) e Broker (2022), sendo estes dois últimos produzidos fora do Japão e que evidenciaram certo engessamento do trabalho, seu retorno ao país de origem traz novos desafios na construção das emoções além de elemento-suporte narrativo.
É pela montagem que Monster se estabiliza e é uma surpresa já que seus minutos iniciais apontam para um outro lugar. O filme deixa de ser um drama envolvendo o amor incondicional de uma mãe pelo filho e resolve, pela montagem, sufocar este fio narrativo e estilhaçar as emoções a partir do questionamento. Em diversas camadas, o filme de Kore-eda coloca as motivações e caráter de seus personagens em questão e aborta sua relação com o cotidiano tão tradicionais e que renderam filmes como Like Father, Like Son (2013), Our Little Sister (2015) e o próprio Shoplifters. Em nome do afeto e da dor, Monster oculta a linearidade para evidenciar os horrores da violência e seus desdobramentos.
Há golpes de vista bem interessantes no filme a notar que todas as camadas partem do mesmo princípio. Ou seja, seus personagens estão ligados diretamente e desta costura de sentimentos e traumas que passam pela culpa, amor, ausência e principalmente pela dor, construídos por Kore-eda em microcosmos e nos aproximando das raízes de cada atitude vista. Com o mesmo modus operandi há o seu contraponto, a relação direta com a segurança e como ela é instintiva. Com este extremo, Monster constrói uma relação intensa e devastadora tanto pela percepção infantil quanto pela vida adulta.
O novo filme de Kore-eda se estabelece como uma análise sobre a volatilidade de nossos julgamentos sobre o próximo e como nossa complexidade oferece saídas inesperadas. Em conluio com as mudanças de perspectiva, estas intenções são acentuadas e assim como Kurosawa e Hitchcock que passearam pelo mesmo intuito, colocam, em primeiro lugar, o espectador como grande conjecturador – e também como réu.
Nas últimas décadas o conceito de cinema independente, em especial o dos Estados Unidos, passou por grandes mudanças. Com a proliferação de câmeras portáteis e aparelhos de telefone celular e das redes sociais, o que estava ligado aos filmes feitos por pequenos grupos e essencialmente com baixo orçamento ganhou novas camadas. O último grande chamariz do cinema independente americano foi o mumblecore que como uma grande teia de amigos e artistas colocou nomes como os irmãos Duplass, Greta Gerwig e Joe Swanberg no mainstream. Nos últimos anos coletivos e movimentos espontâneos foram criados a exemplo do Folk Filmmaking criado pelo norte-americano Don Letz e que independentemente de onde o filme seja ou do seu estilo e gênero, o que caracteriza o filme “folk” é ele estar gratuitamente disponível na Internet. O mecanismo de distribuição, neste caso, é o principal baluarte para a criação de um coletivo. Outros sites e iniciativas como o No Budge que reúne filmes de realizadores independentes via streaming e o grupo Kinet, que conta com integrantes canadenses como Kurt Walker e Neil Bahadur, por exemplo, transparecem como as redes sociais e ferramentas de exibição fundem em como cineastas lidam com a internet para salientar suas produções independentes.
Vindo de Portland, Kurtis Matthew Russell dirigiu seu primeiro longa Silent Monologues e o disponibilizou online no primeiro semestre de 2023. O filme apresenta um drama familiar com a crueldade como sugestão para outros gêneros como a comédia e o film noir. A partir do uso da casa como um grande palco, Russell dialoga diretamente com a assertividade da imagem digital – naturalmente insuave e em certos momentos, violenta. Em American Lightning, seu novo filme, também lançado em 2023, Russell faz desta rota como melhor forma de abordagem. É da ironia que o diretor tira seus comentários sobre o mundo artístico e como a banalização de seus elementos externos podem acabar com qualquer experiência. O processo de produção, exibição e divulgação ganham contornos e labirintos existenciais que acabam por destituir o que é o artista.
Por se tratar de um filme essencialmente independente, o do it yourself deixa claras marcas no discurso sobre o comércio de obras artísticas, a presunção do público e camadas que iludem aqueles que fazem parte de microcosmos que permitem a dissociação do real a partir da falsa ideia de sucesso. E, suportado por uma entrevista com um artista em conflito que conta suas desventuras, Matthew Russell reconstituí estas histórias com acidez e deboche que curiosamente remetem a referências do cinema independente americano de outrora como Todd Solondz, Peter Bogdanovich e Kevin Smith.
O “raio” americano do título do filme é uma boa forma de alusão às sinapses de artistas dispostos a acertar um ponto e que na cruel prática da automanipulação – que é inerente ao ambiente de trabalho – almejam ser alguém para os outros, colocando assim a celebração à arte, e em especial o cinema americano como um grande objeto de estudo. Nele, Matthew Russell coloca em xeque a intenção de produções em cadeia, de autoria e, claro, do ego e talento dos realizadores.
Um corpo presente e um fantasma em forma de lembrança tomam o palco. Sim, o palco, pois Tia Virginia evoca a história familiar num jogo cruel de similaridades com o imaginário de muitas famílias brasileiras como uma peça teatral pelo trato com o espaço cênico. Os personagens vêm e vão, ganham seu cosmo de atenção e flutuam sempre entre o protagonismo e antagonismo com intensidade.
O trabalho de Fabio Meira em concatenar lembranças, mágoas e conflitos vai além de mediar ritmo e gestos destes corpos em constante verborragia. Nivelar rigorosamente as mudanças de tom dos assuntos como uma dicotomia equilíbrio-desiquilíbrio como retrato do cotidiano de uma família que encontra a pacificidade nas frivolidades e que tem Virginia como uma presença a mediar os espaços e tempo e quando e onde a falsa alegria durará.
Enquanto estes corpos passeiam pela casa o grande enigma está em como esta família possui um ideal de perfeição – cada um à sua maneira – e as melhores resoluções, mas sempre a ignorar o corpo presente. Dado este problema, entra a questão da função das imagens que desde sua origem nega-se a implementar a observação fixa e preza pelo dinamismo presumivelmente cinematográfico. Por mais que pareça encontrar um labirinto que necessita de uma fácil e rápida equação para a fuga em diversos momentos, o filme de Meira mantém pelo seu rigor o maior de seus efeitos: enquanto todos andam e falam, o grande estopim está estático, frio, a observar.
E como comentário à essa frieza, Tia Virgínia é um filme que possui certa barbaridade a saber que está a identificar diversos casos dentro de um escopo e que isto potencializa sua eficácia sem que entre em um lugar de fragilidade como discurso. Independente de como se constrói e se localiza este palco, o que está em evidência aqui é como Meira media os jogos de palavras e gestos e como eles podem representar a implosão familiar pela solidez de suas representações.
Since the 1970s, prolific American director Lewis Klahr has combined animation techniques with avant-garde cinema, which in recent years has helped to retell and reread modern American history. Owner of a unique work, Klahr walks through pillars of American pop culture such as comics, pulp fiction, film noir and has a close relationship with sound – or lack of it. I talked a little with Lewis about his work in general, and, mainly, about his relationship with silence, dyssynchrony, absence, noise, tracks, etc.
This issue of the magazine is about cinema and silence.
Hmmmmnnnn…… I think film silence is still a highly specific sound. For instance, I recently completed a soundtrack for a new film titled Thin Rain. Inspired by Film Noir, Thin Rain tells the story of an amnesiac protagonist who loses his memory after being hit in the back of his head by a gun handle. Before this attack, the soundtrack has symphonic music. Once the protagonist loses his memory the music ends and is replaced by the white noise sound of a blank analog 16mm optical track. We call this optical “blank” but it is full of sound: pops, scratches, and hisses!
Silence was something that caught my attention when I saw one of your films for the first time in a theater. I believe it was Sixty-Six.
I primarily use silence in Sixty-Six as a conventional separator of the individual films, a short duration (5-10 seconds) palate cleanser. But the film Ambrosia, which occurs in the latter part of Sixty-Six, is silent and required careful sequencing to get it effectively positioned because getting a silent film to effectively follow a sound film is an aesthetic challenge. The films in Sixty-Six that directly precede Ambrosia needed to gradually quiet down to provide a successful lead in. Whereas, the film that followed Ambrosia, and returned to sound, had much greater flexibility in terms of what its soundtrack could contain.
I would like, if possible, if you could talk a little about the relationship of duplicity that your images involve and the path that I feel is emancipated from the composition of the images by your use of sound.
I wouldn’t describe my relationship to sound and image as “duplicitous” but that’s an interesting thought. I’m not very clear about what you’re describing or asking but taking my best guess at what I suspect you mean– I am rarely interested in creating a “realistic” or full soundscape. Often my approach results in a limited or focused use of sound in which only some parts of the sound that an image may suggest are represented aurally. The parts of the image that are not represented remain silent and visual.
In your films there is usually a very consistent break in silence, like your most recent film The Blue Rose of Forgetfulness, which reminds me of a musical and is soon at the confluence of silence and a narrative in very strong codes.
In The Blue Rose of Forgetfulness I think the clearest example of what you are asking about occurs in the 4th film of the series— Blue Sun. This film uses as its source material images from a Secret Agent comic book from the late 1960’s. I’ve used a lightbox to illuminate both sides of the comic book page and reveal superimpositions. In my shooting I then seek to harvest the most interesting of these superimpositions.
Blue Sun’s soundtrack has 3 different sections with the first being the playing in reverse of Sibelius’ The Swan of Tuonella. After 8 minutes the piece concludes and this lush orchestral music gives way to an ultra mundane streetscape I recorded of birds chirping and cars passing that lasts for approximately 5 minutes. After this, for only the last 30 seconds of imagery, there is silence which creates a kind of hush, or an absence, like the air escaping a balloon. Full viewer attention is now briefly given to the images. All 3 approaches to sound significantly alter the way the viewer experiences the image. This shifting of viewer engagements throughout all my films is a major part of their aesthetic engagement and structuring.
I agree I can be described as making “musicals”. On the most obvious level when I use pop songs as my soundtracks the lyrics usually tell a story and often act the way dialogue or voice over narration would in a narrative film. But just as in narrative filmmaking where the script is not the film, the lyrics are not the film here either. My images alter, contradict and also support the lyrics. For example, in my 2010 film Nimbus Smile I use the iconic Velvet Underground song Pale Blue Eyes as the soundtrack. However, the comic book female I’m using as my protagonist very clearly has black eyes not blue eyes. This raises questions about whether she’s the woman being sung about. Simultaneously the mise en scene is filled with images that contain different shades of blue. I hope the audience will notice and question why this color displacement of blue from the female protagonist’s eyes in the lyrics to the décor is occurring and what it might express.
In Circumstantial Pleasures it is not a change to silence that happens but a large change that occurs in a different way through the train trip and the sounds of warning announcements and the engine itself. How do you think about this type of composition?
Circumstantial Pleasures differs from most of my other features in that it is concerned with describing the contemporary world and only the very recent past. High Rise, the train film you refer to above, is the only film in the entire series that doesn’t use music for its soundtrack. It is a live action film shot on my phone in China during the summer of 2016 on a high speed train traveling to Beijing. Filmed in one continuous, nearly two minute shot are the passing towers of a massive apartment complex that is under construction. This apartment complex has no audible sound. The sync sound heard in High Rise is of the offscreen space of the train tracks and the interior train car in which I am traveling. This film provides a strong contrast from the other films that have preceded it in the series since none of them are live action and all use single framed, collage imagery. But a funny thing happens– the buildings under construction are so cartoon like in appearance that various audience members have asked me what exactly they are seeing—whether High Rise is also an animation and not a live action film.
What fascinates me about your films is that there is this kind of sound displacement, but at the same time there is a very strong connection with a specific time frame such as Film Noir. Your soundtracks reinforce a journey into the past, but what you do with silence is a work that is based on contemporaneity in my view, especially when we talk about experimental filmmakers. Do you think there’s any sense in that?
I do, it’s an interesting perception. Being an associational thinker and montagist I very much aim to create experiences that can be understood simultaneously in a number of different ways, even if they may appear to be contradictory or paradoxical. I also include visual anomalies in my films of present day imagery to make it clear that my films despite being historically descriptive are being made in the present.
Does sound in experimental cinema have any influence on your work?
Yes, of course. The most obvious influence being my use of music, both pop songs and classical. I am especially indebted to the films of Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs and Harry Smith. The way all of the above filmmakers used music as a collage source material and also as an essential element of their montage was seminal for me as a developing filmmaker.
However, I think it’s worth noting that when I decided to make my film soundtracks as music-centric as they’ve been for the last 30 years, this was considered a very unacceptable choice by the experimental film world. There was this idea (less predominant now but still existing) that being music-centric was outmoded, and too easy an approach (like it was cheating LOL). That being music-centric was something experimental film had outgrown and left behind, rather than being a genre choice with a rich and fertile tradition and history of its own with very high standards of effectiveness just like any other genre.
Logically, your films are intrinsic to the experience of reading comics alongside the projection that can be composed of a soundtrack or not.
My characters often speak in the word balloons of comic books. Sometimes what they speak is not meant to be understood which is why words are crossed out or sentences are interrupted. These speech bubbles are merely meant to indicate that speech is occurring (there are many similar moments in narrative films where dialogue is inaudible). Also, sometimes I cut out a comic book character and I leave attached some words they are speaking in the story they from which they were taken. These words rarely relate to the story my film is telling. However, these word remnants do clearly suggest the history of my appropriated characters. I want the audience to think about this history of the original context my characters existed in.
My characters speaking in comic book word bubbles rarely speak in voices heard on the soundtrack. I really enjoy this kind of displacement of having sound appear visually. The specificity of this visualization I try to make as precise as possible. For instance, there is a moment in Alcestis, another film from The Blue Rose of Forgetfulness, where the title character has an orgasm and she says “Oh, Oh, Oh”. This is handwritten in pen whereas normally, when Alcestis speaks, it appears as typed words in speech bubbles. The handwriting conveys both the intimacy and individuality of this sexual moment.
And I would like to know how much you want to control the spectator’s interpretation of your film’s meaning and whether this is a consideration for you during the process of creation?
Yes, I do consider the reception of the spectator while making my films. For example, the description of the dialogue in Alcestis I’ve just given above might or might not be understood by an audience. I’m often telling myself a story in my aesthetic choices that I know will only be partially understood by most of my viewers. Through long experience of working this way I’ve learned that each individual spectator will assemble the images to the idiosyncratic specifics of their interests, experience and subjectivity. In effect they often make up their own version of the story that has little to do with the one I’m trying to convey. I am comfortable with this openness of interpretation and consider it a strength of my storytelling.
Speaking of The Blue Rose of Forgetfulness specifically, how did you come up with the soundtrack for the film and how was working with these songs as a dramatic device?There is a very interesting use of de-sync in it.
As I created the sequence for The Blue Rose of Forgetfulness I found the flow of the music and sound became the priority for how the films would allow me to sequence them. I was shocked by how specific this flow was. It is probably the strongest sequencing of my films sonically that I have ever created. I’m especially pleased with the flow of the first 4 films—Monogram; Swollen Kisses; Capitulation’s Promise; Blue Sun. This is not something I intentionally set out to accomplish but discovered as an essence/aspect of these films as I attempted to sequence them. It was very surprising to me– I never would have thought to sequence them the way I have. For instance, I imagined that Capitulations Promise, the film with the Lana Del Rey song, could never follow Swollen Kisses the film with the Julie London songs. I thought they would need to be separated because of their similarity of feeling and mood. Instead, I discovered the effectiveness of their proximity intuitively through an arduous process of trial and error which required multiple viewings of different trial sequences. There was an editorial ruthlessness and honesty required to get it right. Very hard work!
As for what you’re calling de-sync (I have not heard this term before and like it very much!) I hold the bar very high in terms of having reasons to use a particular piece of music, especially pop songs. It is often important that the image moves in and out of sync with the music’s beat to create a contrast and counterpoint rhythmically. As I’ve stated I am very interested in changing a viewer’s engagement of the image as a film progresses– so moving from music to silence or sound effects, often produces a significant change that alters the way the images are absorbed and understood by a viewer. I also often edit images to be very active and rapid against a brief silent pause in the music itself. My edits are continuing the rhythm and creating a silent sound that fills that aural gap visually.
Speaking more of de-sync, how do you make it an option in your films?
Swollen Kisses is a good example of how I work with what you are calling de-sync. I created a mash-up of Julie London songs where she is literally singing with herself. I had the idea to do this because I was attentive to Julie London’s phrasing and the distinctly excessive length of time she pauses in between lines of the lyrics. This silent pause was lengthy enough to allow another lyric from a different song of London’s to be sung. The resultant juxtaposition of the lyrics of 2 romantic ballads then creates a new, alternate version of both songs. There is a narrative, poetic openness offered by this approach that encourages viewer interpretation– a new third stream that contains continuities and discontinuities just as my images do.
(…) pela primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração.
(André Bazin)
Em 11 de setembro de 2001 enquanto os destroços das torres do World Trade Center expurgavam fumaça por horas e horas a fio, William Basinski usou sua câmera ao cair do dia para, em seu terraço no Brooklyn, Nova Iorque, fazer de Disintegration Loops 1.1 a antecipação da duração em arquivo. Ao filmar a decomposição do mundo, os cineastas mostram sua reconstituição num universo de arquivo, de modo que a dimensão mortífera transmuda-se em análise, mas também em fórmula conjuratória e rito de passagem (MICHAUD, 2014) e, para Basinski é nítida a dimensão mortífera e o rito de passagem da maneira que o diretor compõe o som do filme.
Se o simbólico cortejo dos corpos a subirem ao céu como fumaça naturalmente viria do luto, interromper o silêncio seria um ultraje, então Basisnki subverte a falta de expressividade da observação em um uma marcha fúnebre própria, repetitiva e principalmente dolorida. Philipp-Alain Michaud também aborda estes temas quando discorre sobre o trabalho de Francis Dubreuil:
A monotonia, a repetição e a falta de expressividade são as vias que conduzem ao conhecimento do objeto. A filmagem dessas imagens repousa num processo de apagamento generalizado, tanto do cinegrafista diante do que ele filma quanto do objeto filmado em seu ambiente, onde ele fica camuflado: nunca oferecido na visibilidade plena que define o espaço figurativo, ele se mantém num retraimento que garante a realidade de seu comparecimento. É assim que se produzem eventos visuais puros, que são esvaziados de qualquer antropomorfismo.
O apagamento generalizado neste momento está em um campo difundido e a definição de Basinski do espaço está ao vencer o contracampo e desaparecer nele enquanto todo o Mundo olhava para este mesmo ponto em diversos planos e distâncias. Para Benjamin, a câmera, à maneira de instrumento cirúrgico, penetra na textura das coisas. Disintegration Loops 1.1. é um filme que conjectura com a noção de loop como o próprio título entrega, mas cria suas camadas de textura e dor. Estamos diante de uma partida sem fim, de diálogo direto entre o lamento e a fumaça que se esvai dos destroços como uma sintaxe narrativa da dor na mesma medida em que coloca em crise a perspectiva de um realizador-testemunha que está em completo silêncio. Reside aqui a duplicidade da epígrafe de Bazin e a duração das coisas e a ilusão de um efeito de salvaguarda que também atesta um processo de apagamento generalizado a citar novamente Michaud.
Estes pequenos apontamentos são para dialogar com a dicotomia da força dos planos e como a música também composta por Basisnki se emancipa do plano como maneira de colocar a imagem em si como uma imagem – em movimento – silênciosa, enlutada, dura, mortífera. Sua marcha fúnebre pode ser um complemento, mas funciona como um elemento móvel ao horror. O que está na superfície da tela ganha per si o significado de uma ideia de duração, de contexto histórico, de arquivo. Enquanto Basinski faz deste fim de tarde que lentamente apaga a fumaça por conta da escuridão de uma cidade que invariavelmente está sem luz, num mundo de aparência, vale colocar que o cinema se faz metáfora do mundo (MICHAUD, 2014).
O deslocamento se justifica justamente por não ser um espetáculo diário como se estivéssemos vendo uma pessoa andando na rua com uma música artificial de fundo e sem questionar, acreditamos que ela está ali para embalar o apagamento do cinegrafista, da montagem etc. Disintegration Loops 1.1. é, antes de tudo, sobre a imparidade do cotidiano, o contato literal como fogo e a morte que revela ao apagar das luzes de um dia ensolarado um outro mundo que Basisnki conlui na disparidade que sua marcha faz com um lamento silencioso que as imagens oferecem. A sintaxe da tragédia se dá na dicotomia silêncio-som e câmera-cinegrafista. Um filme de repetições de um lento movimento, mas de complexidades nas camadas da construção política, humana e cinematográfica.
Desde a década de 70 o prolífico realizador americano Lewis Klahr une técnicas de animação ao cinema vanguardista que através dos últimos anos ajudou a recontar e reler a história americana moderna. Dono de um trabalho único, Klahr passeia por pilares da cultura pop americana como os quadrinhos, pulp fiction, o film noir e tem uma relação estreita com o som – ou a falta dele. Conversei um pouco com Lewis sobre o seu trabalho de modo geral, e, principalmente, sobre sua relação com o silêncio, a dessincronia, a ausência, o ruído, trilhas etc.
Oi Lewis, obrigado por aceitar o nosso convite. Esta edição da revista é sobre cinema e silêncio.
Hmmm…Acho que o silêncio no filme ainda é um som altamente específico. Por exemplo, recentemente completei a trilha sonora de um novo filme intitulado Thin Rain. Inspirado no Film Noir, Thin Rain conta a história de um protagonista amnésico que perde a memória após ser atingido na nuca pelo cabo de uma arma. Antes desse ataque, a trilha sonora tem música sinfônica. Uma vez que o protagonista perde a memória a música acaba e é substituída pelo ruído branco de um faixa óptica analógica de 16 mm em branco. Chamamos isso de “branco” óptico, mas está cheio de som: estalos, arranhões e assobios!
O silêncio foi algo que me chamou a atenção quando vi um de seus filmes pela primeira vez em um cinema. Acho que foi Sixty-Six.
Eu uso principalmente o silêncio em Sixty-Six como um separador convencional do filmes individuais, um limpador de palato de curta duração (5-10 segundos). Mas o curta Ambrosia, que ocorre na última parte de Sixty-Six, é mudo e exigia um sequenciamento cuidadoso para posicioná-lo efetivamente porque obter um filme mudo seguir efetivamente um filme sonoro é um desafio estético. Os filmes em Sixty-Six que precedem diretamente Ambrosia precisavam gradualmente acalmar para ter algum sucesso. Considerando que, o filme que se seguiu Ambrosia e voltou a ter som, teve uma flexibilidade muito maior em termos de o que sua trilha sonora poderia conter.
Eu gostaria, se possível, que você falasse um pouco sobre a relação de duplicidade imagem-som, já que suas imagens envolvem um caminho que sinto que é de emancipação justamente pelo uso do som.
Eu não descreveria minha relação com som e imagem como “dúplice”, mas esse é um pensamento interessante. Eu não estou muito claro sobre o que você descreve, mas tentando adivinhar o que eu suspeito que você queira dizer, eu raramente estou interessado em criar uma paisagem sonora “realista” ou completa. Muitas vezes minha abordagem resulta em um uso limitado ou focado de som em que apenas algumas partes do som que uma imagem pode sugerir são representadas auditivamente. Partes da imagem que não são representadas permanecem silenciosas e visuais.
Nos seus filmes costuma haver uma quebra de silêncio muito consistente, como o seu filme mais recente A Rosa Azul do Esquecimento, que me lembra um musical e logo se encontra na confluência do silêncio e de uma narrativa em signos fortíssimos.
Em A Rosa Azul do Esquecimento (The Blue Rose of Forgetfulness, 2022) acho que o exemplo mais claro do que você está perguntando sobre ocorre no quarto filme da série – Blue Sun. Este filme utiliza como material de origem imagens de uma história em quadrinhos do Agente Secreto da final dos anos 1960. Usei uma caixa de luz para iluminar os dois lados da história em quadrinhos e revelar sobreposições. Em minhas filmagens, procuro então colher o mais interessante dessas sobreposições. A trilha sonora de Blue Sun tem 3 seções diferentes, sendo a primeira a tocando ao contrário de O cisne de Tuonella, de Sibelius. Após 8 minutos a peça termina e esta exuberante música orquestral dá lugar a um ultra mundano som de paisagem urbana que registrei de pássaros cantando e carros passando que dura por aproximadamente 5 minutos. Depois disso, apenas nos últimos 30 segundos de imagens, há um silêncio que cria uma espécie de vazio, ou uma ausência, como o ar a escapar de um balão. A atenção total do espectador agora é brevemente dada às imagens. Todas as 3 abordagens ao som alteram significativamente à forma como o espectador experimenta a imagem. Essa mudança de envolvimento do espectador ao longo de toda a minha filmografia é uma parte importante de seu envolvimento e estruturação estética para mim. Concordo que posso ser descrito como fazendo “musicais”. No nível mais óbvio quando uso músicas pop como trilhas sonoras, as letras geralmente contam uma história e muitas vezes agem da mesma forma que o diálogo ou a narração de voz em um filme narrativo. Mas, assim como no cinema narrativo, em que o roteiro não é o filme, as letras também não são o filme aqui. Minhas imagens alteram, contradizem e também apoiam as letras. Por exemplo, em meu filme de 2010, Nimbus Smile, eu uso a icônica música do Velvet Underground, Pale Blue Eyes, como trilha sonora. No entanto, a mulher dos quadrinhos que estou usando como protagonista claramente tem olhos negros, não olhos azuis. Isso levanta questões sobre se ela é a mulher sendo cantada sobre. Simultaneamente a encenação é preenchida com imagens que contêm diferentes tons de azul. Espero que o público perceba e pergunte por que esse deslocamento de cor do azul dos olhos da protagonista feminina na letra está ocorrendo e o que ela pode expressar.
Em Prazeres Circunstanciais (Circumstantial Pleasures, 2020) não é uma mudança para o silêncio que acontece, mas uma grande mudança que ocorre de forma diferente através de uma viagem de trem com os sons de avisos e do próprio motor. Como você pensa sobre esse tipo de composição?
Prazeres Circunstanciais difere da maioria dos meus outros filmes porque é preocupado em descrever o mundo contemporâneo e apenas o muito recente passado. High Rise, o filme de trem que você mencionou acima, é o único filme da série inteira que não usa música para sua trilha sonora. É uma ação ao vivo, filmado no meu telefone na China durante o verão de 2016 em alta velocidade no trem viajando para Pequim. Filmado em um plano contínuo de quase dois minutos são as torres de passagem de um enorme complexo de apartamentos que está sob construção. Este complexo de apartamentos não tem som audível. O som de sincronização ouvido em High Rise é do espaço fora da tela dos trilhos do trem e do vagão de trem interior em que estou viajando. Este filme fornece uma forte contraste com os outros filmes que o precederam na série, já que nenhum deles são de ação ao vivo e todos usam imagens de colagem de quadro único. Mas uma coisa engraçada acontece – os prédios em construção são tão caricaturais como em aparência que vários membros da audiência me perguntaram o que exatamente eles estão vendo – se High Rise também é uma animação e não um filme de live-action.
O que me fascina nos seus filmes é que existe esse tipo de deslocamento, mas ao mesmo tempo há uma ligação muito forte com um período de tempo específico, como o Film Noir. Suas trilhas sonoras reforçam uma jornada no passado, mas o que você faz com o silêncio é um trabalho que se baseia na contemporaneidade a meu ver, principalmente quando falamos de cineastas experimentais. Você acha que há algum sentido nisso?
Sim, é uma percepção interessante. Ser um pensador associativo e montagista – pretendo muito criar experiências que possam ser compreendidas simultaneamente de várias maneiras diferentes, mesmo que pareçam contraditóras ou paradoxais. Eu também incluo anomalias visuais em meus filmes de imagens atuais para deixar claro que meus filmes apesar de serem historicamente descritivos estão sendo feitas no presente.
O som do cinema experimental tem alguma influência no seu trabalho?
Sim, claro. A influência mais óbvia é o meu uso da música, tanto pop e clássicos. Sou especialmente grato aos filmes de Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs e Harry Smith. A maneira como todos eles usaram a música como fonte de material de colagem e também como elemento essencial de sua montagem foi seminal para mim como desenvolvimento para ser um cineasta. No entanto, acho que vale a pena notar que quando decidi as trilhas sonoras tão centradas na música como têm sido nos últimos 30 anos, isso foi considerado uma escolha muito inaceitável pelo mundo do cinema experimental. Lá era essa ideia (menos predominante agora, mas ainda existente) que ser music-centric estava fora de moda e era uma abordagem muito fácil – como se estivesse trapaceando (risos). Que ser centrado na música era algo que o filme experimental havia superado e deixado para trás, ao invés de ser uma escolha de gênero com um rica e fértil tradição e história própria com altíssimos padrões de eficácia assim como qualquer outro gênero.
E logicamente, seus filmes são intrínsecos à experiência de leitura de histórias em quadrinhos junto com a projeção que pode ser composta por trilha sonora ou não.
Meus personagens costumam falar na palavra balões das histórias em quadrinhos. às vezes o que eles falam não é para ser entendido e é por isso que as palavras são riscadas ou as frases são interrompidas. Esses balões de fala servem apenas para indicar que a fala está ocorrendo – há muitos momentos semelhantes em filmes narrativos onde o diálogo é inaudível. Além disso, às vezes eu corto um personagem de quadrinhos e deixo em anexo algumas palavras que eles estão falando na história de onde foram tiradas. Essas palavras raramente se relacionam com a história meu filme está dizendo. No entanto, essas palavras sugerem claramente a história dos meus personagens apropriados. Eu quero que o público pense sobre esta história do contexto original em que meus personagens existiram. Meus personagens falando em balões de palavras em quadrinhos raramente falam em voz alta. Eu realmente gosto desse tipo de deslocamento de ter o som aparecendo visualmente. A especificidade desta visualização que tento fazer como algo preciso e possível. Por exemplo, há um momento em Alceste, outro filme de A Rosa Azul do Esquecimento, onde a personagem-título tem um orgasmo e ela diz “Oh, Oh, Oh”. Isso é escrito à mão em caneta, enquanto normalmente, quando Alceste fala, aparece como palavras digitadas em balões de fala. A caligrafia transmite tanto a intimidade quanto a individualidade desse momento.
O quanto você quer controlar a interpretação do significado do seu filme e se isso é uma consideração para você durante o processo de criação?
Sim, considero a recepção do espectador ao fazer meus filmes. Por exemplo, a descrição do diálogo em Alceste que acabei de falar pode ou não ser compreendido por um público. Muitas vezes estou dizendo a mim mesmo uma história em minhas escolhas estéticas que sei que serão apenas parcialmente compreendidas pela maioria dos meus espectadores. Através de uma longa experiência de trabalho desta forma, eu tenho aprendido que cada espectador irá montar as imagens para especificidades idiossincráticas de seus interesses, experiências e subjetividades. Em efeito, muitas vezes inventam sua própria versão da história que tem pouco a fazer com o que estou tentando transmitir. Estou confortável com esta abertura de interpretação e considero isso um ponto forte da minha narrativa.
Falando especificamente da A Rosa Azul do Esquecimento, como você criou a trilha sonora do filme e como foi trabalhar com essas músicas como dispositivo dramático? Há um uso muito interessante de dessincronização [de-sync] nele.
Ao criar a sequência [de filmes] para A Rosa Azul do Esquecimento, encontrar o fluxo da música e do som tornou-se a prioridade de como os filmes me permitiriam sequenciá-los. Fiquei chocado com a especificidade desse fluxo. É provavelmente o sequenciamento mais forte dos meus filmes sonoramente que eu já criei. Eu sou especialmente satisfeito com o fluxo dos primeiros 4 filmes – Monogram, Swollen Kisses, Capitulations Promise e Blue Sun. Isso não é algo que eu intencionalmente defino para realizar, mas descubro como uma essência/aspecto desses filmes enquanto eu tentava sequenciá-los. Foi muito surpreendente para mim – eu nunca teria pensado em sequenciá-los do jeito que eu fiz. Por exemplo, eu imaginei que Capitulations Promise, o filme com a música da Lana Del Rey, nunca poderia seguir o filme Swollen Kisses com as canções de Julie London. Eu pensei que precisariam ser separados por causa de sua semelhança de sentimento e humor. Em vez disso, descobri a eficácia de sua proximidade intuitivamente através de um árduo processo de tentativa e erro que exigia múltiplas visualizações de diferentes sequências de teste. houve uma grande crueldade e honestidade necessárias para acertar. Trabalho muito duro! Quanto ao que você está chamando de “de-sync”, nunca ouvi esse termo antes e gostei muito! Eu mantenho a exigência muito alta em termos de ter motivos para usar uma determinada peça de música, especialmente canções pop. Muitas vezes é importante que a imagem entra e saia de sincronia com a batida da música para criar um contraste e contraponto ritmicamente. Como já disse, estou muito interessado em mudar o envolvimento do espectador com a imagem à medida que o filme avança – então passando da música para o silêncio ou efeitos sonoros, muitas vezes produz uma significativa mudança que altera a forma como as imagens são absorvidas e compreendidas por um espectador. Eu também costumo editar imagens para serem muito ativas e rápidas em uma breve pausa silenciosa na própria música. Minhas edições estão continuando o ritmo e também criando um som silencioso que preenche visualmente essa lacuna auditiva.
Falando mais em de-sync, como você torna isso uma opção em seus filmes?
Swollen Kisses é um bom exemplo de como trabalho com o que você chama de de-sync. Criei um mash-up de músicas da Julie London onde ela é literalmente cantando consigo mesma. Tive a ideia de fazer isso porque estava atento ao fraseado de Julie London e o tempo claramente excessivo que ela pausas nas entrelinhas da letra. Esta pausa silenciosa foi longa o suficiente para permitir que outra letra de uma música diferente de London fosse cantada. A justaposição resultante das letras de 2 baladas românticas cria uma nova versão alternativa de ambas as músicas. Há uma abertura narrativa, poética oferecida por esta abordagem que encoraja a interpretação do espectador – um novo e terceiro fluxo que contém continuidades e descontinuidades assim como minhas imagens.