Reflexões corridas sobre representações do bicho

Reflexões corridas sobre representações do bicho[1]

Por João Lucas Pedrosa

 “Profeta, ou o que quer que sejas!

         Ave ou demônio que negrejas!

Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno

         Onde reside o mal eterno,

      Ou simplesmente náufrago escapado

      Venhas do temporal que te há lançado

      N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo

         Tem os seus lares triunfais,

Diz-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”

         E o corvo disse: ‘Nunca mais.’

“O Corvo” (1845), Edgar Allan Poe; trad. Machado de Assis

            Em “A Grande Testemunha” (1966), de Robert Bresson, o protagonismo é de Balthazar, um burro que, no decorrer dos anos, é posse de diferentes pessoas. De cara, nos grita que tipo de animal é o burro: é um animal inofensivo, indefeso, de carga. Carga humana que o monta ou carga material em seu lombo. Não é vistoso ou grande como um cavalo, mas sua vida é, ainda, andar pelos outros e com o peso dos outros sob o desprezo alheio. É um animal marginal.

A direção de Bresson é particularmente pungente nesse retrato, sua conhecida estética de despojamento: a técnica de direção de atores envolvia exaurir os atores (que preferia chamar de modelos) para que, de um corpo quase sem expressão, sob rígida contenção cênica e expressiva, uma graça metafísica pudesse se manifestar de uma proposta estética alimentada pela negatividade. Aqui entra a força do burro-modelo. Balthazar passa de mão em mão e tanto sofre como assiste a diversos abusos. Em efeito Kuleshov, vemos plano e contraplano com Balthazar enchendo, como por osmose entre os planos, as esferas negras que usa para enxergar de expressão, de significado. Há um diálogo em particular entre Balthazar e os animais enjaulados no zoológico onde nosso personagem principal carrega palha. Um diálogo não verbal; mas um diálogo, à medida que cada tigre, urso e macaco emite som, e os olhos esbugalhados do elefante da cena, emitem algo muito próximo do desespero – que Balthazar nada pode fazer além de assistir (daí a alcunha de “testemunha” do título brasileiro). As mortes e abusos que acontecem com humanos nos filmes de Bresson são sempre em extracampo: quando o padre que dá título a “Diário de um pároco de aldeia” (1951) morre, nele existem olheiras, mas o corpo não se fere; o suicídio de Mouchette (1967) é um jogar do corpo na água, e o corpo desaparece de nossa visão; a pele de Jeanne D’arc jamais entra em contato com o fogo. A vida some do corpo, mas ele jamais se destrói. Os corpos humanos de Bresson são destituídos de carne, pois são matéria de graça. Porém Balthazar é um corpo que sofre: vemos sua cauda pegar fogo quando um moleque perverso quer divertir-se às suas custas; Balthazar leva um tiro no lugar do mesmo moleque, anos depois, agora um fugitivo cujas cargas levava no lombo. Vemos a ferida em seu corpo indefeso, que lentamente se deita e escolhe esperar a morte entre as ovelhas até o último fade out da fita.

Eis aqui que a divisão res cogitans (substância pensante, o homem) e res extensa (substância que não pensa, o animal e/ou o vegetal) entram em choque: pois a substância pensante não esboça expressão facial/corporal – que em última instância, aparenta emoção -, mas o animal sim. Segundo Susan Sontag, nos filmes de Bresson, os protagonistas tendem a ter projetos mais importantes que a própria vida, pois refletem uma “luta contra o peso, contra a gravidade de si mesmo”[2]. Balthazar acaba por incorporar a mais profunda inocência pois é incapaz de ter projeto; como uma eterna criança que passa pela escravidão e que é, portanto, a vítima por excelência da humanidade.

Perco-me em Balthazar pela inversão muito pungente da ideia de que o animal é inferior ao homem – relativizada, senão totalmente rejeitada pelo filme de Bresson. O animal é mais legível que o homem, e agente despertador de uma compaixão dilacerante. Eis a inversão maior, pois o animal tende a ser o que não compreendemos: ele é movido pelo que compreendemos como instinto (assassino ou de sobrevivência) e, portanto, supostamente muito mais instável e imprevisível que nós, regidos pela consciência e pelas normas sociais. O poema de Edgar Allan Poe que aqui uso de epígrafe é potencialmente a mais irônica representação de choque entre as duas formas de funcionamento: um corvo velho pousa no umbral de uma biblioteca (o símbolo do acúmulo do conhecimento) e gorjeia toda vida uma máxima: “Nunca mais”. Numa lógica mais desprovida de sentimento, é tudo que o animal aprendeu a falar. Mas cá está uma criatura da noite a gorjear o mais contundente limite a um homem de suposto grande saber na mais amaldiçoada hora da noite. O eu-lírico pensa por demais (a auto destrutiva exacerbação de pensamento também é presente em “OCoração Delator”) sobre a frase e a projeta em seus fantasmas pessoais – pois não só de lógica é feito o homem – e afunda-se num horizonte sem fim de melancolia. O corvo aqui, enquanto animal, é como Balthazar, representante de um conceito superlativo: se o burro é a inocência em Bresson, o corvo é a sentença do eterno para Poe. A ave mostra exatamente a máxima deslocada de contexto, gatilhando todos os contextos de finitude que atormentam uma subjetividade pensante. O eu-lírico tenta ler a máxima sob a luz de seus tormentos e se afunda cada vez mais neles, num exercício quase masoquista: ele não vai conseguir tirar nada além de “Nunca mais” do pássaro, sendo ela demônio, profeta, ou apenas uma ave.

A intangibilidade da forma animal acaba trazendo ainda alguns outros significados quando tratamos do conceito de “metamorfose”, o humano cuja forma torna-se animal sem perder a essência. Penso em Seth Brundle, protagonista de “A Mosca” (David Cronenberg, 1984). Cientista, tem o DNA fundido com o de uma mosca num acidente de laboratório, e o filme acompanha o processo desta transformação de homem em mosca. Primeiro, ganha força extrema, instintos sexuais exacerbados; parece ter virado um super humano. Então caem suas pele, dentes, cabelo: é a esta forma grotesca que esses poderes pertencem. Mas ele continua a amar sua namorada mulher e, após, por motivos bem próximos da moral humana (impedir o aborto do feto que fecundou já geneticamente modificado na amada), cometer algumas atrocidades e causar um acidente que dilacera seu corpo, ele puxa sobre a cabeça artrópode o cano da espingarda que a amada segura – seu último gesto de consciência é um pedido de eutanásia. Por volta de 2012, viralizou na internet o vídeo de uma cobra se devorando vorazmente numa loja de animais estadunidense[3]. Cientificamente, a explicação para o bizarro evento é relativamente simples, a cobra passava privações e calor em sua gaiola, condição que intensificava os instintos da sede e da fome, e a levou a tomar como presa a primeira coisa que visse se movendo: a própria cauda. É trágico, entretanto involuntário; a humanidade que marca a diferença entre o gesto da cobra e o de Seth fica sendo o desejo de morrer, a vontade do fim.

Essa condição carrega um outro tipo de agonia na mais celebrada obra kafkiana, “A metamorfose”. Gregor Samsa, um belo dia, acorda como um enorme inseto. Não existe motivo para esta mudança, nem a descrição do processo metamórfico que dá nome ao livro. Como em “O Processo”, não precisamos saber por que crime Josef K. está sendo acusado ou se realmente o cometeu: do que precisamos é que ele tenha que passar por tudo que passa sem nunca saber o porquê. Acontecimentos sem razão são o motor narrativo de Franz Kafka, movido a vertigem de sofrer consequências de causas impalpáveis. A consciência de Gregor, portanto, não mudou absolutamente nada: ele ainda pensa em sair da cama e (Deus sabe como) sustentar a família, mas passa – se não me falha a memória – por volta de um quarto (ou quinto) do livro tentando nada mais que sair de sua cama. Apenas para, sem êxito, tentar explicar à família o que sabe – no caso, apenas que, tanto quanto eles, ele ainda tem consciência – e ter o casco quebrado pela bengala do pai. Aqui, ironicamente, a família é quem age de forma instintiva, pelo medo, que fala mais alto que qualquer tentativa de entender se há ou não resquício de Gregor dentro daquela barata gigante. Gregor aqui acorda oficialmente um monstro, e sofrerá as consequências de ser um. Chegamos num ponto em comum entre Gregor e Balthazar: ambos são socialmente marginais por sua forma física. A Balthazar resta a escravidão; a Gregor, o isolamento e a execução. Diferente de Seth, Gregor é inofensivo. Mas, por seu corpo de barata, vira monstro social.

Invertamos a relação: uma forma de homem com instintos monstruosos. “M – O Vampiro de Dusseldörf” (1931), de Fritz Lang, é inspirado pelas atrocidades cometidas por Peter Kürten em fins da década de 1920. O filme nasce de e responde a um contexto de histeria coletiva: o pré-fascismo que buscava um bode expiatório para a crise alemã pós-Primeira Guerra. Dusseldörf entra em estado de alerta e convulsão social quando um assassino de crianças assola a cidade. Idosos e adultos não podem se comunicar mais com crianças desconhecidas sem sofrerem linchamento – o pavor da monstruosidade é projetada no primeiro homem que aparece, já que o monstro tem o rosto de um pária humano: é o lobo em pele de carneiro. A cidade está parada à noite, e até os contrabandistas pararam atividades por conta dos toques de recolher. A força policial tenta agir de um lado; a criminosa/popular, de outro. Em determinado momento, encontram o assassino com a boca na botija: um civil, em articulação com a máfia local, escreve “M” em giz na mão e bate nas costas do criminoso após um esbarrão falso. “M” de Mörder: assassino (ou de “monstro”). O título original do filme é apenas esta letra, a marca de Caim. O pedófilo anda, sem saber, com ela gravada nas costas. Em determinado momento, olha num espelho de vitrine e se depara com ela, entrando em completo desespero. Seu segredo agora é imagem social ostentada sobre a veste: é visivelmente monstro. Após capturarem-no, os criminosos juntam o povo num porão/estacionamento para uma sorte de julgamento extra-institucional, em que o advogado de defesa do réu é um beberrão – a humanização do monstro, esse atentado contra o senso comum, só poderia vir de uma mente alterada. “M” tem uma crise histérica e desabafa sobre seu descontrole. Ele não sabe o que faz, sente uma vontade incontrolável, um impulso que só se desfaz depois que já cometeu o crime – e aí, então, sente a culpa. A cidade decide eliminá-lo: ele não pode se conter. Mas a defesa diz: ele é doente! “Deve ser tratado, não morto”. O povo rechaça o contra argumento e partem famintos para cima do assassino, mas a polícia chega logo antes de executarem sua vontade. No julgamento, as mães enlutadas quebram a quarta parede: “Isto não vai trazer nossas crianças de volta. Alguém precisa tomar melhor conta de nossas crianças! Todos vocês precisam…”. O justiçamento se esquece das vítimas pelas quais quer justiçar. Já não era mais sobre elas, mas a expiação coletiva da frustração de sistema falido praticando um ódio muito pontual. No filme, é justificado pela calamidade pública; na vida real, uns anos depois, pela eugenia institucionalizada. Quando o instinto assassino se entranha por todo um povo amargo de fracasso, ele será liberado, de forma ou de outra. O bicho é o pedófilo, mas também é todo mundo.

A sociedade contra o bicho, a sociedade composta por bichos. E o animal anti-social? Me refiro aqui não ao animal contra a vida em sociedade, mas o animal contra a instituição sociedade. A hipocrisia do senso comum, das convenções sociais, da bolsa de valores, da pequena burguesia. O sistema racional, do tal ser pensante evoluído, como os poemas góticos e livros expressionistas e filósofos sessentistas já perceberiam, são exatamente como a cobra que morde a própria cauda. O sucesso do projeto da razão envolve sua própria crise, a desconstrução e a crítica da ordem mesma que a constitui. No cinema, esse extremo foi levado à excelência muito provavelmente pelo cinema de invenção brasileiro. O caso de “Mangue-Bangue” (1971), de Neville D’Almeida, chamado não à toa de filme-limite, seu motor é a recusa de quaisquer convenções de representação e narrativização – inclusive a linearidade de um diálogo; a faixa sonora é unicamente instrumental. Do mesmo jeito, rejeita o normal social comum: as pessoas filmadas fumam maconha, picam a veia, enchem a boca de maçã pra falar cuspindo e tiram a roupa sem muitas intenções. Se existe algum sentido nas cenas, é pelo choque, pela ironia do que escolhe rejeitar. A personagem de Paulo Villaça é um investidor da bolsa que começa, no meio do banco, a passar mal e vomitar sem parar; no meio do mal-estar, se chafurda na lama da rua. De vômito e de barro mancha sua roupa social clara, encharca o rosto e o cabelo de sujeira. Ali regurgita o que do social já esteve em seu sistema. Nas últimas aparições em filme, está nu, mexendo no pênis flácido e no cu, cheirando os dedos depois de tocá-los. Explora-se como um bicho, em busca de um autoconhecimento primitivo. O filme conclui com ele cagando no mato, se abaixando para cheirar a bosta, e depois se jogando no rio para se lavar e brincar na água antes de sumir mato adentro.

O animal marginal, enfim, como final feliz.


[1] A reflexão é inspirada, porém não norteada, pelo texto “Dos lecciones sobre el animal y el hombre”, de Gilbert Simondon, assim como por discussões com o cineasta, colega e amigo Felipe Leibold.

[2] SONTAG, Susan. Contra a interpretação de outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 242.

[3] “(Original) Suicidal Snake eating itself”: <https://www.youtube.com/watch?v=jIl2DSXUffw&t=1s>.

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Olhar de Cinema: Soy Libre

Por Rubens Anzolin

Marginal alado

O conceito de “liberdade” que Soy Libre (Laure Portier, 2021) carrega como empréstimo no título do filme não diz respeito a uma complexidade social acadêmica. Daí um primeiro engano, já que Soy Libre não é sobre essa ideia de liberdade como significado, mas como experiência. Laure Portier filmou seu irmão Arnaud desde o início da vida adulta até os dias de hoje, a partir do momento em que notou que alguma espécie de turning point se aproximava na vida do irmão. Quando conhecemos Arnaud, percebemos também que ele não é um sujeito afeito à câmera, não por desacreditar naquilo que as imagens da irmã podem significar, mas sobretudo por não se querer preso a um registro, a uma tipificação barata. “Isso não significa nada”, diz Arnaud em determinado momento, “Olhe o que está ao seu redor”, completa o garoto.

Soy Libre é um jogo de fricções que se encontra entre esses dois extremos, um que se acorrenta à vida real, da natureza, dos músculos, da pixação, e outro que somente se manifesta através da ideia do vídeo, do pensamento cinematográfico. Os motivos pelos quais Laure decide filmar o irmão nunca são ditos exatamente, apesar desse questionamento surgir em tela com certa frequência. Num sentido mais amplo, nem mesmo a cineasta parece dar devida importância a tal provocação, visto que seu objeto principal nunca foi outro senão a captura do tal “espírito livre” do irmão, dessa liberdade que não necessariamente diz respeito a um conceito metafórico mas sobretudo a uma guerra constante que o personagem trava contra o mundo. “Encarar os problemas de frente”, diz Arnaud, é para isso que trabalha.

Entre idas e vindas, vemos esse conflito do personagem para com o mundo se esticar cada vez mais. Arnaud é um sujeito raivoso, inadaptável, um vagante. Sai da cadeia da França em direção à Espanha. Dorme na rua, come com as mãos, furta o supermercado. À noite, sozinho, dormindo na rua, quando tenta atravessar a fronteira, Arnaud conta que não se sente feliz nem triste, sente-se normal. Isto é, para o personagem, o mundo da contracultura representa o banal, esse não-lugar é aquilo que considera sua casa. O grande segredo de Soy Libre está justamente nesse ponto onde Laure Portier e o montador Xavier Sirven entendem a importância da montagem para justificar esse embate de Arnaud contra o modus operandi da vida real. Ou seja, importa menos o que Nano (como é carinhosamente apelidade pela irmã) sente – aquilo que diz frente à câmera, sempre encabulado – do que cada um dos pequenos gestos que o ressignificam. Da raiva descomunal que carrega no corpo até os exercícios de bíceps que faz para acoplar tantos sentimentos em um corpo insatisfeito.

Soy Libre é um exercício de vida, de prender e esticar, de deixar-se levar e prender-se nesse personagem que, no fim das contas, nunca quer de fato ser registrado. Aos poucos, o filme de Portier é capaz de dizer muito sobre o espaço que rodeia estes personagens, sobre as políticas públicas que regeram a vida destes sujeitos, e mais que tudo, sobre como o passado maternal afeta suas vidas até hoje. Sobra, dessa experiência menos teórica e bem mais filantrópica, a companhia deste personagem abstrato, arredio, descontrolado. Até o momento em que Arnaud encontra sua avó, acamada, pela hora da morte. É aí que tudo em Soy Libre descamba de uma experiência marginal para descortinar por fim o segredo de seu personagem. Ante à virilidade de um menino que cresceu sem pais e atrás das grades, há ainda uma vida que se quer ser vivida, que foge de lugar em lugar justamente para tentar lograr um novo renascer a cada dia. Um presente que o fim do filme nos dá de maneira solene, não mais na imagem de Arnaud, mas na voz tranquila do brutamontes que agora descobre que vai ser pai.

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Olhar de Cinema: Alan

Por Rubens Anzolin

Sete notas sobre Alan do Rap

I) Alan deve ser o melhor filme brasileiro que assisto desde Vermelha (Getúlio Ribeiro, 2019). Herdeiro da mesma linhagem de impacto de obras como A Cidade É Uma Só? (Adirley Queirós, 2011), A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchôa, 2014) e Na Missão, com Kadu (Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica, 2016). É um cinema incontornável, impossível de sair ileso. Já visto, jamais visto.

II) Alan é um filme de ação direta, que recusa o extracampo. Tudo que existe está disposto para o jogo da câmera, não há atalhos e nem recusas. É um pacto sem retorno, quase cristalino. Resta somente um caminho: avançar.

III) Passam-se doze anos entre a primeira e a última vez em que vemos a imagem de Alan do Rap, protagonista do longa-metragem. Entre idas e vindas, o personagem reconhece a glória e a destruição, o céu e o inferno, e através dele somos capazes de abstrair sobretudo uma sensação de efervescência, de um corpo periférico esticado ao limite. Alan do Rap é uma espécie de personagem oásis, capaz de concentrar em si uma sabedoria simbólica, proveniente das ruas, da vivência do real, cujas falas revelam mais sobre o país em que vive e o contexto em que se insere do que boa parte do material acadêmico seria capaz de tratar.

IV) Acima de tudo, Alan do Rap é um orador. Da mesma estirpe de Lula, de Mano Brown, de Galo de Luta. É um daqueles sujeitos que, quando fala, sai apenas a verdade. A linguagem de Alan não faz curvas. Bem ou mal, ela diz respeito àquilo que vive na pele – e sobretudo, é importante que se diga, ela tem como principal aqueles que são capazes de entender olho-no-olho o que se é dito. Do início ao fim, Alan é sincero para a câmera. Do momento em que pede para encerrar a gravação por conta das dores no pé até o derradeiro final, com os tiros para o céu, o personagem jamais titubeia. Aliás, é por conta da sinceridade de Alan do Rap frente ao seu próprio registro que torna-se possível ao espectador conjugar um pacto com o protagonista. Alan é uma figura que abole a traição, trazendo-nos de volta para o real.

V) Quando falei em ação direta, era pra dizer respeito justamente a energia que o personagem emprega ao filme. No início dos anos 2000, Alan do Rap ficou conhecido por invadir as apresentações de artistas famosos e tomar o microfone para si. Suas apresentações eram curtas, geralmente encabeçadas por um hit popular criado pelo artista. “Favela, favela, favela, só quem vem de lá, sabe o que é sofrer”. Em poucos minutos, Alan do Rap subvertia o ambiente, os batuques, os sons, e tornava-se então o único frontman. Era uma espécie de herói do povo (não à toa que me parece justo compará-lo com os outros oradores acima citados), de corpo que convocava nos gritos de “Eu sou 157, quem fala é Alan do Rap” toda energia de uma massa, como se representasse cada um dos presentes na multidão. Ou seja, catarse plena. Uma explosão que tinha como fundamentação quase uma espécie de ritual messiânico: Alan do Rap saia das plateias, da galera, erguido pelos companheiros, até ser elevado ao palco, onde era capaz de falar por todos eles. Alan era uma espécie de escolhido. De número um.

VI) Há um gesto muito raro proporcionado por Alan do Rap no cinema de Diego e Daniel Lisboa que é o do encontro do real – esse real cinematográfico, que de tão bruto é capaz de capturar um pedaço da vida. Existem os cineastas que procuram o real, que tentam fabricá-lo; e existem aqueles poucos que são capazes de encontrá-lo. Lembro de alguns filmes como Baronesa (Juliana Antunes, 2017) ou Mascarados (Marcela e Henrique Borela, 2020), filmes que, ao meu ver, bem ou mal, tentam provocar esse encontro com o real, produzir esse achado entre sujeito e câmera capazes produzir faíscas transformadas em cinema. E há os filmes, como Alan, que não procuram o real, mas sim encontram-no, quase que despretensiosamente, de tão verdadeiramente arraigados que estão às relações humanas previamente estabelecidas entre quem filma e quem é filmado. Não existe modo certo ou errado de se produzir esses efeitos, mas é sempre justo salientar quando eles parecem se dar de modo natural, isto é, de uma forma tão direta – e, muitas vezes, bruta – que torna-se inviável voltar atrás.

VII) Existe outro gesto, ainda, que reside em Alan e que dá conta de fortalecer esse pacto com a estrutura da vida, que é o fato de Alan do Rap ser um personagem de comportamentos diversos, de altos e baixos constantes. O sujeito que, no início, ficara famoso pelas performances, que inundava a tela com seu conhecimento do mundo, é o mesmo que vem a ser cobrado pelo seu ídolo máximo, Mano Brown, quando tenta enviar a este uma mensagem direto da cadeia. Daí surge uma espécie de discussão semântica que Alan (o filme) captura muito bem, quando o líder do Racionais MC’s escolhe não mandar recados a Alan do Rap pois desaprova sua entrada na criminalidade. Entre aquilo que canta e aquilo que discursa, Brown apresenta uma espécie de discurso sólido que a vulnerabilidade de Alan do Rap talvez fosse incapaz de absorver. Se o líder dos Racionais segue sendo uma espécie de corpo fechado, de código de conduta, Alan do Rap é justamente o contrário, uma espécie de bússola moral, de bem e mal, de céu e inferno, força e fraqueza. Daí a sua magia, daí esse encanto que, de tão puro, sucumbe ao horror.

VII) Chegamos à morte, enfim. Que não à toa é uma espécie de fantasmagoria que se reproduz nos filmes que citei anteriormente (Vizinhança…, Kadu…) – e, aos quais, poderia facilmente acrescentar obras como As Mulheres Pensam (Talita Araújo, 2015), Enquadro (Lincoln Péricles, 2016) e O Sonho do Inútil (José Marques de Carvalho Jr). A verdade é que não há magia alguma na morte. Há sobretudo a certeza do fim, a certeza de que entre todas essas imagens, entre toda a dilatação temporal que se estabelece na vivência desses sujeitos, é chegado um momento em que não é possível para o cinema dar conta desse real. A morte é a consumação de que o real cinematográfico é inatingível, é parco, falho. A morte é a ruína, e o cinema é apenas os seus destroços. No fim das contas, Alan é como o próprio Alan do Rap: é um tiro pro alto, uma bomba, um retrato veloz de um destino incontornável. Uma baliza que estabelece de forma muito justa as agruras de um estado incapaz de sustentar suas próprias mentes, seus próprios corpos e seu próprio sistema. O personagem é o começo, o filme é seu fim. Tela preta. Viva, Alan do Rap.

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Passeio com os curtas do Olhar de Cinema

Por Rubens Fabricio Anzolin

Passeio com os curtas (Outros Olhares)

Acredito no risco. É sempre melhor passear com filmes do que tentar levá-los a algum lugar previamente calculado, independente das consequências. Cinema é coisa que se mexe, arte do deixar-se ir. E, portanto, seria um desserviço ativar certos filmes antes mesmo que eles nos ativem. Acredito no movimento – logo, acredito no cinema. É daí que nasce o título deste texto: passeio com os curtas. Não sobre, não diante, não frente a eles. Com. Em seus riscos e comodidades. Cavalgar pelo labirinto que os filmes abrem.

Outro adendo que considero importante: por que os curtas? Bom, a mim parecem sempre a parte mais fundamental de qualquer festival de cinema. É o espaço mais aberto para os sonhos, ruídos e experimentos. Justamente por ser um formato em que as amarras narrativas muitas vezes não se impõem, ou seja, uma modalidade quase incapaz de oferecer o esgotamento (narrativo, teórico, estético). Enxuga-se o tempo e ressalta-se a forma. Cinema total. Ou algo próximo a isso.

Pois bem, aos filmes.

A intempérie (Daniel Paz Mireles, 2022)

Trata-se sobretudo de uma obra cujo apelo é total. Conhecemos Bélen, personagem principal, logo de cara, e a sua voz é que perseguiremos durante toda a duração. A intempérie funciona ora como metonímia à condição de vida da personagem (com filha pequena, preste a ser despejada de casa) ora como fundamentação visual aquilo que a personagem transmite. A estrutura do filme é similar a de um diário de bordo – enquanto caminha pelos corredores escuros, com velas na mão, praticando seus próprios rituais, Bélen narra o desespero através da voz, no fora de campo.

Mireles pratica um esforço considerável para tentar ajustar esses tempos e espaços deslocados, operando a voz da personagem como um guia desconexo de sensações, dúvidas e sentimentos através dos movimentos de seu corpo. Ao fim do passeio, o que resta é a sensação de que este é muito mais um filme tese do que um filme síntese. Nem a inércia, nem a revolução. Uma revoada sombria incapaz de conjugar qualquer assertividade acerca do delírio que se propõe.

Cinzas digitais (Bruno Christofoletti Barrenha, 2022)

De todos os filmes da sessão Outros Olhares, este talvez seja o mais difícil de se encarar com certa frieza. Explico. É sempre complexo lidar com obras cuja força provém de um campo exterior incontornável. Nesse caso, falamos dos incêndios ocorridos na Cinemateca Brasileira (entre 1957 e 2021, já foram cinco). O movimento de Barrenha me parece, aqui, um bocado comum, que é o de lidar com a memória daquilo que se vai (e que tem-se ido cada dia mais). É uma tragédia que se estabelece antes de tudo no campo histórico, e que só vai tornar-se propriedade estética à medida em que o cineasta emula fotogramas velhos que se esfacelam (queimam, melhor dizer) pouco a pouco.  

Os dados informativos sobre o evento de cada um dos incêndios sofridos pelo maior acervo cinematográfico brasileiro, exibidos ao fim da projeção, parecem reiterar esse desejo cronográfico que antecede a aventura formal. Há um momento ímpar no filme, em que surge em tela uma cartela com a seguinte frase: “infelizmente este negativo se perdeu”. A partir dessa quebra, o cineasta fabrica uma espécie de montagem de choque, em que as palavras (sobretudo “infelizmente” e “perdeu”) pululam na tela para que, justapostas, sejam capazes de impulsionar seu significado primeiro: cinema = memória. Coisa que a própria obra, a partir daí, reitera, quando o que entra em cena deixa de ser uma de metalinguagem da destruição (os fotogramas a incendiarem) para tornar-se uma metalinguagem da construção (um documentário, no que parece uma espécie de VHS, sobre o papel formador da cinemateca brasileira). São três tomos distintos, em que cada um deles parece construir um movimento curioso, o de iniciar no caos (nas ruínas do acervo, da forma cinematográfica) até que se encontre uma espécie de redenção.

Ainda que solene, Cinzas digitais parece carecer de alguma amarra formal suficientemente aguçada para dar cabo a tantas tensões e faíscas que as próprias imagens e películas em questão carregam. Isto é, exige-se algum movimento suficientemente brusco (entre os tantos choques trabalhados) para que o filme em si possa suceder-se a pleno, sem depender de qualquer caráter cronológico anterior. Mais do que pavimentar o tabuleiro da História, é preciso saber bagunçá-lo. Cinzas digitais mostra-se um exercício interessante, mesmo que não consigo deixar de pensar no que um cineasta como Carlos Adriano, por exemplo, faria com essa espécie de material.

Garotos Ingleses (Marcus Curvelo, 2022)

Era o filme que mais queria ver nesta edição do Olhar de Cinema. De alguns anos para cá, Marcus Curvelo tornou-se uma das vozes mais distintas do cinema brasileiro. Seus trabalhos parecem fincar uma estaca definitiva naquilo que chamamos de cinema caseiro – um homem, uma câmera, seus amigos e o espaço infindável da criatividade que esse processo mínimo pode oferecer. De Não Estou Aqui (2012) a Qual É A Grandeza? (2022), os self characters de Curvelo foram se transformando, numa elipse de desolação, desilusão e destruição que toma como base as agruras dos jovens vulneráveis do Brasil. Curvelo é um cineasta da estirpe de Keaton e Chaplin. Seu Joder (personagem autobiográfico) toma as bases do fracasso de um verdadeiro Carlitos. Curvelo é um péssimo ator, e isso o transforma ligeiramente no melhor ator possível para encarnar seus personagens, porque é diante deste contexto que a figura esguia do rapaz, meio encabulada frente à câmera, dá vida a uma espécie de pudor do homem comum. Do brasileiro médio, fodido. Vida real como todos nós.

Garotos Ingleses dá continuidade a uma fase que julgo nova em seu cinema, que constantemente vem acompanhada da figura de seu colaborador, Murilo Sampaio. É uma espécie de ressignificação da desgraça que encontra mais que nunca o caminho derradeiro da melancolia. A Destruição do Planeta Live (2021) e Qual É A Grandeza? (2022) são as peças mais desafiadoras de sua filmografia, pois colocam em cheque o pessimismo para atingir uma desilusão mais simbólica, um fim de mundo concreto, cujo formalismo caseiro é capaz de se reinventar ainda mais. Garotos Ingleses faz parte dessa mesma lógica de cinema, que acompanha os últimos filmes do cineasta. No entanto, é como se o discurso do riso pelo choro (tão caro a obra de Curvelo) encontrasse aqui  uma resolução mais morosa, em que nem sempre o gesto formal é capaz de dar cabo a inquietações tão curiosas propostas pela obra.

Na trama, os dois rapazes (Sampaio e Curvelo) vão até o cemitério dos Ingleses, na Bahia, tentando descobrir se ambos possuem um “lugar de direito” para morrer entre os “nobres” ancestrais daquela terra. Como sempre, alguns gestos poéticos são levados a cabo (o mais engraçado deles, me parece, ocorre no início do filme, quando cada um dos personagens descreve sua porcentagem de ancestralidade, viajando em um barco à procura do tal local). É nesse sentido que Garotos Ingleses soa um tanto morno dentro de mim, pois ainda que se trate de uma obra acima da média dentro do que o cinema brasileiro produz hoje, não consegue dar plenamente conta de seguir atualizando essa relação fundamental do cinema de Curvelo, que é a sobreposição da invenção formal arraigada a um discurso ácido, doloroso de tão real. Bom filme, ainda que menos catártico que os anteriores.

Mais e Mais Distante (Polen Ly, 2021)

É a peça mais legível da sessão de curtas. Exibido na competição da Berlinale Shorts, o filme de Polen Ly compõem todos os códigos possíveis do cinema de arte contemporâneo. Da busca da ancestralidade aos planos estáticos que perseguem os personagens. Há pouco que se possa dizer sobre Mais e Mais Distante. Um casal de irmãos busca fugir de sua aldeia para encontrar a cidade grande, as possibilidades de trabalho e uma vida mais justa. Antes de partir, é preciso dar adeus aos mortos (seus pais), e visitar mais uma vez o local em que foram enterrados. À medida que o tempo passa, os protagonistas do filme se afastam, se contradizem, se intercalam dentro de um vazio interior composto por crenças particulares. Não há dúvida, desvio ou aventura. Não há o tal passeio que citei anteriormente neste texto. Mais e mais distante segue à risca os códigos de composição cinematográfica contemporâneos, e desemboca no mesmo gesto inerte que seus pares.

Sonata Plástica (Nelson Yeo, 2022)

É o melhor filme da sessão. E um dos melhores filmes do festival. Meio esmaecido frente a obras mais comentadas, Sonata Plástica é um elogio à inventividade. Uma peça de tapeçaria muito bem modulada entre as intrigas do distanciamento social e o reflexo do afastamento familiar. Acompanhamos o dia a dia de três pessoas, uma garota que encontra-se com a namorada em um terraço aberto, um diretor de cinema que conduz um comercial anti-tabagismo e uma mulher que sai para buscar o jantar da família desacostumada a vestir seu salto alto. Entre desvios e dúvidas, Nelson Yeo propõe um cinema da desconexão, em que cada um dos personagens atinge o pico máximo da desilusão, sublimados a uma vida de delírio longe das amarras de casa. Antes do gesto formal agudo, bem demarcado, Yeo propõe-se a pensar as relações pandêmicas através de um remix de corpos. Há dança, há paixão, há desejo e há o vício. No fim, cada um deles se encontra para comungar ao término do dia, revelando ao cabo a máxima de que é nas masmorras do lar que se escondem todos os anseios e segredos.

O passeio acabou, resta agora lidar com o apagar das luzes.

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Octopus (Karim Kassen, 2021)

Por Rubens Fabrício Anzolin

Quanto vale um plano?

Quero começar esse texto com uma provocação. Afinal, quanto vale um plano? Qual é o limite que se estabelece na arte audiovisual para que um plano possua um valor particular? Isto é, até onde pode ir um plano, o quanto ele é capaz de sustentar tudo aquilo que vem antes ou depois dele? Existem exceções e existem regras, e não caberia aqui citá-las, em meio a um curtíssimo texto de cobertura. Mas é possível lembrar de planos memoráveis na história do cinema (Murnau, Deren, Varda, Ford, Hawks, Ferrara, Sganzerla etc), planos que justificam a existência de certos filmes por, antes de tudo, entenderem que o cinema é uma espécie de suspensão, de susto, de suspiro. Magia sem fórmula, experiência acima de qualquer circunstância. Onde quer que estivessem os planos dos cineastas supracitados, em qualquer obra que fosse, certificavam-se de que eles compunham uma sensação, que, por mais carregada de contextos que fosse, sustentava-se antes de mais nada na tela do cinema, para depois sucumbir ao mundo.

Pergunto quanto vale um plano porque Octopus (Karim Kassen, 2021) me fez debater isso durante bastante tempo, sobretudo por ser um filme que se passa nas ruas destruídas de Beirute, depois da explosão portuária ocorrida em 2020. Durante mais de hora, vêmos retratos da cidade, um deslocamento espacial que busca atingir a todas as camadas: conhecemos a dor dos mais velhos e das crianças dos mais humildes e dos mais abastados, dos operários e dos donos de estabelecimentos. Mediante toda essa geografia da dor produzida por Karim Kassen, não há sequer um plano que não procure um gesto milimétrico de beleza, mesmo frente a tanta destruição. As imagens de Octopus remetem a Hopper, a Monet, à luz do sol do Barroco. Não há nada no filme que não esteja diante de uma perspectiva de abismo, de autoconsciência cristalina do que se encena.

Exatamente por isso, volto a questionar: quanto vale um plano? Quanto vale um plano de Octopus nos dias de hoje? Algumas opiniões sobre o filme dão conta de que há no gesto de Kassen uma espécie de sensibilidade, devido à forma silenciosa que enquadra os espaços, com que se distancia dos sujeitos, com que faz todos parecerem parte de uma mesma destruição. A questão é que, me parece, nenhum dos planos de Octopus é realmente capaz de lidar com a imensidão deste desastre, pois qualquer que seja sua dimensão, ela encontrar-se-á sempre no campo do irrepresentável, do inconcebível. Por isso que não há beleza no filme de Kassen que não provenha de uma espécie de ilusão: não há aproximação com nenhum dos sujeitos, não há nomes ou rostos permanentes, sequer existem palavras. Sobram imagens lúdicas, densamente passageiras, oferecidas por um cineasta que prefere uma odisséia estridente de barulhos a um gesto que minimamente se oferece a estender a mão.

Não imagino que haja uma ou outra maneira correta de se fazer cinema, tampouco de representar o irrepresentável. No entanto, parece inconcebível que Octopus seja um filme de dimensão poética que sequer aproxima-se dos verdadeiros escombros. Pois destrói a realidade da tragédia ao reduzi-la a uma beleza obsessiva, quase cristalina, incapaz de conceder ao plano aquilo que lhe é de direito – e que, não necessariamente, precisa vir harmonioso. Octopus, de tão interessado na beleza da destruição, postula-se a ser indiferente. Pois qualquer grande cineasta compreende que, da mesma forma que o riso nasce do choro, a beleza também nasce da dor. Para fazer cinema é preciso sujar as mãos.

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Rewind & Play (Alain Gomis, 2022)

Por Rubens Fabricio Anzolin

Contracinema

Rewind & Play (Alain Gomis, 2022) é um filme cuja estrutura se materializa à medida em que se desmonta. Uma peça sem avanço: primeiro acontece, para depois desacontecer. Trata-se de um negativo encontrado por Alain Gomis e sua equipe, datado de 1969, onde estava armazenada a gravação de um programa de televisão francesa com o lendário jazzista Thelonious Monk. Rewind & Play, no entanto, não diz respeito à reprodução desta fita, mas sim a um processo contrário, de esfacelar seu conteúdo até que se encontre uma nova forma. Antes de mais nada, este é um filme que se estabelece a partir não apenas do confronto, mas sobretudo da montagem que acarreta no confronto.

Para que se entenda: acompanhado por Nellie Smith, sua fiel esposa, Thelonious Monk chegava à França no final dos anos 1960 para uma tour pelo país. Antes de começar suas apresentações, o músico foi convidado a dar uma entrevista para a televisão francesa, em que pouco a pouco suas respostas eram desvirtuadas pelo apresentador. Durante mais ou menos uma hora, Monk travava uma briga crassa com o jornalista do programa, na tentativa de fugir de toda e qualquer indexação. Ele era perguntado em inglês, respondia com seu sotaque característico, meio afundado dentro de si, e então o entrevistador traduzia as respostas para o francês de forma dissimulada, como quem persegue um script ideal para o público. É como se houvesse duas narrativas em jogo: uma primeira, “oficial”, imposta pelo formato televisivo, de que Monk não fora reconhecido em seus primeiros concertos, tendo passado mais de uma década no limbo do jazz. E uma segunda, verdadeira, que surge do próprio Monk, cujos relatos históricos dão conta de confirmar, de que o pianista fora sumariamente celebrado desde que pisou em solo francês, saindo da Europa estampando a capa das revistas e sem nenhum cachê no bolso.

A partir daí, o que Rewind & Play oferece é um filme de desvios, que em seus melhores momentos encontra outras peças de representação similares a si, como Retrato de Jason (Shirley Clark, 1967) e Meeting the Man: James Baldwin in Paris (Terence Dixon, 1970). Isto é, trata-se de um filme que é incapaz de avançar sem que para isso precise retroceder algumas casas. A cada pergunta feita pelo jornalista, revemos o tape outras três ou quatro vezes, pois aquilo que Monk traz como resposta é sempre desconcertante, seja pelo desinteresse ou pela insatisfação do que é retratado. Nesse campo de batalha, a montagem de Gomis toma forma, articulando a fita até que tudo aquilo que se encontra na imagem transforma-se em filme de terror: o jornalista, em suas vestes claras, repetindo incessantemente os questionamentos, corrigindo sua imagem, seu vocabulário, suas intenções; Monk, com seu chapéu característico, fumando e bebendo sem parar, suando a fio, rindo de nervoso de cada uma das tomadas que eram refeitas.

São casos como o de Rewind & Play – diferentemente dos filmes de Dixon e Clark – em que se é difícil indexar ao cineasta por detrás do filme a responsabilidade da captura, uma vez que nenhuma das tomadas do filme foram gravadas por Gomis. No entanto, parece inegável que o franco-senegalês tenha encontrado uma estrutura-mãe para a trama do filme. Ela baseia-se na ideia de que toda e qualquer formatação televisiva é incapaz de dar conta de Monk, ao contraponto de que é através dessa mesma prisão imagética que seu rival de cena, o apresentador, irá tentar compartimentá-lo.

Eis que resta então uma única saída, que atravessa todas as formatações, e que se revela desde o início, quando Thelonious chega à França sem querer conversar com ninguém que não seja sua própria companheira. Resta apenas que Thelonious Monk encarne o próprio Thelonious Monk, que Thelonious Monk performe o jazz de Thelonious Monk. É então que aos pingos, sob a fumaça dos cigarros, os movimentos bruscos, ágeis e performáticos fazem com que a imagem fuja do confronto e desemboque propriamente na música. Não interessam mais as imagens de guerra do artista, o piano que ficava na cozinha de seu apartamento – pois não cabia em nenhum dos outros quartos, pequenos que eram -, seu reconhecimento distorcido frente ao solo europeu. Restava então apenas e tão somente o próprio Monk, despido de desculpas ou de formatações quaisquer. A música de Thelonious Monk vencia a prisão da imagem. A partir daí, não haveria mais retorno.

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Poeta (Darezhan Omirbayev, 2022)

Por Rubens Fabricio Anzolin

Conquistar o mundo

A primeira imagem de Poeta (Darezhan Omirbayev, 2022) já é capaz de encontrar uma metonímia plausível para aquilo que busca o filme: sentado em uma pequena mesa, na cozinha de sua casa, Didar escreve os versos iniciais do dia, meditando com a caneta na mão frente ao sol que vagarosamente conquista todas as paredes da morada. Ao seu lado, milimetricamente pendurada, está a foto de um homem a brigar com a natureza. A imagem é indefinida, mas seu conceito concerne um significado mais amplo. Tal qual Didar, o poeta, o sujeito da foto também parece afrontar o mundo, determinado a fazer permanecer na terra as poucas árvores que estão prestes a alçar vôo.

Antes de mais nada, é preciso que se entenda dois procedimentos recorrentes na estilística de Omirbayev, cineasta cazaque ainda pouco conhecido no Brasil. Um primeiro diz respeito a uma herança clara e declarada do realizador para com o cinema de Robert Bresson. Mais que isso, trata-se de uma tentativa de emular em seus atores uma espécie de modelo escultural, cujos movimentos são comprimidos única e exclusivamente a uma naturalidade mínima, quase metódica, privilegiando uma encenação objetiva frente à câmera quase sempre fixa. O outro procedimento fundamental no cinema de Omirbayev – e que, nesse caso, trata-se muito menos de um procedimento em si e muito mais de um conceito mestre que guia suas obras – é um rigor formal absoluto, uma consciência de que muito antes do “o que” contar vem o “como” contar.

É nesse sentido que Poeta, por mais particular que seja em sua temática, não é um filme tão distinto dos outros já feitos por seu realizador. De forma ou outra, Omirbayev sempre foi um cineasta que escolheu pôr em cheque os dilemas da criação, aplicando aos personagens mais novos uma consciência basilar, que antes de mais nada visualiza na arte o ponto final de suas trajetórias. Vem daí os dilemas que atravessam o personagem de Didar em Poeta: eis um escritor bem-sucedido, rodeado por pilhas de livros em casa, mas que pouco a pouco vê o mundo moderno tomar conta de sua erudição aparente. A mãe do protagonista deixa sua casa após ver a neta deixar-se levar pelo videogame, reencontra seu ex-colega da faculdade (segundo ele, o melhor da classe de literatura) e descobre que agora o sujeito toca um café no centro da cidade, fazendo da poesia que um dia regeu sua vida um mero adereço estampado nas paredes do estabelecimento.

Em dado momento, o filme de Omirbayev materializa esse conflito de Didar de forma clara: o escritor recebe a oferta de escrever a biografia dos antepassados de um construtor milionário. Em troca, receberia uma quantia inestimável de dinheiro, capaz de fazer com que Didar pudesse trocar os pares surrados de sapatos por modelos novos, além de poder realizar seu desejo consumista de enfim largar o flaneurie das ruas pela segurança dos carros conversíveis. E é justamente nesse momento que Poeta encontra sua maior força, e o protagonista enfim restabelece sua fé no gesto literário através de mínimas consequências da trama. Omirbayev conta que este filme surgiu como uma anedota, inspirada em um relato de Herman Hesse, lendário escritor germânico, de quando o mesmo fora até o interior da Alemanha para fazer uma leitura destinada à população da cidade e, para sua surpresa, ninguém apareceu para prestigiá-lo. O mesmo se dá com Didar, quando, no centro da trama de Poeta, ele viaja ao interior do Cazaquistão e encontra apenas uma universitária russa, aguardando sua presença. É, no entanto, através desse pequeno gesto narrativo, que Omirbayev alcança o ponto final de seu dilema. Da mesma forma que o sujeito da foto que abre o filme, a menina que estava lá para ouvir Didar possui a força de estancar o mundo. É como se, ali, por um pequeno momento, o homem da foto estivesse vencendo a natureza, como se a poesia estivesse vencendo a tecnologia, como se os poetas estampados na parede do café do amigo de Didar não fossem meros adereços, e, sim, uma memória viva, palpável, madura.

Não há muito o que se possa dizer de Poeta que não passe ao largo dessas questões conceituais, mas sobretudo é importante que se compreenda que a forma mínima e direta com que Darezhan Omirbayev é capaz de encarar o mundo através de lentos e pequenos planos, dão conta de uma estilística bastante particular. Não há nada em Poeta que não seja cristalino. Da narrativa central até a história que cruza o longa, sobre o túmulo do grande poeta cazaque Markhembet. Tudo está ali pois é assim que se pretende. E, conforme a luz que conquista as paredes da casa, o homem da foto que conquista o mundo, a universitária solitária que conquista o resiliência de Didar, Darezhan Omirbayev nos conquista pouco a pouco com seu cinema, até onde ele possa sobreviver.

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PEDAGOGIA DA IMAGEM

EDITORIA: PEDAGOGIA DA IMAGEM
Pedro Tavares

ENGRENAGENS CONTRARIADAS: O CINEMA COMO MÁQUNA DE HACKEAMENTO
Bernardo Oliveira e Luís Flores

A FLÂNEUR DIGITAL QUE REVELA OS PROCESSOS INVISÍVEIS: A CONTRADIÇÃO COMO PEDAGOGIA VIRTUAL NOS DESKTOP MOVIES DE CHLOÉ GALIBERT-LÂINÉ
Michel Gutwilen

1$$0 é UM4 1M4G3M
Lara Ovídio

RETÓRICA, OBSCENIDADE E SISTEMAS AUTOMÁTICOS – O AUGE HUMANO DE FRIEDRICH KITTLER
Bernardo Moraes Chacur

UM FILME DESFEITO
João Pedro Faro

TUDO QUE COMEÇA COMO ATIVIDADE TERMINA COMO FORMA AUTOCONSCIENTE DE TEATRO
Lucas Saturnino

O GODARD PÓS-MAOÍSTA E EXPERIMENTOS EM VÍDEO: POR UM PROGRAMA PEDAGÓGICO DE EXCELÊNCIA
Luiz Soares Júnior

HORROR E FOLCLORE NOS ARQUIVOS DO BFI: ARCADIA (2017) DE PAUL WRIGHT
Natália Reis

POINT AND SHOOT: PEEPING TOM
Michel Gutwilen

EU TAMBÉM FUI ESPECTADOR DO FIM DO MUNDO – OS FILMES MACHINIMA DE PHIL SOLOMON E O ESPECTADOR EMANCIPADO DE JACQUES RANCIÈRE
Gabriel Papaléo

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O Godard pós-maoísta e experimentos em vídeo: Por um programa pedagógico de excelência

Por Luiz Soares Junior

Pessoa em cima de cavalo

Descrição gerada automaticamente com confiança média

“Sabemos que Maio de 68 confirmou para Godard uma suspeição que já possuía: que a sala de cinema era, em todos os sentidos da palavra, um mau lugar ( mauvais lieu), ao mesmo tempo imoral e inadequado. Lugar da histeria fácil, da imunda pegação do olho, do voyerismo e da magia.”

Serge Daney, Aprender, reter ( Pedagogia godardiana)

“O verdadeiro tesouro de um Estado é a Verdade no espírito do príncipe”

Bossuet

“Vida, obra: é a mesma démarche, busca total: é o mesmo movimento que inspira viver e mostrar a vida, a mesma aventura.”

Jean-Luc Godard e a infância da arte, Michel Delahaye

  1. O introito para uma Nova Cena: Número Dois e Comment ça va, dois seminais filmes introdutórios

Em Paixão ( 1982), a operária de fábrica feita por Isabelle Huppert e inspirada em Simone Weill, a mística leiga socialista que ontem nos dera a Irene de Europa 51 (Rossellini), se pergunta diante de seu amante porque nunca mostram o amor e o trabalho no cinema; esta talvez seja a cena mater ou originária do franco suíço Jean Luc Godard, sinônimo de cinema tardio ou modernista, aquele que soube destilar a quintessência de um cinema, em todos os seus feitios e Manieri, voltados à possibilidade(s) da representação, cujo quid privilegiado é o “trabalho” infinitamente mediado, em suas articulações e tentáculos, da Linguagem; o amor e o trabalho a que Huppert se refere como ausentes da Cena/campo do cinema clássico – uma vez que em Paixão é a iconografia pictórica dos filmes de Jerzy sobre quadros en abîme que nos permitem ter acesso aos embates de sexo e de cash do fora de campo da produção artística e capitalista que suporta Paixão e o cinema em si como artesanato poiético esquizofrênico, em série industrial e em sua unicidade epifânica de Abertura de mundo- são a produção pulsional e fiduciária que amparam a obra cinematográfica, seus andaimes materialistas: e como, sendo um imenso cineasta como Godard, escapar do materialismo, esta arte tardia que nos ensina a ver a obra segundo os parâmetros da produção (somática e espiritual, financeira e sublime: do trabalho e do Espírito, do trabalho necessário à fundação do Espírito), do que a escora em seu fundamento e arrière fonds, da História e das histórias dos agentes sub-reptícios (crew, diretor, produtor, a geração à qual esta se destina e que vai desdobrá-la hermeneuticamente, lê-la segundo o seu diapasão epocal) e evidentes (o cast) a partir das quais uma obra é instilada maieuticamente no espírito do  espectador, e  acaba por fecundar a sua subjetividade segundo os cânones da alteridade do artista; Godard tardio pedadogo…não seria esta uma injunção redundante, dado que os grandes usufrutos da língua moderna enunciada pelo mestre não consistiram desde sempre em ensinar a não exata ou apenas ver o mundo aí, janela de Alberti baziniana ou cache hors cadre, mas sobretudo e de forma eminente a relê-lo, a decalca-lo segundo a Biblioteca de Babel dos codex expatriados de uma língua urdida pela genealogia da escritura fílmica? Nós, seus discípulos e alunos, aprendemos novamente a ser bovaristas a posteriori e contemporâneos de Borges, a designar a experiência hebdomadária e novelesca segundo os cânones ruminantes e romanescos do Livro.

Desde Acossado, desde os seus textos sobre Tempo para amar e tempo para morrer, Homem do Oeste, Hot Blood e Bergmanorama, não seria Godard este paradigmático pedagogo, aquele que vai ensinar, em todo o mundo e sob o vórtex de dessemelhantes, embora sempre de ruptura, histórias do cinema (Fassbinder nascituro, Skolimowski, Glauber Rocha, o cinema liberto da cortina de ferro, o cinema trabalhista inglês, o cinema guerrilheiro latino-americano, montagem dialeta extemporânea à la Kluge e contemplação dialeta sub espécies/intempestiva segundo Straub-Huillet, o viajante balada-existencial de Wenders, e  é claro o uso saturado e especular do vídeo esquizo em The blakout de Abel Ferrara e paranoico futurista em O príncipe das trevas de Carpenter), a como ser modernista, a como acolher numa arte da imagem os dons deste esperanto universalista de uma língua cifrada (daí a  necessidade da pedagogia: ela é dada em potência pela montagem, mas esta potência precisa ser atualizada pelo manejo demiúrgico do artista dialeta, ser ativada pelo significante em sua ronda imanentista) que desde então será absolutamente nossa: nosso destino, nosso Verbo feito tool de conhecimento; com Acossado, segundo Lourcelles, perdemos a inocência “e a magia natural do cinema”, e segundo Melanie Klein todo território usurpado pelo conhecimento é um paraíso perdido “(…) o cinema, como que ferido, ficou mais triste, menos criativo, mais consciente de si mesmo” (Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes); Lourcelles, eminente crítico com o senão de ter reduzido toda a história do cinema ao apogeu de seu período clássico (1910-1950)- e, de portanto, estabelecer como cânon de seu interesse principal as virtudes da transparência, do cadre frontal e central, do raccord teleologicamente orientado, do campo e  contracampo causalmente dialogais, da história bene trovata e raccontata-, enfim: cada filme se constitui em uma figuração da reconciliação; com a  acuidade de um grande hermeneuta do espírito clássico, Lourcellevê Godard com a  justeza daquele inimigo que, segundo nos ensinou o Freud do narcisismo das pequenas diferenças, deve ser eliminado porque revela muito de nós mesmos, porque mesmo que com esmero e  erudição, como sempre foi o caso de Godard, é o nosso révelateur em negativo: o cinema clássico foi majoritariamente inocente (há exceções, que só confirmam a posteriori a regra) porque eludiu, recalcou ou sublimou, por exemplo, os materiais de produção e ereção da obra propriamente dita, como a economia e a sexualidade em jogo no ato de amar e trabalhar, ainda segundo a operária de Passion; Lourcelles viu em Acossado advir à Cena principal tudo aquilo que os clássicos haviam deixado na beirada do plano, hors cadre tópico e hors champ estrutural: os faux raccords (deses)estruturantes de Acossado são apenas a figura mais escandalosa para aquele que, como na letra evangélica, sempre temeu a exceção da virtù clássica como o Diabo temeu a cruz; Lourcelles admitiu os barrocos, como Welles e Blake Edwards , mas jamais um tardio como Godard, justamente porque o metro clássico reativo que vê o pantagruélico espírito barroco como exceção a ser suprassumida já foi ultrapassado pelo cineasta tardio, que vê tudo segundo os fins últimos da arrematada irreconciliação; Godard jamais pôde ser cotejado com os clássicos porque mesmo fazendo filme seus contemporâneos a eles sempre esteve muito à frente, interessado menos no objeto a ser descrito pelas formas do filme do que no disegno da própria forma ou estrutura que se debruçava sobre o objeto; a Godard nunca interessou o raccord diretivo ou a história bene raccontata, como a Risi ou Freda, porque mesmo em um filme a princípio neo-clássico como O desprezo ( que, sob um ponto de vista genealógico e diacrônico, deve antes ser visto como contemporâneo de Paixão ou Sauve qui peut (la vie) do que de Les carabiniers ou Experiment in terror) o classicismo para ele sempre foi aquele privilegiado objeto de mise en scène e cadre a ser eficientemente manejado espacialmente pela câmera bisturi e temporalmente pelo faux raccord da infinita repetição entrópica das andanças de Piccoli: jamais existiu como um meio neutralmente aquoso para, transparente, permanecer invisível e deixar ver apenas o conto a ser contado; para Godard, nunca houve exatamente transparência senão enlutada , em O desprezo  quando da cena reveladora do acidente fatal de Camille e do produtor: a Mulher, ou o Eterno Feminino a que a eleva seu trágico desprezo para com o marido, cúmplice do produtor na operação de aviltamento da esposa (objeto de cena animado dentre outros a ser contabilizado no cômputo geral de objetos ‘valor de exposição’ do filme). Em Sauve qui peut (la vie) e Paixão, filmes tardios mas romanescos do período pós-maoísta, no início dos 80, uma espécie de índex mnemônico da transparência impossível (um plano do céu límpido-lazúli, lavado de luz, nos créditos em Sauve qui peut e segundo o pv de uma personagem protagonista em Paixão) volta para conflagrar a obsessão do classicismo como uma Origem a que só podemos voltar outros, diferidos pelo trabalho sistemático de seus arquétipos-significantes. Voltaremos ao neo-classicismo tardio ou diferido de O Desprezo (oxímoros sempre falarão melhor do que eu) e ao tardio romanesco dos filmes supracitados depois, mas a questão ad hoc deste texto se coloca: para um diretor que nasceu e permaneceu votado à pedagogia como Godard que mais-valia trouxe para um cinema mais de leitura ou elucubração que de percepção gozoza e ultra-ficção o interregno maoísta?  Que tools, que parênteses e notas de rodapé trouxe para a pedagogia brincante École des hautes études dos anos 60 esta cartilha guerrilheira voluntarista (para distingui-lo do Leninismo, estatal e com colaboração secundária dos camponeses ou operários) do final dos 60, onde o dispositivo e  o simulacro são reivindicados para, sob a base materialista do estudo sistemático do contracampo e de ativação maiêutica do fora de campo com o propósito do estabelecimento da Verdade dialética (a biifronte, biface de Janus que tanto fascinou os surrealistas em seus collages fantasmagóricos), o mundo representado se torna também aquele que pode ser, senão precisamente transformado pela luta operária, pelo menos virado de cabeça para baixo, trabalhado ad libitum por significantes flutuantes pois submetidos a um devir saturado de negatividade; se na Origem tudo era apenas registrado epifanicamente (Lumiére) ou artesanalmente recriado numa Cena teatral (Méliés), a historicidade inerente à técnica News on the march do cinematográfico solicita a criação de devires, ferramentas, mecanismos, artes da arte que possam dar conta de todo este tempo decorrido desde a Origem (precisamente: um artista tardio, que dialoga com a  tradição e a traduz/tradire para os seus contemporâneos e coetâneos de zeitgeist). Sim, trata-se de, como um guerrilheiro poiético, investigar as bases- o corpo do dinheiro, da técnica, o corpo soma, o corpus operário-, pois a infra-estrutura agora é o vértice principal da pirâmide: o que podem nos falar as aventuras da economia, da política, do trabalho, do sexo? Neste período de avant-garde monista discípula de Engels, Godard abandona em sua maior parte a fabulação superestrutural para se concentrar em sua produção infra-estrutural. Aqui, vou me centrar primeiramente em dois filmes exponenciais para o desenvolvimento da pedagogia terrorista do período maoísta e da experimentação em vídeo que se lhe seguiu, filmes que se intercalam e intervalam segundo o diapasão crítico que conheceu seu ápice nos meados dos 70, condições necessárias mas não suficientes para a reviravolta esta sim decisiva, em termos de hermenêutica e depuração formal, das duas primeiras obras-primas dos anos 80.

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa
Nuvens no céu

Descrição gerada automaticamente

1.a) Comment ça va: Os intervalos do sentido

Em uma conversa entre Godard e Serge Daney, um insight se afirma de forma virulenta contra o marasmo enlutado do leitmotif da “morte do cinema”: “O cinema clássico filmou as coisas; o cinema moderno, o que existe entre as coisas”. Este espaço-tempo intersticial, que nos apresenta as coisas do mundo antes de tudo como relação, preside de forma paradigmática a todos os filmes de Godard, estruturando-os como aventuras cognitivas e fenomenológicas da Diferença. E Comment ça va talvez seja o seu filme pedagógico mais acessível, talvez por nos apresentar as divisas de seu combate sob a forma de petardos panfletários, enunciados de forma categórica pela personagem feminina, que junto ao personagem do comunista dirige um filme em vídeo sobre as condições de trabalho na França do final dos anos 70. Mas se em Godard o que importa é menos a manifestação das coisas do que sua interpolação dialética, temos, além das discussões sobre representação e Poder que os co-diretores empreendem, também o diário do cotidiano de um casal, além de dezenas de fotos e um crescendo ruidoso, que informa e transborda o filme: a Revolução dos cravos. É sempre assim em Godard, e Comment ça va talvez o ilustre mais exemplarmente que qualquer outro filme desta fase: os consórcios entre os corpos e as paisagens (naturais e culturais) ressoam e amplificam um fora de campo inominável, político, histórico: nada do que nos aparece se dá de forma impune; nada é inocente. Tudo é o efeito de uma camara obscura da significação, que imanta o espaço intermediário entre as coisas com seus virtuais prolongamentos hermenêuticos; tudo deve vir a significar, mas a Iluminação pelo sentido apenas pode se dar no entrechoque do collage: nada preexiste às coisas em si ( não há mais, como no idealismo do classicismo, a crença em
coisas em si), e sim advém no devir de sua provocação recíproca: imagens e sons, diegeses, histórias e Histórias.

Homem tocando piano

Descrição gerada automaticamente

“O cinema que nos interessa é o cinema da escritura, e a escritura pressupõe necessariamente um espaçamento entre as linhas: o fora de campo” (Daney). Não há outra dívida para os modernos senão esta, e o cinema de Godard sempre se empenhou em resgatá-la: é preciso não apenas mostrar, mas desvelar significações e analogias, emprestar à matéria imagética uma espessura cognitiva que a imagem, a princípio inocente, parece recusar; a montagem é esta operação violadora, cuja função consiste em forçar a imagem a pensar, e este processo necessariamente implica a coabitação desta com outras imagens e sons, geralmente em décalage em relação ao que nos é mostrado. A montagem é o instrumento privilegiado do fora de campo (aqui chamado de Olhar), já que se incumbe de fraturar o plano presente, submetê-lo ao império do descontínuo, e assim infiltrar a atualidade do que se mostra com a virtualidade da hipótese: a montagem impõe à imagem a injunção de abandonar o Éden da fascinação e aportar no Purgatório da linguagem, a abandonar o hic et nunc epifânico do campo em nome da ambiguidade enunciatória do fora de campo; em Comment ça va, o personagem do Comunista, acostumado a ver o mundo sob o prisma “infra-estrutural” dos modos de produção, vai sendo conduzido a interpretá-lo em termos superestruturais de significação e espólio cultural, e o vídeo documentário sobre as condições de produção de um jornal francês acaba necessariamente por anexar à sua démarche a Revolução dos cravos portuguesa , mas também o romanceiro da relação de um filho com a memória de seu pai, reciclada através de sua mais nova relação amorosa; as imagens que não vemos da Revolução cravos (acessível apenas através de duas fotografias, que adquirem um devircinematográfico ao dialogarem entre si, através do campo e contracampo e do fondu), das greves e comitês, assim como do pai desaparecido, presente unicamente através de cartas, são os motivos orquestrais do filme: tudo aquilo que vemos é informado por um contexto vertiginoso, que ultrapassa fronteiras geográficas, de língua e de classe (ultrapassa não: suprassume-as). O fora de campo é uma experiência de generosidade hermenêutica, pois oentr’acte amoroso como o encontro ideológico encontram seu lugar como cúmplices em uma estratégia terrorista de dessacralização da imagem vista pelo significante lido; se Comment ça va é um filme estrutural de dialogismo, jamais poderia ser considerado um território de reconciliação; o que Godard busca é justamente chamar a atenção para o processo, nunca estacioná-lo em um termo: a construção do olhar, a imantação significativa do campo pelo fora de campo, a discussão de papéis (o Homem e a Mulher, o Patrão e o Empregado, o Diretor e o espectador). Se as coisas constituem um ponto de partida inalienável (Godard é um grande cineasta, assim parte sempre de uma base materialista: a máquina de escrever, o copo de absinto em primeiro plano, a máquina de impressão) , é apenas se as considerarmos como trampolins, necessárias mas não suficientes, para a edificação do sentido.

1.b) Número dois: O software do corpo

Para o Godard experimentalista do vídeo, este é uma figura da negação hegeliana, agora devidamente encarnada em uma matéria antitética, pois contrapõe-se ao idealismo platinado de definição da película 35mm: a perda desta definição nec plus ultra equivale à Queda do Éden do Bom, do Belo e do Justo (tríade platônica luminosa, mas também exclusiva, exclusora: do corpo, do dinheiro, do trabalho) de que o classicismo reconciliado um dia foi o habitat; quando monta Número dois, Godard tem por objetivo/objeto a desconstrução da sexualidade segundo a economia restrita do corpo do casal e da conversation piece do grupo família: para a enunciação terrorista do pedagogo dialeta, porém, o corpo não é mais um organismo ( velha concepção metafísica: sistema, com seus cânones e exceções a excluir), e sim adquire a configuração-bild de uma fábrica atual ou de uma paisagem (número 2: imagem virtual); ao colocar como princípio o Era uma vez desta fábula sobre o trabalho e o sexo, ambos são visados sob um mesmo arquétipo gerador, gerenciador, pois o corpo é agora antes de tudo, segundo a atualidade do campo enunciativo, fábrica; eles se trocam e se engendram mutuamente segundo a moeda de troca fiduciária da produção (de imagens); em Número deux, tudo é binário, porque para engendrar o sentido é necessário pelo menos um par, para o fucking hell literal e selon l’esprit da Significação é preciso pelo menos dois: o beijo de Erland Jospephson em Liv Ulmann  (na TV acima) em Gritos e sussurros e o meeting revolucionário (na TV abaixo), modulados, trabalhados, vindicados pelo patron Jean-Luc, pois o cinema é , como a TV (decadência da baixa definição, função crítica do vídeo decaído da tríade platônica: um corpus binário) uma fábrica de vertiginosa produção em série; como, porém, extrair desta série indiferenciada de imagens que se cristalizam em um corpus binário (acima, abaixo; na frente, atrás, como um corpo humano submetido à coreografia pas de deux do sexo), como ativar neste registro indiferenciado e interminável, neste vórtex de imagens que desfilam na tela-plateau a ideia de um software, de uma coisa pensante, à semelhança do Descartes acossado pelo demônio da dúvida? Cinema binário, Número 1 e número 2! Godard intitula de número dois talvez o seu filme mais sistemático e de metódico divertissement sobre o corpus binário que governa nossa vida e representações, jouissance e mediações: infra-estrutura e superestrutura, entre trabalho e obra; e lembram-se de Daney?: “O cinema moderno acontece entre as coisas”; é no interstício, no intervalo, como intervalo, que as coisas se imantam e colidem, e um dia talvez venham a significar, na cabeça do espectador; se Comment ça va investigava o trabalho e  a técnica tendo como fora de campo as cartas afetivas entre um pai, um filho e a aurora para a política dos 70 da Revolução dos cravos, Número dois permanece devedor do fora de campo (a fábrica de sonhos do cinema, a televisão agora como tool crítico, pelo uso de sua baixa definição), mas o grande paradigma desta investigação sobre significantes flutuantes e significados fixados (pela tradição, pela cultura capitalista, pelo valor de exposição no caso do cinema e da televisão, e eis o que é preciso desconstruir) é a indagação inaugural, que ao cabo nos reencontra: a fábrica geradora de imagens também pode conter uma virtual paisagem? O contracampo é o rodapé do campo, aquilo que a posteriori permite a sua ressignificação. A pedagogia maiêutica, de campo a contracampo (contados os dois quadrados televisivos que ocupam a mesma tela, na penumbra do estúdio de montagem) é aquela cartilha que permite ao cineasta-pedagogo deflagar a essência- aquilo que faz do corpo o que o corpo é, seja este uma paisagem, uma fábrica ou o corpo bípede do homo faber-e  ativar sua possível história, o disegno de seu devir, aquilo que um Heidegger cioso da virada da política-pólis para a poiésis da obra de arte (ambas obras, ambos corpos imantados por devires e demarcados por um eidos) chamou de Gesicht; nesta virada mediada pela negatividade decrépita do vídeo, Godard empreende também um trabalho de arqueologia genealógica, e como uma criança que segmenta primeiro a palavra em suas porções indecomponíveis para só depois visá-la sob a Gestalt de sua totalidade, começa pela parte, pela partilha, pela unidade irredutivelmente primeira do quadrado que divide a tela, magnetizando-a de dialogismo à la cópula hadware/software; aqui, o sexo e o dinheiro revelam seu quid e contam sua história, conjugando-se segundo as categorias desta arte tardia cuja grandeur culture da técnica em sua enésima potência é a pré-condição de sua maioridade conceitual; melhor, mais eficiente e coerentemente do que ninguém (genialidade do contracampo clássico, reeditado aqui a serviço da diatribe dialética), Godard o soube fazer.

Reflexo de homem em frente a televisão

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Todo corpo em Número dois é uma via aberta possível para a designação de qualquer palavra; você é bom ou mal papel?, pergunta o avô para Nicolas , e queima um pedaço de papel para achar a sua essência inaugural, sua matéria imaterial, ou quid…O corpo da fábrica, o corpo da paisagem se resolvem definitivamente por intercessão daquilo “que é dito”, mas ao contrário dos capitalistas e dos pensadores da metafísica da subjetividade jamais esgotamos o tesouro do dictum: ele permanece sangrando, jorrando gotas vultosas de sentido; o cinema clássico, como a  cartilha clássica significante/significado, porém, nunca admitiram esta incondicional abertura da coisa, sua historicidade radical, e assim a aprisionaram na torre do significante único, ideal e imune às estripulias da alteridade aí, no mundo; mas a fórmula continua a mesma, embora aberta e porosa às intempéries da História: ao serem ditos, enunciados, designados, eles, os corpos, se tornam paisagem, fábrica; Saussure e Melanie Klein- aquele que se interroga sobre os significantes, aquela que designa o mau objeto- comparecem aqui para questionar o corpo do significado, a sua base infra-estrutural; e um parênteses: lembram-se que Hollywood sempre foi designada, pelo menos segundo os capitalistas judeus escapados em uma segunda leva do nazismo (sim, um fora de campo ) que  a levaram a prosperar como usine à rêves, como fábrica de sonhos? Em Número dois, Godard cava e cava ainda mais, e se questiona como uma criança que habita ainda o introito da enunciação, o limiar de sua existência: o que é um corpo? E o que é uma paisagem (ou La nuit, segundo a recodificação eletrônica que as letras sofrem no filme)? A fábrica de sonhos de que sonhos foi feita, então? Qual o seu quid, a sua matéria, a sua história? Não há respostas definitivas ou significante terminal na jornada aberta aos idioletos da cultura de Godard, pois talvez precisemos esperar até meados dos 80 para a urna funerária Summa Histórias do cinema; aqui, ainda sumariamente modernistas, ficamos com os estilhaços binários. Só há questões, em sua potência infinitista, jamais atual: Em um recorte de vídeo que ocupa o centro da tela e reivindica a intensidades ressoantes do fora de campo (memória, imaginário: sim, uma fábrica de sonhos), uma mãe de roupão convida a meditativa filha que come a dançar, e se encaminha bailando para o fundo do plano; é isso: Número dois pretende inventariar a história do significante-cinematográfico, daquilo que ocupa um plano, e  para isto ele precisa indagar da Origem, do gesto originário: a mãe que dança, a filha que come; mais-valia e infra-estrutura, trabalho e divertissement: o cinema foi uma arte binária, e o vídeo é aquele complemento sectário de má-consciência pensante (voltemos a Descartes: uma coisa pensante e seu usufruto de fantasmagorias, de gênios perversos, de tristeza e de exceção), de culpa metódica, de diferença irredutível que vai fazê-lo funcionar segundo a materialidade negativa do pensamento, que nunca foi natural: o pensamento, para que possa advir, deve ser objeto de uma fricção inesgotável, de uma torção e uma gestão por excelência anti-natura dos elementos naturais ‘de base’ fotográfica do cinema.

Tela preta com letras brancas

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Como no sexo, por exemplo, objeto privilegiado para o questionamento ad libitum do pedagogo terrorista: o sexo não pára de falar; o sexo humano é uma enxurrada de significantes que tentam emular trechos e posições e gestos de corpos que jamais vão acabar de se dizer e foder mutuamente; foder é falar, como trabalhar e nascer e morrer, e neste sentido Número deux é um filme de ação tão válido quanto Rio Bravo ou Rio Lobo de Hawks, porque é um filme da absoluta vitória da enunciação (e quais foram os grandes filmes de ação senão aqueles em que o corpo fala, incondicionalmente?): há um revelador diálogo entre a mulher e o homem do casal prototípico usado aqui; ela, masturbando-o suavemente, diz: “Quando vc vai trabalhar, eu olho para a sua bunda, coisa que vc nunca pode olhar diretamente; e quando vc volta do trabalho, eu olho o seu pau”: é isso: falar todos falamos, como órgãos e paisagens, mas para falar corretamente, para dizer a verdade justa no sentido do Juste une idée do Godard do período intermediário, é necessário adotar uma posição adequada e um modus operandi de falar: para que o Homem finalmente veja sua bunda e goze com a visão da mulher, são necessários justos Método e  posição: a jouissance, o supra-gozo da significação é sempre questão de uma base de situação/libação/enunciação finita, de uma conjugação consoante, de uma posição no espaço do plano e segundo o tempo da montagem, pois a pedagogia pressupõe que haverá sempre uma má linguagem e uma boa, usufrutos da valoração como são as coisas significantes: então, é preciso ensinar, designar, enunciar adequadamente; Número dois , um filme em película sobre um filme eletrônico, é dos maiores filmes pedagógicos de Godard porque nos permite, com os meios das coisas-corpos e seus traços e posições, chegar à lição de sentido que sem as coisas jamais seriam.

2.a) Sauve qui peut (la vie): O capital do Renascimento

Texto, Carta

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No início deste texto, me referi à empreinte mnemônica do céu azul lazúli, oficioso plano roubado à gesta de epifania clássica da divindade grega, que o Godard de Paixão e o Oliveira de Não, ou a glória de mandar chegaram a filmar, presente tanto em Sauve qui peut (la vie) quanto em Paixão; no primeiro filme, ao céu lavado de luz superpõem-se os créditos: é como se Godard filmasse o Renascimento de seu próprio cinema, sob os auspícios e augúrios da luz neo-clássica, daquela mesma que  viu nascer L’arroseur arrosé e Viagem à lua (sob o céu de cartolina pintada), o primeiro registrado e montado diante do próprio evento hic et nunc e o segundo cozido e costurado às expensas do teatro do estúdio; para reencontrar uma nova Origem, ponto de partida a que todo dialeta pedagogo sabe que precisa retornar começando- uma repetição eivada da diferença de toda esta história que passou desde a aparição do primeiro fenômeno, agora mediado/meditado/modulado pelo devir de sua própria história, como o Hegel da fenomenologia cansou de nos ensinar-,  é preciso reencenar a Origem: seu décor, sua luz, seu contracampo, sua iconicidade e seu fora de campo; é preciso tirar o próprio mito do mito, este salvífico (a aparição dos deuses) e originário (Lumière) do céu tamisado de nuvens; o esteta modernista acolhe no seio de sua própria eclosão (lembremo-nos de que se trata de um recomeço de carreira, retomada de certos cânones narrativos de estúdio que em Godard jamais vão coincidir com uma práxis acadêmica, é claro, mas em todo caso temos uma tentativa de reinserção/reconciliação com codex já estabelecidos, com situações e compassos já dados numa certa histoire du couple do cinema francês contemporâneo, de Sautet a Pialat) a Origem que viu os clássicos nascer e morrer, pois se em Sauve qui peut é o registro ontológico ,fotogramático do céu que se manifesta fenomenalmente, amealhando o capital visual de uma certa infância ex-nihil do cinema, em Paixão será o céu rugoso de tinta e enquadrado excêntrico de Poussin, Goya, Velásquez, filmados pela mesma câmera que filmara o horizonte lumieriano: cinema ontologia, cinema féerie, repartidos entre dois filmes, Sauve qui peut e Paixão, que se complementam exemplarmente como a história do cinema se refratou e consumou a partir de duas eminentes origens; em Sauve qui peut Godard é vidente, ontólogo, fenomênico, documental, mas também já anuncia as manipulações da imagem cinética de que os cavalos cinematografados de Muybridge nos deram o paradigma cinético das Origens com seu uso sistemático da câmera lenta, demonstrando-nos e mostrando-nos ( verbo este que também se difrata em seu cinema ora votado à especulação dialeta rigorosa, ora à aparição do fenômeno em seu esplendor irisado de luz) que o quid de uma técnica, se aprofundada com sistema e arché consequentes, também pode nos revelar (o révelateur que está na base da produção fantasmática da imagem cinematográfica) o sentido de sua História, de sua destinação epocal; Godard vai começar semi-documental (ou documental pós-maoísta), com estes planos anamorfoseados pelo slow motion de Nathalie Baye correndo de bicicleta pelas estradas frondosas de árvores, mas não estaca aí, porque o seu cinema binário (intelectivo e epifânico) dos 80 precisa tudo raccordar segundo o faux raccord da dialética tardia, que conhece agora segundo o metro de stacatti de tempos mais lentos, digressivos; materialismo oblige, ele vai nos dar mais uma lição de economia somática, ao nos apresentar à personagem de Isabelle Huppert, jovem prostituta que cruza o caminho do combalido casal burguês do cineasta e da host de tv; o corpo aqui , pelo menos segundo o paradigma com que são filmadas as ententes sexuais de Isabelle Huppert, se negocia segundo o modus operandi das prostitutas ninfetas dos anos 60 (a prostituição é um leitmotif chave da obra de Godard, para falar do corpo fascinatório de nitrato do star de cinema que também é um corpo de puta sob holofotes obscenos, como o final inspirado no Retrato oval de Poe de Vivre sa vie vai cruelmente ilustrar), mas o modus vivendi existencial do Tempo e hermenêutico da ironia godardiana são elementos chaves para esta sua late versão: os corpos que se traficam e experienciam vivências de revelação diante da Natureza, os corpos que trocam ideias ou silêncios ou digladiam sobre a mesa, todos possuem tempos próprios, todos se medem segundo o fá concertante de um Godard que achou uma maneira irreconciliada de aliciar para seus ensaios laboratoriais sobre os devires da matéria no capitalismo tardio os ágios ascéticos da Graça baziniana; o filme contemplativo Sauve qui peut (la vie) é também um estudo pós-maoísta, e  portanto diferido pelos social jokes da ironia de Godard, sobre o corpo em exposição do capitalismo tardio, como esta amiga de Huppert que nos mostra os seios para amealhar capital de mais-valia diante da jovem aprendiz de putaria vai nos ensinar; “Todos se julgam mutuamente, e  o cinema julga a todos”: pensava ainda segundo uma escala reativa o Godard de O desprezo, que eu considero de acordo com paradigmas genealógicos e diacrônicos contemporâneo de Sauve qui peut (la vie); por que o cinema julga a todos? Porque a câmera vê e ouve de forma eminente aquilo que a finitude nega à persona individual, e estabelece uma arena recíproca de julgamentos parciais arregimentados pelo Julgamento totalizante da montagem, Logos concêntrico feito dos excentrismos de cada visão parcial; Sauve qui peut (la vie) é talvez o filme do late Godard em que mais limpidamente este entrecruzamento reciprocamente revelador de julgamentos nos aparece, em parte pela sua dimensão de base lumieriana (pós-refratada pelo uso da câmera lenta, e portanto relida, é bom repetir), em parte por ser aquele filme onde podemos observar com clareza rutilante de sol os efeitos do aprendizado que o monismo materialista do Godard maoísta e experimentador do vídeo terá sobre uma obra de cinema mais convencional, romanesca. 

Homem olhando para o celular

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Se pudermos pensar em síntese a posteriori obras tão singulares, devemos pensar que Sauve qui peut trabalha uma síntese diacrônica de Comment ça va, cujo objeto de desconstrução são o trabalho e a ideologia de gauche, e a sexualidade de Número dois, entendida aqui também como trabalho mas, digamos, no sentido do “imediato indeterminado” hegeliano- a prostituição, o trabalho não-mediado do corpo como eixo de uma cadeia de produção de jouissance; espelham-se e especulam entre si o casal ‘de proxenetas’ da Cultura feito por Dutronc e Bayle e a garota um tanto desiludida demais para estar viva feita por Isabelle Huppert, cuja voz off soma-se à de Nathalie Baye como consciência desencantada do filme; Godard, materialista discípulo de Engels e, para as filmagens da Natureza, de Lucrécio,  filma o trabalho de Bayle e o de Isabelle como se fossem uma coisa só, prolongamento coerente do sexo no braço e mão que suscitam a stylo da escritura, como se de uma ponta da cadeia de trabalho (o sexo) à outra (a escritura, a representação) só existissem gradações e modulações, não necessariamente uma diferença de natureza, acrescentando-se o adendo de que talvez sintomatologicamente (ideologismos) a única profissão que é maculada de interdito em Sauve qui peut, que não pode sob nenhum pretexto ser mostrada in loco é a de cineasta de Paul Godard, mas volto a isso: a prostituição é em Godard a metáfora mais literal possível ( e, portanto, de estrato materialista, estritamente cinematográfica: um A é a enunciação de um A, não a figuração metafórica de um A) para falar de uma arte tardia, técnica e economicamente tardia, que entretém para com o capitalismo uma relação de sórdida dependência (Isabelle, masoquista que consente às regras do jogo perigoso para poder dar seu mate quando a hora chegar: Os caras só querem nos humilhar), relação de implicação epocal esta que nenhum supra-idealismo neo-clássico vai conseguir jamais sopesar, nuançar, amenizar; correlata à tese in extremis mas justa de Virílio de que o cinema foi o aliado iconográfico da guerra total nazi-fascista, Godard pensa que a prostituição é o vade mecum necessário, revelador do capital, e  portanto ela deve comparecer no cinema como tool iniciático da sua Verdade; se o artista é tardio, desconstrucionista portanto, desiludido um tanto, sistematicamente dialeta, ele tem de aceitar como partis pris de base de sua função que esta serve ao capital como a putinha ao cafetão octagenário; esta é, aliás, a  condição sine qua non de sua situação radicalmente epocal (sim, do fato de ter chegado cedo demais, de co-pertencer ao seu zeist como essência de seu sein): aqui como no maneirismo de Fassbinder, arte também too late, é necessário pagar a  dívida infra estrutural que uma arte tão cara e refinada em matéria de técnicas deve ter para com o produtor ou cafetão sofisticado, persona non grata mas indispensável cúmplice que assombra como o fora de campo para-vidente ao campo ultra-evidente toda a obra de Godard;  é claro que esta dura constatação é amortizada pelo a posteriori dos cimos de sublime das obras de Godard e Fassbinder, e a boca que efetiva o boquete na Cena iniciática de um ménage à trois,  a um terço do final do filme, no escritório de um investidor de boca pintada de rouge entre Londres e Paris ( de fato, Godard faz aqui uma indireta homenagem ao casting sexista do início do Saló de Pasolini, ao filmar uma pirâmide sadeana), é também aquela que recita Duras, o Sartre do Imaginário e Blanchot; aliás, não lhes parece estranho que a obra sobre a qual recai o interdito judaico de “Não farás imagem de teu Deus” (Êxodus, 20:3-6; Isaías, 40:18-20) seja justamente a do cineasta, que aqui nunca nos é mostrado au travail, prostituindo-se portanto? Jacques Dutronc, misantropo e de charuto onipresente, é a persona fálica do franc tireur Jean-Luc em cena, e não podemos deixar de nos lembrar do tio amalucado de Carmen e do professor Pluggy de King Lear para nos dar conta que Godard sempre cultivou em Cena um tipo de personagem nada agradável, projeção de si mesmo que arregimentara os adjetivos não exatamente auto-lisonjeiros do artista enquanto jovem cão; ao morrer atropelado aqui, Paul Godard também terá direito à decomposição semi-metafísica do movimento que vai imantar de aura momentos chaves do filme, mas ao contrário de Acossado, seu primeiro longa onde o herói também morre numa avenida urbana, Godard não poderá ter os olhos cerrados definitivamente como Michel, no contracampo para o rosto constrangido de Patricia: sua morte é simulada, inventada, encenada, mais uma palhaçada clin d’oeil  (“Não estou morrendo, já que não vi as imagens da minha vida montadas diante de mim”), com o Suicidio! da Gioconda tocado por uma orquestra intempestiva de músicos clássicos; a dignidade do The end da morte própria lhe é negada, e é pela fresta, dobra reversível entre a finitude da montagem e os subespécies da Natureza contemplada, desta morte não definitiva, desta reconciliação impossível mas mesmo assim solicitada aos deuses da arte que vai passar toda a obra do último Godard dos 80 e 90, impregnado de uma suave esperança de redenção, da relocação urbana do mito da virgindade Mariana em Je vous salue Marie ao capitalista ressuscitado de Nouvelle vague; de todo modo, o que mais me chama a atenção em Sauve qui peut é que, à exceção dos outros filmes, todos aqui trabalham segundo o parâmetro infra estrutural somático (a puta) ou superestrutural blasé (a roteirista), e  a dimensão propriamente crítica desta hierarquia está em que não existe no filme uma hierarquia precisamente: o braço, a boca, o pau e a cabeça pertencem a um mesmo continuum laboral, sendo Godard aqui coerente com seu trabalho maoísta de desconstrução: não há significantes nem significados mais ou menos nobres, há valores que os fixam no quadro negro de determinada cultura; tudo começa no cu, e embora nem sempre termine por lá permanece dependente, situado, devedor desta energética radicalmente finita, mortal, situada/sitiada do corpo (somático, econômico, político, etc)

Em uma sequência de sala de aula perto do início do filme, Sauve qui peut enuncia conjuntamente a divisa durasiana (…que le monde aille à sa perte) e o credo terminal do final de Cuidado com a puta sagrada de Fassbinder (“Não terei paz até que ele esteja completamente destroçado”) segundo uma profissão de fé mais positiva, mas em sua essência, desvelada pela neutralidade desolada da fala de Dutronc, ainda mais niilista; num contracampo dialógico para com o campo de Bande à part, onde no quadro negro a giz se lê a divisa Clássicos=modernos (1964), no mesmo  quadro negro a giz agora se lê: “Cinema e vídeo-Cain e Abel”; Paul Godard, num plano frontal e central de concêntrico classicista que tem como plano de fundo a supracitada escritura, enuncia a divisa Godardiana cujo eixo organiza o sentido de todo o cinema tardio de Godard, cinema do horror vacui, da superabundância dos significantes, do Filho exilado na clareira da Linguagem, do ave rerum corpus nostálgico da Presença clássica desaparecida, do montador Vertoviano que releu Engels e foi contemporâneo de Kluge, do terror diante da página em branco: “Se eu falo, é porque não tenho a força; se tivesse a força, eu me calaria”; quem, trabalhando com o Espírito, nunca se sentiu tentado a se identificar com a sentença de pregnante melancolia do cineasta? A força aqui é uma figuração energética da monumentalidade clássica, ao mesmo tempo inatingível e irredutível; se Godard não pode atingir a unidade, a totalidade, a teleologia causal, o contracampo dialogal- enfim, a reconciliação clássica-, ele é condenado a preencher laudas e laudas, como planos e planos, de significantes que gritam, o horror vacui tardio; para incorrer numa analogia menos despropositada do que parece, Gianni Vattimo, filósofo italiano e discípulo de Heidegger, inventou de uma genealogia muito idiossincrática a expressão pensiero debole (pensamento fraco); é o pensamento contra-metafísico, anti-sistema e anti-summa, o pensamento que se sabe mortal, finito, epocal, destinado à caduquice do amanhã; pensamento fortemente vinculado também à terra, ao corpo, à Natureza, a tudo aquilo que sofre a ação dos devires do ser, na contramão da eternidade da essência, daquilo que dura eternamente, fortaleza conceitual inexpugnável; não foi sempre este o sistema anti-sistema das construções Godardianas? A sua sistematicidade é eivada de aleatório e casual, como de intempestivo e concatenação desordenada, embora ao cabo tudo encontre a luz e a ordem da significação, como dizia Hanna Schygulla numa entrevista: “Ele me mandava olhar para aqui, para lá; eu nunca entendia o porque. Só ao final, vendo o filme é que eu podia perceber que os olhares eram sabiamente dirigidos”; o risco corrido deliberadamente por Godard de nos dar não uma obra acabada, mas um rascunho, um conjunto de rascunhos mal alinhavados faz seminalmente parte de sua aposta modernista, e  sua grandeza consiste justamente na assunção deste risco; a cada contracampo, os perigos da afasia, do dito arbitrário, da besteira mesmo; mas Godard sempre jogou este jogo com a maestria de quem se sabe jamais mestre, e sim antes de tudo um discípulo eleata dialeta- um tanto como aqueles que acompanhavam atentos os mestres Sócrates e Jesus para depois, depois de sua morte, rascunhar ao bel prazer dos que chegaram por último seus evangelhos apócrifos, onde a verdadeira ave rerum Verdade se ocultou, resguardada do anátema da exegese legalista canônica-, um cadinho dinâmico onde se acumulam dialogalmente os dictums de uma rica tradição, com qual ele (como Heidegger na filosofia, como Proust e Flaubert na literatura, estes enciclopedistas gigantescos) estabelece um acidentado (a medida justa de sua riqueza: a aposta radical) contato; conter a força seria calar diante dos sub species aeternitates dos castelos idealistas, fechados às intempéries dos ventos e das marés da finitude; no cinema, estes castelos foram majoritários filmes clássicos, com as características assinaladas aqui a propósito de Lourcelles: frontalidade e centralidade, raccords teleologicamente orientados, etc; é claro que, por exemplo, o cinema clássico americano sempre riu de si mesmo, e  seus filmes de ação são, como os de Sacha Guitry, senhores de uma considerável caixa toráxica que a mise en scène converte em significantes vivos, encarnados no genial casting de seus protagonistas e coadjuvantes natos para a cena, mas para propósitos de esquematização genealógica podemos classificá-los assim; ao mutismo  estarrecido diante da grandeza da Obra metafísica clássica, Godard crítico de cinema e cineasta crítico (a problematização do negativo) preferiu ir semeando buracos, crivos e notas de rodapé no corpo plenipotente da tradição, filtrando e minando simultaneamente a herança clássica de acordo com o seu credo temporão; ora, qual afinal o papel da decomposição do movimento operada pela câmera lenta em Sauve qui peut (la vie)? 

Pessoas em gramado e montanha ao fundo

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Herança do trabalho do vídeo (Paul Godard é um diretor de filmes em vídeo), a regressão ao irredutível quid cinético da imagem cinematografada tem o propósito de sublinhar trabalhando a temporalidade inerente ao ser do movimento: o movimento, simulado agora pelo andante sostenuto da decomposição cinética, dá a ver que é urdido de tempo, que no tempo se fez e ao tempo é destinado; enervado intensivamente pela montagem, revela e recorta para a jouissance do espectador atento às escamaramuças dos significantes’ naturais’ seu eminente fantasma, o artifício ontológico temporal de que é feito; Godard dialeta fantasia um filme novelesco filosófico no qual, ao invés dos personagens e situações de ação concatenada, quem realmente protagoniza a Cena é um pouco de tempo em estado puro, como dizia Bergala, capturado pelo metrônomo da câmera a serviço da metralhadora da montagem; um certo inconsciente do plano de cinema é aqui investigado, mas este reside menos no contracampo, que foi na majoritária obra de Godard sempre o andaime paratáxico para-sintático do campo, do que nesta enervação do movimento agenciado pela câmera, que desde o Vertov construtivista materialista ao Eisenstein construtivista melopatético das escadarias em êxtase foram as inspirações arquetípicas de sua invenção criadora. Ao capital monetário da roda da fortuna dos produtores, Godard contrapõe o capital de seu Renascimento, um tanto de tempo em estado puro mobilizando e aliciando para a sua invisível mas onipresente ronda fiduciária a joia, plástica e meditativa, de um filme de ourives que é também uma obra maturada de pedagogia libertina; em Godard, jamais haverá a palavra nem o phisique de rôle terminal, definitivo, pois vasta, múltipla, Outra é a sua enunciação de terrorista conotativo.

Texto

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Mulher de óculos com a boca aberta

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Paixão.

2) b. Uma luxuosa iconicidade

“Quem diz romantismo diz arte moderna- ou seja, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração ao infinito, expressa por todos os meios contidos pela arte”

Charles Baudelaire, citado por Hubert Damisch em Fenêtre jaune cádmium, ou les dessous de la peinture

Pessoas em pé em frente a água

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Paixão começa com o céu translúcido de luz e nos abandona no meio da estrada, a caminho da Polônia do sindicato Solidariedade, home bittersweet home: o verdadeiro itinerário é a obra daquilo sem o qual a Pintura e o Teatro, de que o cinema herdou a Bild , o cadre e os andaimes, seria nada: o espaçamento de que falava Daney, ou o fora de campo da cabeça do espectador;  é o filme mais icônico que conheço, no sentido transcendental kantiano: aquele filme segundo o qual entendemos e exercitamos o sentido da iconicidade, o seu irredutível quid; de Panofsky a Elie Faure e Arasse e Winckelmann e Ruskin estivemos todos lá: o filme dos filmes, ou a radical aposta genealógica; de seu in extremis tardio, para entender a história da iconicidade no cinema Godard precisa retroceder, retomar fôlego e posicionar-se straight, assim segurando as pontas da história da pintura para continuar a ser escrita/projetada: foi preciso esperar pela Summa alegorista das summas Histoire(s) du cinema para que a história do herdeiro dilapidado fosse contada, mas em Passion é o conto da vicariância do Poder, da substituição das cabeças reais, da Revolução que mesmo que tenha degenerado em ditadura tirou a soberania das mãos do sagrado corpo vitalício; o corpo do Rei, sobre o qual Kantorowicz escreveu páginas tão memoráveis, é este suntuoso, untuoso dos vestidos da princesa de Vélasquez, do exército traidor de Goya, dos girassóis tumefactos de cor em Van Gogh ou dos corpos em decomposição da Realeza abolida mas perpetuada no sangue corrupto dos mortais, em Francis Bacon; obra-prima que soube arregimentar os dons mais conspícuos da tríade moderna da representação que teve como objeto supremo a imagem: Pintura, Teatro, cinema; na genealogia nietzschiana, o arquétipo salvífico eminente (a ser desconstruído, é claro, ou destronado) é o sacerdote; dele advém todas as demais figuras salvadoras ou portadoras de ‘cura’: o médico, o professor, o bobo da corte e seu ersatz no artista e no filósofo de Estado, o psicanalista, o professor…mas Godard já está do lado de lá, da vita activa, afirmativa suprema de uma realeza que, segundo palavra recente sua, não deve nada a ng senão à nobreza de sua própria arte, que existe para libertar e não para aprisionar, cercear, impor interpretações restritivas; creio que com Passion ele fez jus a este intento revolucionário sem precisar abdicar da herança nobiliárquica dos séculos que nos contemplam contemplá-los; os revolucionários em geral são uma pobre, minguada gente, sem cultura nem gosto, possuída apenas por seus ímpetos, mesmo que a serviço de causas justas, de inversão e transgressão de valores e tronos; Godard não: este modernista, este artista incondicionalmente tardio provou de tudo e de tudo de melhor deu mostras de seu gosto, talento, refinamento, e assim exercitou-se (apesar de ser um temporão, e portanto a princípio restrito à preeminência da linguagem supra-diegética  e hors champ sobre a diegese ficcional, fabulística) como documentarista, romanesco, novelista, memorialista e, na página em branco como na tela, crítico…Passion é um dos cimos de sua obra, e portanto da história do cinema moderno e modernista (para não confundir); não basta descrevê-lo, narrá-lo, artes comezinhas; trata-se aqui do usufruto da própria vida.

Uma imagem contendo pessoa, vestuário, homem, mulher

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“Você pode me dizer porque, nos filmes que eu vejo no cinema ou na televisão, nunca se mostra o trabalho? (…) então, devo concluir que no trabalho é como no amor, que eles também não mostram; não exatamente na mesma velocidade, mas tratam-se dos mesmos gestos. No trabalho e no amor”. E em off, um assistente ao telefone mais adiante, quando de Hanna diante do monitor de vídeo mimetizando a si mesma: “Os mesmos gestos. No trabalho e no amor”. O gesto em Passion, devidamente iconizado em suas série(s) de representações encarnadas, seus tableaux vivants esterilizados pelas bordas da tela-cadre, é a passagem ao ato de que falava Jacques-Alain Miller, mas também o arbeit freudiano, elaboração do afeto que solicita um infinito, fantasmático trabalho; o gesto é um índex encarnado de afetividade, de Cultura, de Alteridade, e em Brecht ele assinalou a si mesmo para dar conta de todo contexto de sua eclosão; o Godard de Passion é, en abîme do Godard de Prénom Carmem e Sauve qui peut ( la vie), um cineasta tardio que filma os sub species de mármore e ouro fulvo da era clássica (paradigma) da pintura moderna ( cronologia): o que espera ele das damas desnudas de Ingres, das infantas de Velásquez e dos monstros do sonho de Goya? Talvez injetar-se, como um drogado psicótico no pico de heroína, um tanto de inspiração imorredoura, daquela velha e boa cepa que do Febo de Platão ao texto de Foucault sobre As meninas sempre espreitaram da borda hors champ do Godard bibliófilo e cinéfilo, artes estas sem transição possível; Passion é , como dito no início deste texto, dentre todos estes citados o filme kantiano do late Godard, porque busca ilustrar com exemplos ofuscantes de clarividentes o que faz da coisa aquilo que a coisa é: ens trancendums; a pintura é aquele horizonte de fundo de que o cinema partiu para não voltar, pois nasceu arte animada e excêntrica, no travelling terrorista de front do trem dos Lumière; na Pintura, em sua estaticidade e diafaneidade de disegno, tudo ainda era possível de se eternizar; com o cinema, a arte abdicou desta arte e encarnou em suas hemiplégicas mãos e esgares terríficos do expressionismo nascituro a pallida morte futura, agora presente embora descontínua por efeito da montagem, com que Virgílio saudou o Purgatório de Dante.

Jerzy busca beber desta fonte idólatra como ontem os maneiristas se serviram e  seviciaram da obra do Pai para uma anamorfose perversa que lhes daria uma sobrevida extemporânea: a impossível jouissance, de que os travellings estertóricos de Fassbinder, a câmera encarnada de mimetismo psicopata de Dario Argento, os split screens de lateralidade pós-hitchcockiana de De Palma nos deram as amostras mais fecundas nos 70, comparece em Passion de uma maneira dúplice, esquizofrênica, porque sob o Panorama móbil dos bustos e monumentos do travelling lateral que enobrece a visão com a vidência cúmplice das vertigens de uma arte fascinatória , leniente (Jerzy filmando, encobrindo a contemporaneidade sob a lógica centrífuga do tableaux vivant, da escultura tridimensional animada) comparece ‘para corromper e sublimar’ a filmagem de Godard, por exemplo neste zoom out desvelador com que a equipe de filmagem nos é flagrada pela câmera inconfidente de supetão; Passion não é um filme maneirista, porque o seu objeto de estudo não implica a apropriação da carne do filme pela anamorfose: estamos diante de um filme que filma um filme sobre o neo-classicismo, mas jamais confundiremos todas as dimensões, como o psicótico-tipo das aventuras tardias dos 70 confundiria; o fora de campo em Godard permanece um conceito e uma experiência chaves, e é ele que nos liberta do peso venenoso invocativo da alucinação maneirista, que impede que naufraguemos em suas tormentas especulares: os adendos, as notas de rodapé, as ementas de que a voz off e o contracampo dialeta em Paixão nos dão o fôlego diacrônico e genealógico ( mantidos os estrados estritamente separados, irredutíveis) são típicos do late Godard, verdadeira Biblioteca de Babel convertida em carne fílmica; em Passion, para nos desvencilharmos definitivamente da hipótese dos resquícios maneiristas, o fantasma, embora seja presentificado nos dilemas dos protagonistas, nunca vence, pois ele é eclipsado pelo conjunto das mediações deliberadamente postas em Cena, em jogo, na obra-patchwork: o ‘fantasma’ de Godard é sempre superestrutural, e  aqui particularmente contextualizado historicamente pela relevância em Cena e fora de campo da Polônia natal de Jerzy, a  terra do sindicato Solidariedade, ‘para onde’ o filme se arremata em brecha de intempestiva abertura, cognata à abertura política trazida pelo sindicato à Cortina de ferro polonesa (sob esta perspectiva, Passion daria uma excelente sessão dupla com Classe operária, de Jerzy Skolimowski); é o professor, o dialeta, o bibliófilo quem engendram a marcha avante do percurso, libertando-nos dos perigos mefíticos mas tentacularmente sedutores da fantasmagoria psicótica, cultuada/masturbada pelos cineastas literalmente maneiristas.

A primeira sentença citada acima (da consanguinidade entre o trabalho e  o amor, oclusos ambos em sua obscenidade ontológica, do campo do cinema clássico) pertence à operária virgem Isabelle, que percorre o espaço concêntrico da fábrica em greve; a segunda, ao assistente de Jerzy, cineasta, que filma uma Paixão moderna ( para os metafísicos, como os pintores de Passion: 1600, 1650) com os restos dos traços, numinosos ou ensombrecidos, de uma vasta, geológica história (istoria; una istoria!, suplica o produtor italiano de Le Mépris aqui revisitado, Ponti, gesticulando em fá maior) iconográfica, de Goya a Velásquez e de Velásquez a Delacroix e Ingres; Passion é um filme do gesto feito ícone, e  portanto ele transpõe a crença baziniana na Graça/graça do corpo que se abre no gesto à história das Formas; a postergada e agora assumida reconciliação irreconciliada (primazia do patchwork dialeta) de Godard com a contemplação baziniana tem em Passion a dimensão cultural/cultual de introito nobilíssimo; Nouvelle Vague vai nos servir a contemplatio da Natureza enquanto tal, e consequente urdidura do gesto de consagração (as mãos em unção salvífica) no mito do Cristo/capitalista ressuscitado; em Passion, ficamos com o encantamento do eikon ritual, o andante cerimonial da visita guiada, a empreinte de fausseté de veneração litúrgica, a Beleza saturada de luz e hierática da pose do Quattrocento, que o cinema revisita para reintegrar auraticamente, para se dar uma nova chance, o direito a uma nova Eternidade; tudo o mais se reveza e intercala nesta balança , entre ideal e materialista, da História e do mito, ou da História mitificada, vitrificada pela unção do ícone; para dizer um tanto mais, digamos que em Godard, cineasta das matérias, a História do mito é tomada como objeto de investigação hermenêutica, é transfixada na tela-cache como algo a ser desvendado na diafaneidade de sua própria aparição: os quadros se animam sob o influxo dos travellings, como ontem a última ceia sob a inspiração da palavra joanina: “Em minha memória”; mas tudo é embalsamamento do Gesto ritual, que começa no humano e se monumentaliza no cadre de uma arte das grandes escalas, das dimensões ciclópicas, dos tempi dilatados pelo usufruto do silêncio; os gestos ebúrneos e impregnados de introspecção mediúnica de Isabelle, Hanna e Jerzy (metteur en scène amoroso, entre-deux histriônico de uma inocente deidade clássica, feita para o 35 mm do Febo platônico, e de uma madura semideusa neo-clássica, feita para a rugosidade do vídeo) estão, como nos lembra o Daney do “entre as coisas”, recortados contra o horizonte moderno do interstício; cineasta modernista e moderno por excelência, Godard filma a temporalidade Aion desta carícia aracnídea sobre um dorso de mulher de Ingres: ele filma o percurso, não o princípio ou o arremate; o gesto godardiano é inteiriçado entre dois tempos, e se move na direção de sua própria  germinação; entre seus gestos instantâneos ou casuais vigem os gestos imemoriais dos bustos clássicos; e o classicismo o que foi senão uma arte da luz, que soube retirar da casualidade e intempestividade do minuto humano um fulgor e uma perenidade de metal precioso?

Pessoa com a mão no rosto

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Peguemos uma cena como esta em que Jerzy acaricia virtualmente as mãos de Hanna, que está sendo reproduzida numa pequena tela de vídeo diante de si; ambos, todos nos falam de trabalho e de amor, e  do gesto encarnado (Jerzy acaricia as mãos de uma Hanna reticente, hesitante em se ver representada, e portanto castrada do devir da vida, como tantos de nós diante do vídeo: ela canta com dificuldade Mozart), gesto que efetiva a ponte entre ambas as dimensões, afinal segundo Isabelle nem tão distantes assim: “(…) talvez a velocidade seja diferente, mas a essência do gesto é a mesma”; ao trabalhar e amar, ambos investimos todo o nosso ser; trabalhar e amar possuem também devires intensivos, como são atos de absoluta intransitividade, de gestão de um Absoluto diante do qual soerguemos as mãos em unção de Graça profana; mas a Origem de tudo continua a ter como fundamento a pistis paulina, aquela em que o Derrida de um colóquio em Capri, vila profana, viu “elaborar-se, antes da ligação que habitualmente atribuímos à ação religiosa, uma horizontal separação do ser e do homem; antes de ligar, a  religião é o índex de uma separação primeva”; e não é esta separação que a carícia nas mãos de Hanna visa abolir, como o travelling untuoso no dorso da musa de Ingres e aquela superposição/rima, perto do final, entre os rostos recortados um contra o outro de Isabelle, a virgem ( Jerzy a chama de um caminho fechado) e Jerzy? A arte, como o trabalho e a religião, nascem à sombra da separação , mas se elaboram afetiva e plasticamente como a tentativa-erro ( precisamente: uma experiência e um experimento, a experiência histórica de um experimento, como em todo o destino de fases, transições e rupturas traçado pela história do Godard crítico e cineasta) de uma reconciliação entre o ente e o ser de que o separaram; Passion começa a contar esta história na carreira de Godard, cineasta irreconciliado por excelência que finalmente acha a via régia de um dialogismo há muito pressentido como essencial com a  paternidade baziniana do cinema moderno: sim, filmar o “entre as coisas”; em Passion, vale a divisa jansenista de Jacques, o fatalista, que Bresson filmou em 45 em As damas do Bois de Boulogne: “Não há amor, mas apenas as provas do amor”; sem o gesto, índex mnemônico da reconciliação almejada- sem o gesto, correlato e eminente, de amar e  trabalhar ( de amar o trabalho, como la mort au travail, no dictum enigmático de Cocteau), como oferecer provas deste amor invisível à Presença de que o cinema foi a presentificação materialista em nosso século enlutado? Passion é a história de amor retomado entre Godard e a realidade, aqui ainda sob a ‘istoria’ da res extensa da História das Formas em uma procissão andante sostenuto em direção à Eternidade, de que Jerzy/Godard solapa, no zoom out em que se revela a situação da filmagem ( cast, crew, hors champ tópico da filmagem propriamente dita) a continuidade maviosa dos primeiros tempos para nos restituir a descontinuidade da montagem cinematográfica como a  grande ferida narcísica do neo-classicismo presentificado em Passion: um cineasta irreconciliado efetiva aqui uma reconciliação possível, à época do Sindicato Solidariedade (outra experiência, desta vez histórica e política, de reconciliação sob a condição da Justiça histórica , de assumir os expurgos como o preço a pagar pela virada do degelo) com o Real, e o gesto, índex de uma iconicidade luxuosa, de uma mais-valia grandiloquente em matéria de trabalho do plano de cinema, é sua ponte excelsa; mas antes de tudo trata-se da reconciliação com estes casos de amor insofismáveis e indomáveis, presentes tanto na escritura de Bazin quanto na de Rossellini, deste amor à realidade que foi o óbolo a pagar para reparar a separação primeira, de que todo o primeiro Godard constitui a demonstração consequente e contundente; Passion é a mais fascinante prova de amor dada ao mundo por aquele artista que todos sempre pressentiram viver a separação do mundo ( a mediação) como seu habitat essencial; na história do cinema, é um filme monumento sobre monumentos irrecuperavelmente fúnebres e uma prova de amor filial digno da misteriosa Origem que foi seu objeto primeiro e último.

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Engrenagens contrariadas: O cinema como máquina de hackeamento

Por Bernardo Oliveira e Luís Flores

“A história da câmera de filmagem coincide com a história das armas automáticas. (…) Para poder mirar e fixar objetos em movimento no espaço, tais como pessoas, há dois procedimentos: atirar e filmar”.

(Friedrich Kittler)

1. O controle dos detalhes

Partindo da linha da reflexão do teórico das mídias Friedrich Kittler, que associa a gênese do cinematógrafo ao desenvolvimento das tecnologias de violência e controle, podemos abordar o filme-ensaio A saída dos operários da fábrica (1995), de Harun Farocki. Na ocasião dos cem anos do cinematógrafo, considerando que a visão das máquinas se tornava um instrumento sistemático de ordenação e coerção da realidade, o cineasta alemão retomou a cena primordial em que os irmãos Lumière filmam, na empresa de seu pai, os empregados deixando o galpão da fábrica. Farocki observa que “nunca antes se havia visto imagens do movimento das pessoas. É como se a partir desse filme o mundo passasse a ser visível.”

E o que se vê nesse que é considerado o primeiro plano capturado pelo cinematógrafo?

A princípio, Farocki nota que há um enquadramento: os trabalhadores aparecem na tela para desaparecer logo em seguida, na medida em que fogem desse enquadramento. As primeiras imagens do movimento do mundo são marcadas, portanto, por esse dinamismo, por essa troca contínua entre o que é enquadrado e o que foge do quadro. E ele prossegue: esse filme se destina, sobretudo, a mostrar que se pode ver movimento nas imagens. E que movimento é esse? Farocki observa que uma força de atração, uma força magnética parece puxar os trabalhadores para fora da fábrica, “como se soubessem que fora da fábrica tudo se torna melhor, tudo se torna outra coisa de contrário à vida na fábrica.”

Então, ele desdobra o problema: a fábrica não ostenta letreiros suntuosos, nela não se visualiza nenhum signo de poder. Também não se pode visualizar, ainda, o poder dos trabalhadores. Contudo, por conta do regimento interno das fábricas, todos os operários saem e entram juntos. Outras imagens de trabalhadores deixando as fábricas em que trabalham são exibidas, como que reforçando o argumento. Farocki, então, mostra alguns regimes de identificação entre as imagens de porta de fábrica e os signos do poder: Emden, 1975, saída da fábrica da Volkswagen; Detroit, 1926; Lyon, 1957; Berlim, 1934, funcionários da Siemens saem da fábrica e se juntam a uma marcha nazista. Em todas essas saídas de porta de fábrica, as pessoas andam com o passo apertado, acelerado.

Farocki mostra uma passagem quase secreta entre o enquadramento e a expressão do enquadrado. Ele diz: “O portão da fábrica estrutura os trabalhadores e as trabalhadoras sincronizados conforme a ordem de trabalho, e essa compressão produz a imagem de uma força trabalhadora.” Já não se trata, portanto, de um “exército de figurantes”, nem de operários isolados: antes, a captação da imagem torna possível a visão de um “operariado”. Farocki percebe que o enquadramento acaba por impregnar a imagem com um aspecto linguístico saturado de sentido: uma visão dos “explorados”, do “proletariado industrial”, dos “trabalhadores braçais”, da “sociedade das massas”. A partir da leitura de Farocki, percebemos que se trata de uma imagem rica do ponto de vista de uma semiótica da multidão e das lutas sociais que atravessam o século XX.

Ora, uma contra-análise do caráter aparentemente primordial do curta dos Lumière mostra, ao longo da história das imagens filmadas, uma série de movimentos de entrada e saída: enquanto a câmera grava, o operariado está de costas para a fábrica. Quando saem do enquadramento do plano, escapam da fábrica. A câmera mira, aponta, filma e acerta em cheio um coletivo em franco processo de escape, de atração quase magnética em sentido contrário àquele que os conduziria para dentro da fábrica. Enquanto filmados, são representados coletivamente. Enquanto filmados, também são vigiados. 

Quer dizer, há um trânsito semiótico nas imagens de trabalhadores saindo da fábrica que dá conta de múltiplos movimentos de atração e retração, de entrada e saída, de concentração e dispersão, de captura e escape. Buscando outras perspectivas para essa instabilidade da imagem cinematográfica, Farocki escreve: “Desequilíbrio e compensação: é esta a lei do movimento nos filmes.”

Quando falamos da câmera nos referimos, portanto, a um objeto técnico que registra um conjunto de movimentos de desequilíbrio e compensação. As tensões entre trabalhadores explorados e trabalhadores organizados, entre vigilância e linhas de fuga, habitam os fotogramas que se acumulam desde a primeira filmagem feita por um cinematógrafo: os desequilíbrios da vida do explorado, as compensações da luta por emancipação. E vice versa! Estamos no centro de uma forte sugestão quanto ao poder coletivo que a câmera enquadra: ambos os poderes, recusa e resistência, são como que captados em sua disjunção mais imediata, em seu “desequilíbrio” constituinte, em uma espécie silenciosa de campo de disputa.

Paradoxo de absolutos: ao mesmo tempo em que apreende a dinâmica do trabalho (industrial) e a torna passível de visibilidade, capturando e propagando as imagens dos operários, o cinema está impregnado por um processo de contínua invisibilização do trabalho, que se associa à racionalização e ao controle crescentes do espaço da fábrica. Em meio a episódios de conflito ou instabilidade, ligados a signos de insurgência ou de força proletária, Farocki insere um segmento publicitário com portões de aço e acessórios de segurança, indicando a imponência do aparato de controle para conter a violência dos trabalhadores. Fica nítido que as técnicas de produção e as técnicas de vigilância compartilham, na estruturação da vida social, de princípios depurativos e conservadores, desde a defesa dos limites da fábrica (propriedade privada) até a fiscalização e análise dos movimentos operários (mentalidade taylorista-fordista). Ecoa uma tese temerária, que Kittler formula na esteira de Hugo Munsterberg (o primeiro crítico de cinema e inventor do termo “psicotécnica”): “Se a atenção subliminar é nada mais do que um truque cinematográfico, então os humanos podem ser fabricados e otimizados, em vez de serem ainda mais idolatrados idealisticamente. […] Na realidade técnica, o cinema científico-experimental, acima de tudo, muda as realidades da própria vida. Pessoas trabalhando na linha de montagem executam movimentos ensinados a elas por um filme (KITTLER, 2010, p. 176, tradução nossa).

Farocki vai demarcando, pela via argumentativa, a configuração de um olhar cada vez mais vigilante no encontro da câmera com a fábrica. Retomando a homologia delineada por Kittler, e para além dos processos de transferência tecnológica entre as duas ferramentas, seria a câmera uma espécie de arma de controle multitudinal, apontada para os trabalhadores? Uma arma, no caso, de funcionamento bastante particular, que, recalcando a violência do projétil que perfura e destrói o corpo, estabelece um processo silencioso de captura e controle imediato das imagens dos corpos, enquanto objetos simbolicamente assujeitados a um olhar central?

Aos 21’, vemos um trecho do filme Os assassinos (The killers, 1946), de Robert Siodmak, em que quatro bandidos roubam os salários no escritório da fábrica e saem disfarçados de operários. “A fábrica, como cenário do crime”, comenta a voz over. Quando a sequência prossegue, com os assaltantes perseguidos pela polícia, a imagem é congelada, e a montagem corta para outra perseguição, anacrônica, registrada por uma câmera de vigilância moderna em plano fixo. Duas figuras atravessam o quadro, de um lado para o outro, engendrando uma espécie de transferência narrativa em relação ao filme de Siodmak. Os corpos dos infratores, no novo contexto de vigilância, são identificados por retângulos vermelhos, enquanto o software de segurança controla vetorialmente seus movimentos mapeados.

De certa maneira, como já apontava Philip K. Dick no seu brilhante conto “Minority Report”, o sonho de toda inteligência superior, seja ela maquínica, divina ou soberana, foi sempre o de prever o futuro. Sabemos, hoje, de sistemas de vigilância que tentam alertar e predizer a iminência de um roubo antes mesmo que ele aconteça, câmeras de monitoramento que buscam de antemão o rosto do inimigo, o fenótipo, o traço distintivo do crime (trazendo inúmeros problemas de repressão de identidades por critérios de raça ou classe). Sob a visão das máquinas, que produzem imagens sem parar para regular o domínio da fábrica, os bandidos do filme de 1946 jamais conseguiriam fugir sem serem identificados. Quiçá, não haveria filme, isto é, não haveria cinema, pois o cerne da ação restaria “inoperado” de antemão.

Existiriam, nesse sentido, possibilidades de cinema insubmissas à ordenação visual das máquinas, cinemas que contrariam os movimentos de esquematização e padronização do mundo e das imagens do mundo, cinemas que atuam no combate da lógica do poder e da sua operação totalizante de controle e sincronização.

Com Farocki, é possível perceber um aspecto adicional, uma segunda ordem semiótica para o precedente bélico aberto por Kittler: a câmera, além de objeto técnico análogo à arma, é uma espécie de instrumento cartográfico que possibilita seja capturar e controlar uma representação (como na publicidade), seja, simultaneamente, engendrar um mapa de choques e disjunções, nesse fenômeno de variações a que chamamos movimento. Farocki, pausando e perscrutando a imagem, diz: onde estava posicionada a primeira câmera dos Lumière, hoje temos milhares de câmeras de vigilância. As câmeras, tentando absorver o espaço e o tempo da realidade como superfície uniforme, dão a ver, na contraparte ao fechamento do programa, múltiplas disjunções e múltiplos desequilíbrios dessa mesma realidade, por meio de imagens constituídas por fissuras, fendas, pontos cegos, feridas abertas, cicatrizes.

Há, portanto, um desequilíbrio constituinte dos processos de captação e construção da imagem. O cinema de Farocki se concentra no hackeamento ou na decodificação dos equipamentos de vigilância, com o objetivo de reverter sua aplicação hegemônica e fomentar uma guinada crítica do olhar. É justamente em função da instabilidade constituinte da imagem registrada que se torna possível, inclusive, sua apropriação para fins inversos (e diversos) aos da vigilância, com o objetivo de desvendar e até mesmo reverter o poder hegemônico por trás desses equipamentos de monitoramento e controle. Quer dizer, parece que quanto maior é o controle dos detalhes, ou a pretensão totalizante do sistema, maior é a sua vulnerabilidade. É uma hipótese.

2. A inteligência das máquinas

O paradigma hegemônico em computação hoje, crucial tanto para o domínio das imagens quanto para a automação do trabalho, é o das chamadas “redes neurais artificiais”. Projetadas para permitir o estudo de relações entre as disposições nervosas, a organização do ambiente e as performances “psicológicas” das quais o sistema é capaz, tais redes operam a partir do reconhecimento de padrões, por meio de indução estatística, e do aprendizado supervisionado do ambiente, por meio de “neurônios maquínicos” conhecidos popularmente, e de forma bastante imprecisa, como algoritmos. A chamada “inteligência”, no termo inteligência artificial, é o resultado das inferências estatísticas extraídas das correlações globais, em um conjunto de dados que são “incorporados” à máquina.

Quanto às tendências de algoritmos que giram em torno de conjuntos de dados limitados, cabe citar Matteo Pasquinelli, coordenador do grupo de pesquisa em Inteligência Artificial e Filosofia das Mídias da Universidade de Artes e Design de Karlshue. Segundo ele, “a rede neural é treinada para reconhecer padrões em dados anteriores, com a esperança de estender essa capacidade em dados futuros. Mas, como já ocorreu várias vezes, se os dados de treinamento mostram um viés racial, de gênero e de classe, as redes neurais refletirão, amplificarão e distorcerão esse viés. Sistemas de reconhecimento facial que foram treinados em bancos de dados de rostos de pessoas brancas falharam miseravelmente em reconhecer os negros como humanos.”

Retornando a Farocki, a historiadora da ciência da computação Orit Halpern insiste que “visão, para Farocki, é uma atividade além e fora do sujeito humano. É um produto emergindo do reino das máquinas e aparelhos de captura, aquele que condiciona e fabrica retroativamente a visão ‘humana’.” Ainda de acordo com ela, “parece que a máquina é capaz de fornecer um novo sistema de conexões para o cérebro humano.” Na mesma toada, Luciana Parisi já afirmava, em 2013, que “a computação algorítmica não é simplesmente uma ferramenta matemática abstrata, mas constitui um modo de pensamento por si só, em que sua operação se estende a formas de abstração que estão além da cognição e do controle humanos diretos.”

Como afirma Pasquinelli, nessa arquitetura distribuída e adaptativa de portas lógicas, “em vez de aplicar a lógica à informação de cima para baixo, a informação se transforma em lógica, isto é, uma representação do mundo se torna uma nova função, na mesma descrição desse mundo.” Pasquinelli avança na hipótese de que “novas máquinas enriquecem e desestabilizam as categorias matemáticas e lógicas que ajudaram a projetá-las”, pois, segundo ele, “a informação afeta a lógica”.

O paradigma que se coloca, aparentemente, no domínio da inteligência artificial, é “apenas” conhecer as possibilidades de organização de um contexto específico, e informar, para cada necessidade no sistema em questão, qual é a melhor decisão ou, em termos técnicos, qual é a solução ótima. De fato, para um problema de otimização em computação, cabe encontrar a melhor solução existente dentre todas as soluções viáveis. Esse “apenas”, portanto, longe de trazer tranquilidade, significa no fundo o máximo de “esquematização” da realidade, ao ponto do programa poder, nela, prever ou até mesmo induzir determinadas variações.

Ora, se a “inteligência” das máquinas é produto de inferências estatísticas, extraídas das correlações internas de um conjunto de dados pré-determinado, vale perguntar: “uma inteligência artificial em geral é capaz de escapar das categorias e procedimento lógicos nos quais se insere, e que torna sua operação possível?” E se a informação é como que produzida a partir de “um bom grau de aproximação estatística”, podemos nos perguntar sobre a qualidade dessa informação: o que ela aproxima? Quais informações deixa de fora? E como essas decisões se relacionam com o mundo concreto? Como elas o afetam? Qual é a relação de tal universo de dados, supostamente fechado, com o exterior?

É aí que espaço e tempo se confundem.

O sonho sinistro de “Minority Report”, citado acima, desemboca hoje nas técnicas de predição do marketing e na arquitetura do consumo. Em um de seus documentários de observação mais interessantes, intitulado Os criadores dos mundos das compras, Farocki mostra como a religião do capital realizou o sonho, se não de prever, ao menos de condicionar o futuro pela via computacional. O filme acompanha o processo de concepção e planejamento de um shopping center, do ponto de vista de seus arquitetos, empresários e lojistas. O registro do cineasta, contudo, enfatiza os dispositivos de medição e gerenciamento usados na arquitetura e na gestão dos espaços de consumo.

Em dado momento, vemos uma instrutora que treina gerentes de lojas e publicitárias, ensinando a manipular o olhar dos consumidores com técnicas de ponto focal. Esse método, que planifica a distribuição dos pontos no espaço, busca operacionalizar as reações do olhar e fazer com que a ordenação dos elementos da vitrine confira maior ou menor destaque a cada item vendido. Um estímulo pré-arranjado, uma ordem calculada, um código entranhado nas coisas, devem transmitir uma…mensagem? Não, uma ação.

O ponto chave, logo entendemos, é o acoplamento entre o planejamento do mundo e o condicionamento dos sujeitos, em particular da visão humana. A montagem intercala, em meio às cenas, um olho que está sendo “rastreado” por um aparelho de medição. Essa máquina, presente em consultórios oftalmológicos — e que remete às chamadas “técnicas do observador” estudadas por Jonathan Crary (2012) — detecta a direção da visão e avalia a reação habitual do olhar humano. No universo do consumo, ela permite quantificar o engajamento óptico do espectador com elementos publicitários e medir sua reação aos cenários de compras, propiciando a criação de ambientes de consumo mais eficientes na tarefa de garantir a captura dos sujeitos.

Farocki mostra o programa que contabiliza as pessoas atravessando cada entrada de um shopping, gerando informações que serão usadas para definir a melhor posição ou a mais lucrativa para as novas entradas, em novos shoppings. “As pessoas devem ser forçadas a entrar no shopping”, afirma um arquiteto. Fica claro, nesses exemplos, o vínculo entre a operacionalização dos mundos das compras, conforme as técnicas avançadas do marketing e do design, e a captura massiva dos padrões humanos, conforme as tecnologias de medição e controle.

Uma sequência notável, próxima ao final do documentário, é a do supermercado, em que uma equipe especializada busca distribuir as mercadorias nas prateleiras da maneira mais lucrativa possível. Para isso, eles analisam perfis de comportamento dos clientes no interior de lojas, fazendo uso de softwares que mostram os trajetos percorridos pelas pessoas, as seções mais acessadas, as mercadorias mais compradas e os percursos mais populares. Farocki entrevista o programador desse software: para ele, o importante é entender a lógica mental dos fregueses, antecipar seus desejos possíveis e materializá-los, magicamente, na prateleira mais próxima. Por trás desse sonho computacional, que busca prever e controlar os movimentos dos consumidores, temos algoritmos complexos de otimização e de inteligência artificial.

No cruzamento das palavras do programador com as reuniões de planejamento dos arquitetos, fica patente que a vida cotidiana foi submetida a um processo de “algoritmização”, em que tudo se tornou programável, restando pouco espaço para as coisas não medidas e não testadas de antemão. O exercício do poder, a subordinação dos sujeitos à estrutura material do mundo, ocorre de maneira abrangente e fria, sem uma delimitação estrita que corresponda, por exemplo, às instituições concentracionárias usuais. Convertidos em pontinhos no computador, os indivíduos se tornaram alvos de um sistema de representação e de operação digital. As mesmas imagens desse software de supermercado, cabe apontar, são retomadas por Farocki em Imagens da prisão, um ensaio dedicado a analisar o mecanismo de vigilância das prisões. Associadas ao programa utilizado pelos guardas para administrar a posição dos detentos no presídio, elas encontram seu verdadeiro significado: a contínua adequação da vida a modelos prévios de existência calculada.

3. Engrenagens contrariadas

Seria o caso de dizer, então, que as máquinas de hoje, para além de quantificar, entrecruzar e armazenar dados, seriam capazes de enredar, por imposição, os indivíduos em estruturas lógicas? Esta qualidade construtivista já não teria sido antecipada no século XIX pela criação da fotografia, do cinematógrafo e, mais tarde, do cinema?

Aqui vale lembrar Gilbert Simondon, no que diz respeito a uma certa fobia que a cultura ocidental nutriria em relação à técnica e, particularmente, uma fobia em relação ao androide. Ele classifica essa tecnofobia, esse preconceito contra a técnica e a tecnologia, como reflexo de uma sociedade oportunista que mantém relações entre senhores e escravos, mas que deixa transparente o medo de se tornar escrava das máquinas. Simondon, então, preconiza a necessidade uma educação que produza a entrada do mundo técnico no universo da cultura, como meio de regulação. O indivíduo humano deve ser o coordenador de uma sociedade dos objetos técnicos, esses mesmos objetos portadores de potências e devires próprios.

De modo que a questão aqui parece dizer respeito à possibilidade de se utilizar as máquinas para des-programar a máquina. O cinema como um dispositivo capaz de esvaziar diversas fontes de repressão, ou como linguagem capaz de propor um efeito de desprogramação, uma relação capaz de assumir a multiplicidade do real. O esquema que esgota a potência do registro na prática da vigilância, isto é: o registro como captura pela captação, a vigilância como seu produto, a informação. Em 1943, Maya Deren argumentava em favor da autonomia das imagens — que conteriam de fato e de direito seu próprio estatuto de realidade, uma realidade desdobrada, o cinema portanto como um acréscimo de realidade. Hoje, podemos dizer que se as máquinas “transformam a lógica”, é porque parece que tendência e desorientação convergem para formar sistemas hiper-programados, crivados porém por dobras, fendas, rachaduras… Aproveitar essas dobras e fendas implica em prejudicar o hiperrealismo algorítmico e a apofenia política.

Farocki reinventou o cinema para propor leituras críticas da técnica e das suas hipóstases, para realizar o diagnóstico insubmisso de uma cultura midiática difusa, composta por um sem fim de artefatos quiméricos ou kafkianos que se proliferam a perder de vista — ou, antes, a preencher por completo a vista, com seus produtos e subprodutos, seus resíduos, suas imagens, suas miríades de ramificações tecnológicas que nunca se interrompem. Mas existem outros artistas contemporâneos que, seguindo uma tradição farockiana do détournement crítico da imagem técnica, se esforçam por quebrar o código da hiperrealidade maquínica e para recolher seus fragmentos de maneira expressiva ou renovadora, de forma a restituir à imagem uma força de espanto ou de imprevisão. É o caso de Trevor Paglen, com sua série de retratos recompostos de personalidades mortas, por exemplo, intitulada Even the dead are not safe (uma citação benjaminiana). É o caso, também, de Hito Steyerl, por exemplo, no seu vídeo especialmente irônico e mordaz How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .MOV File. A arte, em particular a arte da imagem cinematográfica, adquire a forma de uma máquina combativa de hackeamento, cujas engrenagens contrariadas instauram interrupções e fissuras na grande máquina do mundo, impedindo a sua velocidade absoluta ou o seu total fechamento.

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Tudo que começa como atividade termina como forma autoconsciente de teatro

por Lucas Saturnino

Uma imagem contendo no interior, homem, jogando, segurando

Descrição gerada automaticamente

«How clearly I have seen my condition, yet how childishly I have acted», says Goethe’s sorrowful young Werther. «How clearly I still see it, and yet show no sign of improvement». […] Note that here, as elsewhere, seeing clearly seems to take Werther, and us, no further.” (Maggie Nelson, Bluets)

I.

Em primeira ou última instância, a questão da representação se refere à pedagogia do fazer as coisas visíveis. Consideremos o debate acerca do realismo: Brecht argumenta que a simples reprodução da realidade não nos diria nada sobre a realidade em si — por exemplo, fotografias das instalações de empresas como a Krupp (armamentos) e a AEG (equipamentos elétricos) quase nada revelariam quanto ao caráter dessas instituições (ele está aludindo ao papel da indústria na remilitarização alemã), de forma que a verdadeira realidade teria resvalado para o plano do funcional. Pois estendamos a mesma suspeição aos avatares virtuais através dos quais hoje performamos a exposição de uma identidade — a realidade também não é apreendida só por via daquilo que foi articulado visando à comunicação interpessoal. Se Brecht abordava a reificação das relações humanas, desde que a virtualização de si assumiu entre nós a condição de processo ritual de subjetivação — a ponto de ser secundário o grau de consciência nisso —, a reificação das identidades passou a estar em causa de maneira análoga: o perfil digital por meio do qual alguém se manifesta exteriormente enquanto pessoa não é indicativo inequívoco de realidade — que se encontra, em sua essência, incrustada no plano subjacente do psicossocial.

Em Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob (episódio especial da série Euphoria, de 2021), acompanhamos uma sessão de terapia da personagem Jules (a atriz Hunter Schafer, que a interpreta, também coescreveu o capítulo). Ela se pergunta: será que não teria passado a vida toda construindo seu corpo, sua personalidade e sua alma em torno do que achava ser desejável pelo sexo masculino? A psicóloga rebate: “Você acredita mesmo que a sua existência, física e emocionalmente, é tão reativa assim? Que não estou vendo e falando com a Jules? Mas com um avatar que ela criou como reação ao mundo?”. Eu estou aqui, Jules responde — entretanto, “o que você está vendo são as milhões de camadas que fui apanhando e retendo ao longo da vida, tomando tudo de outras pessoas, e constatar isso é aterrorizante”. Ela, mulher trans, confessa sua angústia: tinha feito tanto esforço a fim de “conquistar a feminilidade” (até assim incorporar a imagem que desejava transmitir) para sentir que afinal foi a feminilidade a conquistá-la. Jules fala da sensação extenuante que o escrutínio incessante dos olhares femininos lhe provoca — e do modo como isso a induz igualmente a pautar sua feminilidade pela antecipação da apreciação alheia.

O reflexo pessoal de se ir autocondicionando em função da percepção dos outros talvez não seja necessariamente instintivo — e decerto não é com a centralidade psicodinâmica da atualidade. Para uma pedagogia das imagens propícia à era da sociabilidade virtual, a repercussão psicossocial motivada pela massificação delas precisa ser enquadrada como componente primordial de suas condições tanto de produção quanto de recepção. O sujeito da contemporaneidade midiática já não trabalha a própria concepção do eu tendo na sua experiência intransmissível do mundo um referencial preponderante; pois, de forma sem precedentes, ficou digitalmente exposto à mesma versão pública da imagem de si à qual os outros encontram no horizonte de interação interpessoal. Quer dizer, toda imaginação identitária passou a ser norteada pela autoconsciência (dos efeitos e da instância).

Voltando à Euphoria, Jules propõe uma diferença entre olhar e enxergar alguém — o primeiro concerniria às superfícies relacionais; o segundo à capacidade de discernir “a pessoa debaixo de milhões de camadas que não são minhas”. A apreensão da realidade a depender assim, pois, da percepção do invisível nas frestas do excesso informacional. O que, além de tudo, da parte dela conta principalmente como discurso sobre o amor — se dando em face da estilização maneirista dos tropos de transgressão adolescente na qual a série é baseada. A fim de produzir impacto no espectador, a intensificação dos padrões desponta entre as opções dramatúrgicas; bem como para as estratégias de performance. E daí põe-se a questão: sendo a narratividade extraída do comportamento, seria inevitável então que o comportamento desandasse a imitar a narratividade conforme as demandas dela? — mais que gestores da própria marca, maneiristas de nós mesmos?

Uma imagem contendo cama, no interior, escuro, quarto

Descrição gerada automaticamente

II.

No tocante à disjunção medular entre performance virtual e presença física, poucos filmes são tão fascinantes em seu registro quanto Searching Eva (Pia Hellenthal, 2019), pois seus desafios formais acabam por ficar expostos em função da iniciativa labiríntica que é confeccionar o retrato de alguém a partir dos termos de sua autoexposição. Nesse caso, para perfilar a vida de Adam (que à época das filmagens utilizava o nome de Eva) — escritor, blogueiro, trabalhador sexual, imigrante, anarquista, adicto, “millennial” etc. entre outras categorizações listáveis com o intuito de cristalizar uma identidade. A face do oversharing raiz, mais confessional e caótico do que autopromocional ou santarrão, refletindo um tempo transicional e o desenlace dos últimos 60 anos de cultura jovem na Europa, a meio da altivez digital e da ternura vislumbrável no convívio pessoal. Apesar de despudorado ao extremo, Adam continuará — encarando a câmera — esfíngico. Sua nudez é negociada, calculada, impulsiva. Cada pose confrontativa em sua corporalidade à partida pode nada significar, mas a identidade online é assimilada de maneira holística e por isso a dissociação semântica entre físico e virtual não se dá de bandeja.

Hellenthal entrelaça seus mecanismos de expressão junto aos de Adam, mesclando estruturalmente os tableaux idealizados com preciosismo e os relatos confessionais extraídos do blogue de Adam, declamados em voice-over, além de perguntas feitas por anônimos em seu Tumblr, na tela exibidas em forma de texto branco sobre fundo preto (um apanhado de mensagens agressivas, confissões espontâneas, curiosidade obsessiva e ressentimento difuso; enfim, a experiência da internet). As imagens de Hellenthal vão alternando entre tableaux de conceito amaneirado e passagens emulando documentários observacionais. Que cenas cotidianas sejam tão manufaturadas quanto as estilizadas não é propriamente a questão. Se bem sabemos que a presença da câmera impõe condições à praticabilidade de qualquer forma de registro que queira postular ao “naturalismo”, dada a massificação brutal das câmeras na sociedade contemporânea, talvez já seja o caso de também estender essa suspeição — aos modos de agir de forma mais ampla.

Adam afirma o desejo de recusar a identificação com uma identidade permanente. Até porque, no seu ponto de vista, “qualquer pessoa pode fingir ser quem quiser”. Enquanto um leitor pede mais selfies, outro digita “eu acho que você não é uma pessoa real e isso está me deixando muito nervoso”. O teor das mensagens enviadas anonimamente pelos seguidores varia entre o patológico, o shitposting e o relacionamento parassocial — “as if their gaze was my responsibility…” é o que resta a Adam, sobranceiro, retrucar. “Faça as coisas sem precisar vincular qualquer significado a elas”, sentencia em resposta a um pedido de conselho. Mas pessoas vincularão significados — por exemplo, a imagens e a atitudes que possam não os ter a princípio (e assim seremos traídos por nós mesmos). A cara que apresentas sempre vai diferir da que os outros assimilam — estímulo disfórico. O filme termina buscando se aproximar do lado das leitoras de Adam: escutamos quatro vozes sussurrantes fazendo confidências — sobre como ler um estranho na internet pode acalentar, como ler um estranho na internet pode ajudar a construir autoestima, como ler um estranho na internet pode dar forças no processo de autoconhecimento, como ler um estranho na internet pode nos levar a amar esse estranho.

Texto

Descrição gerada automaticamente

III.

Já no assombroso We’re All Going to the World’s Fair (Jane Schoenbrun, 2021) — essa obra de arte realmente extraordinária —, enfatiza-se a transcorporalidade da experiência à qual é dada vazão pelo regime de virtualização do “eu”, e a subsequente transformação do efeito de ocupar uma tela em agente subjetivador por excelência. A fenomenal Anna Cobb exprime com seu semblante a intensidade emotiva digna de uma Maria Falconetti cujo martírio a ser dimensionado dramaticamente se resume ao tédio e à solidão de nada ter para se escorar fora a banalidade das distrações acessíveis num quarto desamparado. O rosto pulsativo irrompe como tribuna poética à melancolia libidinal; sendo despertado através da mediação do dispositivo, que impele a personagem à performar, e, em função disso, confere a perspectiva de habitar uma realidade propriamente vivível. Fora da tela, testemunhamos a versão cotidiana da presença de Casey (Cobb) se manifestar em forma de corpo prostrado no plano material — “vai-te embora”, é como se ouvíssemos o vento murmurar; “tranca-te aqui dentro”, é a contraparte de gravitação à volta do monitor.

Schoenbrun faz da luz das telas incidindo por cima do olhar de Casey um motivo visual recorrente. Entre projeções e reflexos, a personagem recebe o brilho enquanto ritual de introspecção. We’re All Going to the World’s Fair é um filme sobre civilização — e, se há distintas formas de realizá-los, nesse caso o é pelo enfoque em hábitos e ferramentas. Fundamental então que a conclusão não seja centrada no ponto de vista da garota e sim no do homem mais velho com quem ela interage na internet e que gradualmente passa a orientar a estruturação narrativa. “Continue fazendo vídeos”, ele suplica feito viciado. O horror no âmago de We’re All Going to the World’s Fair se desenrola com duplo caráter: está na dinâmica do fastio existencial e também no fato de que tudo o que a personagem vai colocando para fora de modo a mitigá-lo fica à mercê da distorção alheia — exposta às mais repugnantes expectativas ou compulsões dos outros, tão inevitáveis quanto não-requisitadas. Vemos surgir repetidas vezes o ícone da espera ao próximo vídeo carregar, esse símbolo do cúmulo dos tempos-mortos. Mas os ciclos logo se reiniciam de maneira autômata; as playlists devem continuar. Tudo que começa como atividade termina como forma autoconsciente de teatro — inclusive o ato de existir.

Homem posando para foto em local escuro

Descrição gerada automaticamente
Quarto escuro com a porta aberta

Descrição gerada automaticamente com confiança média

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Point and Shoot: Peeping Tom

Por Michel Gutwillen

  1. Destruir e preservar: a morte cinematográfica e o Cinema da Morte.

Um homem com uma câmera na mão. Um homem com uma arma na mão. À primeira vista, pela língua portuguesa, as duas frases em questão possuem significados e significantes diferentes. Já no inglês, usa-se o mesmo significante — shoot para ‘filmar’ e ‘atirar’. Um diretor de Cinema e um general de guerra dizem o mesmo para seus subordinados: point and shoot (apontar e atirar/filmar). Ora, filmar almeja a preservação eterna de um instante único e atirar (para matar) objetiva a destruição eterna de uma vida. Como podem ações tão repelentes serem representadas pelo mesmo significante em qualquer língua? Afastando-se de uma explicação etimológica em prol de uma aproximação simbólica da questão, no mundo material descobre-se que ‘atirar’ e ‘filmar’ (destruir e preservar), paradoxalmente, andam lado a lado.

Em Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1989), o cineasta Harun Farocki aponta para a existência, na 2.ª Guerra Mundial, de aviões de bombardeio que eram equipados com câmeras, de modo que no momento em que as bombas eram jogadas, uma foto também era tirada, preservando aquele momento de destruição para sempre. Já no campo da literatura, o filósofo Paul Virilio, em seu livro “Guerra e Cinema”, analisa a história das disputas armadas em paralelo à evolução tecnológica dos meios ópticos, observando como eles influenciam um ao outro e já assumiram diferentes posições de hierarquia entre si, ciclicamente. Em uma relação de retroalimentação, a guerra existe para fins cinematográficos e o Cinema também serve de instrumento na própria guerra.

No mundo contemporâneo, o drone pode ser visto como o representante máximo dessa retroalimentação entre Guerra e Cinema. Por ser um objeto que simultaneamente consegue disparar um míssil teleguiado como também filmar com uma câmera, a polissemia do shoot sai do campo linguístico para o prático. Fica uma dúvida: é possível estabelecer causa e consequência? As imagens existem porque devem gravar as mortes, ou as mortes existem porque precisam virar imagens? De qualquer modo, com a reprodução dessas imagens de aniquilação, a guerra se transporta para o campo imagético, com fins de dominação psicológica, nas quais a produção audiovisual bélica se torna uma forma de dominação e instauração do medo. Inclusive, consciente desta ambiguidade, hoje o Cinema já abre o território para explorar criticamente essa destruição-preservadora dos drones, como a francesa Eléonore Weber em Não Haverá Mais Noite

Já indo para uma esfera mais simbólica, pode uma câmera se equivaler a uma arma? É aproximadamente isso que diz o cineasta David Dufresne, em O Monopólio da Violência, reconhecendo a possibilidade dos registros amadores de celular se tornarem uma espécie de armamento popular em detrimento do monopólio da violência do Estado. Ou seja, apesar do verbo filmar aqui não significar literalmente atirar, a câmera pode ser uma arma que a população usa legitimamente dentro da guerra urbana, ofensiva ou defensivamente. Ainda que capturar uma imagem não seja uma agressão imediata, pelo menos no campo mediato ela pode ser usada para constituir provas do crime. Ao empunhar o celular como uma arma para um policial, a pessoa estaria inibindo sua ação ao gerar o mesmo efeito psicológico de medo que estar sob a mira de uma arma. 

  1. As protagonistas de suas próprias mortes em Peeping Tom (Tortura do Medo)

Quando o objeto de destruição passa a se confundir com o de percepção ao longo da história, é porque, na verdade, existe uma associação do ato de olhar com um ato de violência. Em uma das passagens de Virilio sobre a guerra, ele diz que a sua principal finalidade é, antes de tudo, a produção de um espetáculo mágico, no qual abater um adversário é infligir, antes da morte em si, o pânico que vem dela. Ainda que sua história não passe num campo de guerra, os conceitos de Virilio são antecipados em uma obra de ficção de 1960, Peeping Tom, cuja tradução para Tortura do Medo na versão brasileira talvez permita uma maior captura de sua essência. Nesse filme dirigido por Michael Powell, um fotógrafo-assassino filma e mata suas vítimas, simultaneamente destruindo a existência delas no campo material e preservando suas imagens para sempre. Suas motivações se mostram menos pelo desejo da morte em si, mas para conseguir eternizar, em imagens, uma instante irreproduzível em qualquer outro momento: o medo e o desespero na iminência da morte.

Neste contexto, para o protagonista Mark Lewis, a destruição (morte) existe como um meio para um fim: se tornar Cinema. Citando outra passagem de Virílio, em Tortura do Medo, “a morte ganha fins publicitários, [..] pois antes da arma ser um instrumento de destruição, ela é percetível, afetando processos químicos e neurológicos sobre os órgãos do sentido”. Com a posse de uma arma que é uma câmera, é essencial para o assassino que suas vítimas percebam que estão prestes a serem mortas, sendo torturadas pela sensação de medo, já que só assim elas vão reproduzir a imagem desejada por ele.

Se filmar e matar se confundem, quando Lewis está conduzindo uma de suas vítimas para o abate, isso significa que, cinematograficamente, ela deve estar sob a perfeita posição, luz, ângulo e distância para ser enquadrada pela câmera. Em outras palavras, matar exige uma mise-en-scène, em que a cena do crime também se torna um palco ou um cenário, no qual a pessoa vira protagonista de sua própria morte. É exatamente isso que acontece na sequência que se passa no estúdio de Cinema, na qual a personagem da atriz, enquanto ensaia um número musical se movimentando pelos espaços, vai tendo seu posicionamento orquestrado por Lewis, sem que ela perceba algo de errado, até chegar na marcação ideal desejada por ele. 

Na equivalência entre filmar e matar, Powell faz com que vejamos as sequências que conduzem ao assassinato a partir de uma câmera subjetiva, que é a própria filmagem diegética que o protagonista faz. Então, o resultado dessa escolha leva à uma confusão tripla do olhar, que envolve o diretor Powell, o protagonista Lewis e o próprio espectador. Nesse sentido, há um movimento pedagógico em dar luz ao próprio male gaze escondido pela indústria hollywoodiana. Segundo Anneke Smelik, em seu artigo Gaze, “nos filmes clássicos de Hollywood, o personagem masculino olha para uma mulher enquanto a câmera filma o que ele vê. Como a câmera filma junto com o personagem masculino, o espectador é convidado – ou melhor, forçado – a adotar uma posição masculina. O ‘male gaze’ é uma estrutura cinematográfica que combina um olhar triplo: câmera, personagem masculino e espectador.” Sendo assim, fazendo um movimento de tornar o simbólico algo literal, quando uma mulher é olhada e desejada pelo male gaze em Tortura do Medo, isso se torna igual a sua sentença de morte. Inclusive, Powell nunca mostra frontalmente os momentos de perfuração, sempre fazendo uma elipse, de modo que a última imagem daquelas mulheres não é a da penetração com a arma, mas do olhar apavorado para a câmera, predominando a ideia da morte pelo olhar do que pela morte física.

Só que Tortura do Medo não fala apenas do olhar masculino biológico, mas também de sua mediação pela câmera, cúmplice dele, e então uma outra consequência da pedagogia de Powell é a revelação do poder psicológico e bélico que está escondido no campo técnico de visão. Afinal, há uma grande diferença entre os planos que mimetizam a visão da câmera de Lewis com aqueles em que a decupagem da cena observa os acontecimentos objetivamente de fora, com Powell formando uma verdadeira dialética entre elas. Quando o espectador observa a cena pela câmera de Lewis, sua figura passa a existir no extracampo. Por não estar visível, ele deixa de ser apenas um homem comum e passa a se tornar uma figura que pode ser construída no imaginário de cada mulher de acordo com seus medos. Já quando o espectador consegue ver a figura de Lewis interagindo com as mulheres, a atuação de Karlheinz Böhm revela um homem de aparência frágil, com insegurança, que fecha os braços em volta de si mesmo, que tem ocasionais gagueiras, que não possui o menor tato social e é até amedrontado pela presença feminina. Ao fornecer a imagem de Lewis, Powell faz o mesmo que o protagonista faz com suas vítimas, levando-lhe a uma situação de vulnerabilidade justamente pelo fato de estar sendo enquadrado. 

Por irem se acumulando repetitivamente ao longo da narrativa, toda vez que Powell usa o ponto de vista de uma câmera, cria-se uma antecipação de que a vida da pessoa que está sendo enquadrada corre perigo. De cena em cena, Tortura do Medo vai forçando uma associação de que quem é filmada, é morta. Portanto, vai se instaurando um mal estar toda vez que o espectador também está por trás da câmera, sentindo a violência daquele olhar que se torna uma violação por si só, mas que também é um incômodo por dar luz para sua cumplicidade (principalmente do espectador masculino, que compartilha daquele male gaze). Fora isso, existe toda uma similaridade visual da câmera que Lewis usa com a da mira de uma arma, o que dá ainda um maior simbolismo bélico para as suas filmagens voyeuristas, além de que a arma do crime, que é o tripé da câmera, também existe enquanto um objeto fálico. Em síntese, há uma dupla penetração do protagonista com aquele seu objeto, tanto física quanto do olhar. 

Diante da própria incapacidade e medo do toque físico, Lewis encontra no voyeurismo e na cinefilia uma forma de compensar suas inseguranças, se tornando um dominador das imagens daquelas mulheres. Sobre essa questão, surge o termo freudiano da ‘escopofilia’, no qual o olhar é o fundamento da sexualidade humana e também o fundamento do próprio Cinema, pois na sua escuridão o espectador é um voyeur que pode olhar para a tela sem limites ou medo de ser punido por seu desejo. A partir deste conceito, percebe-se como Powell cria uma clara dicotomia entre o ‘encostar’ e o ‘olhar’. Se Lewis não consegue encostar nas mulheres (apenas com o tripé, que é a extensão da câmera), há entre ele e os objetos cinematográficos uma relação muito física e táctil. Praticamente em todas as suas cenas, vemos ele segurando e fazendo leves carinhos em sua câmera, assim como ele gosta de sentir com as mãos os rolos de filme; na cena com a sogra cega, chega a até literalmente abraçar a tela de projeção. Deste modo, o Cinema permite a ele uma distância segura para liberação dos seus desejos antes contidos pela culpa, já que tanto o olhar da câmera quanto as imagens finais são um olhar mediato e mediado, gerando um afastamento de sua parte.

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Horror e folclore nos arquivos do BFI: Arcadia (2017) de Paul Wright

Por Natália Reis

“Then one night, she had a strange dream,

and was told that the answers to all her problems

lay within the land around her.”

A morte por suspeita de inanição da desertora norte-coreana de 42 anos Han Sung-ok e de seu filho de 6 anos de idade em Seul configurou um tipo de tragédia evitável que assume a forma de questões grandes demais e dolorosas demais para serem respondidas com prontidão. Uma das poucas informações sobre a identidade e o passado de Han Sung-ok (fornecida por quem pôde ter algum nível de contato com ela) é a de que ela havia deixado a Coreia do Norte em busca de melhores condições de vida. Mãe e filho só foram descobertos cerca de 2 meses após virem a óbito, pela pessoa responsável pela leitura do hidrômetro de onde moravam. O caso perturbador ocorrido em 2019 desencadeou uma série de questionamentos sobre a natureza solitária da morte por desassistência: “por que ela nunca disse que passava por dificuldades?”, “se ao menos ela tivesse pedido”, uma vendedora nas proximidades declararia. O fato é que, para além de questões culturais, quando penso na história Han Sung-ok, o que mais me aterroriza é a naturalização de um individualismo tão entranhado nas dinâmicas do neoliberalismo que uma crise gerada pela falta de recursos básicos passa despercebida num cenário onde o senso de comunidade há muito foi esquecido. E não digo isso apontando somente para os vizinhos de Han Sung-ok. Não é difícil constatar que se trata de uma postura tragicamente universal. A dúvida que fica é: quando e como foi que deixamos isso acontecer?

A primeira vez que vi algo a respeito de Arcadia de Paul Wright foi no blog de um estudioso de Mark Fisher que partia da premissa de que o conceito de “Comunismo Ácido”, desenvolvido inicialmente por Fisher no livro em que estaria trabalhando antes de sua morte em 2017, se relacionava diretamente com a obra de Wright.  Arcadia foi um projeto encomendado pelos produtores John Archer e Adrian Cooper, tendo como proposta a realização de um longa-metragem utilizando imagens de arquivo do British Film Institute de modo que pudesse se operar uma reflexão sobre o passado rural dos britânicos e sua relação com a terra. Wright, que até então só possuía experiência com o cinema de ficção, vai conceber um “folk horror” que pulsa através de 100 anos de história em imagens para narrar as curvas e desvios tomados numa trajetória que tem início nas comunidades rurais, nas comunas, nas celebrações e ritos pagãos guiados pelas estações e colheitas, passando pelo deslocamento massivo da população para as cidades e pelas organizações sindicais, greves, festivais de música psicodélica, shows de punk e raves. Nesse sentido, é possível traçar uma relação entre o Comunismo Ácido de Mark Fisher, que vai mirar na contracultura das décadas de 1960 e 1970 para especular sobre a possibilidade de “um mundo que poderia ser livre” através da convergência “da consciência de classe, a conscientização socialista-feminista e psicodélica, a fusão de novos movimentos sociais com um projeto comunista” e o ruído provocado pelas redes relacionais que se estabelecem, ainda que temporariamente, no transe musical dos festivais trazidos em Arcadia e tidos ali como uma forma de restabelecer um instinto de coletividade perdido em algum ponto entre a instituição da propriedade privada e a exploração do trabalho.

A Arcádia, esse lugar mítico que aponta simultaneamente para os aspectos nostálgicos e utópicos de uma convivência harmoniosa entre homem e natureza, vai ser reimaginado como uma face obscura de um tempo pregresso. Na superfície, o horror do filme de Wright reside nas imagens que acessam um temor pelo desconhecido, na associação do incomum e do estranhamento ao ameaçador. Máscaras e vestes ritualísticas que simulam entidades animistas e outras criaturas, o frenesi da dança e da música (conduzido pela trilha de Adrian Utley do Portishead e Will Gregory do Goldfrapp), o encantamento, o fogo, a terra e a comunhão são elementos que, aproximados e articulados na montagem, capturam o espectro de um primitivismo assustador (pois distante, selvagem, logo, incontrolável), mas se resguardam ainda intocados por terrores maiores, que vão percorrer uma outra camada do longa, como o êxodo urbano e o esquecimento das raízes, o campo gradativamente se tornando um local reservado ao lazer de uma classe privilegiada, de casas de veraneios, jogos entre famílias abastadas – como a caça à raposa – e de um circuito exploratório dos trabalhadores braçais. Pensando para além dos recortes geográficos, históricos e culturais, a análise da sociedade britânica engendrada em Arcadia escoa para um âmbito mais amplo, de forma que minha pergunta inicial é retomada aqui enquanto uma das premissas dessa horrorificação: há um movimento contínuo de afastamento e negação da comunidade que cada vez mais nos lança a um futuro sombrio, aterrador?

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Eu também fui espectador do fim do mundo – os filmes machinima de Phil Solomon e o Espectador Emancipado de Jacques Rancière

Por Gabriel Papaléo

“Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.”

A Trama, em O Fazedor, Jorge Luis Borges

O espectador no apocalipse.

Entre 2005 e 2009, o cineasta Phil Solomon construiu suas obras a partir de imagens realizadas nos jogos GTA: San Andreas e GTA IV, como parte de uma homenagem ao amigo Mark LaPore, cineasta experimental morto em 2005, após realizar com Solomon o primeiro dos filmes dessa série. Crossroad (2005), Rehearsals for Retirement (2007) e Last Days in a Lonely Place (2007) foram rodados dentro de San Andreas; Empire (2008) e Still Raining, Still Dreaming (2009) foram rodados no GTA IV. Os dois últimos, um remake longa-metragem do filme homônimo de Andy Warhol de 1964, e um curta de apocalipse como os três primeiros, são rodados em Liberty City, a versão de Nova York criada pela Rockstar, e não serão cobertos nesse texto pela distância geográfica (e por fins de coesão); me concentrarei nos filmes rodados no estado de San Andreas.

De início, há possibilidade de se questionar sobre as escolhas de “isolar” as imagens do jogo de contexto, no processo de alquimia de Solomon: GTA: San Andreas é um jogo tão divertido e carismático como tenaz e extremamente violento nas suas representações, uma obra que causa desconforto e discussão justamente pela especificidade de suas demonstrações de violência policial e do racismo estrutural impresso nas ruas dessa Los Angeles imaginária – e muito por isso ainda é a melhor representação audiovisual das tensões dos riots de 1992 pós-Rodney King, da cultura do gangsta rap como resistência, e como biografia não-autorizada (e bastante ficcionalizada) dos integrantes do grupo NWA. Solomon, por outro lado, toma a via do abstrato, do apocalipse motivado por um movimento quase incompreensível da natureza, dos fenômenos de destruição acontecendo ao redor sem que se trace explicações possíveis. Desconstruir contextos e ressignificar sentidos é quase um movimento inevitável das imagens encontradas e das modificações do material de origem delas (e Rehearsals for Retirement usa muitos mods e cheat codes para produzir imagens); o que importa é que se há “responsabilidade” no retrato da destruição, há em ambos. Ambos tratam de violência e ambos tratam do fim do mundo, ambos de forma política e ambos de forma experimental.

Em Crossroad, o primeiro dos filmes, nosso setting é na presença de um lugar abstrato, composto apenas pelo pedaço de terra, pela casa que mal acessamos, pelas árvores ao redor, e o buquê flutuante que faz companhia para o protagonista solitário. À beira do abismo, uma nuvem cinza infinita, carregando a chuva que não cessa, com relâmpagos ao fundo que sinalizam que o resto do mundo sucumbiu àquelas adversidades. Em um momento, um avião ocasionalmente passa, como se Solomon e LaPore sugerissem que existe uma luta humana (ou virtual) diante das tormentas eternas; notícias do apocalipse que não acessamos, digamos assim. O porto seguro de CJ, o protagonista de GTA: San Andreas e de Crossroad, é um local não-caracterizado, minimalista, cuja geografia abstrata não detalha um assentamento exatamente, mas sim um palco; a câmera aterrissou em uma simulação de realidade onde a ameaça está toda lá fora.

Há de se desconfiar dessa realidade, como há de se desconfiar de todas as realidades nos filmes de Solomon desde, pelo menos, What’s Out Tonight is Lost (1983), onde a textura radical de interferência na película transforma a impressão do real em uma animação destituída do plano físico naturalista, enveredando pelos céus tomados por riscos, paisagens de sonhos e também dos pesadelos. Em Crossroad a dúvida diante da realidade é diferente, com Solomon e LaPore evidenciando as diferenças físicas desse mundo comentado para o nosso suposto mundo; então a câmera atravessa o buquê, atravessa as árvores no longo loop da caminhada de CJ, interfere na materialidade dos objetos. Nesse extenso travelling, os diretores acompanham um corpo que não conhece limites físicos como os conhecemos – um tempo infinito que existe só dentro da unidade do plano. Partem do mais simples bug das texturas complexas e além do código comum de GTA: San Andreas para comentar a abstração desses símbolos colocados ali para emular o mundo com o qual estamos familiarizados no extra-tela.

Pela materialidade quebrada dos objetos, percebemos a curta extensão de terra desse porto seguro nas alturas. O movimento do código virtual começa a encontrar estabilidade no caos, no tédio demonstrado pelo gestual de CJ frente à tormenta à sua frente. Do alto de sua terra, existe um homem em ação reduzida. A realidade depende demais da materialidade, sem ela o corpo cansa e logo recorre ao repouso. Mesmo diante do fim do mundo, é preciso descer de alguma forma à cidade.

É nessa descida onde começa Rehearsals for Retirement, o segundo filme da série machinima de Solomon. A câmera passeia solenemente pela névoa da paisagem, no loop da programação do jogo, acompanhando a chuva torrencial. Nosso testemunho e do protagonista já começa na localização difusa de Los Santos, deteriorada pela realidade desfeita. Partir da névoa e da chuva constante para os desastres naturais interferindo nas criações humanas, na cidade: o fogo consumindo a matéria, sendo arrefecido pela água, para começar a queimar novamente. A Solomon interessam esses processos naturais porque é deles que extrai as texturas do apocalipse, como se a jornada desses elementos fora de controle fosse o pêndulo para a realidade se manter.

É um passo especialmente obtuso pensando na filmografia de Solomon porque, apesar das intervenções abstratas na superfície da imagem, uma das muitas heranças obtidas de Stan Brakhage, seu amigo e também por vezes mentor, é sobretudo um mundo dolorosamente concreto que o cineasta filma. E na virtualidade de Rehearsals for Retirement, Solomon acha um mundo cuja escala é grande o suficiente para que sua câmera possa voar, sendo ainda muito próxima de  nossa realidade, para então tecer seu comentário sobre a textura física do luto, pela perda de seu amigo LaPore, e também simbólico, pela despedida ao mundo moderno do qual estamos diante.

Nessa narrativa as imagens misteriosas desencadeiam num uníssono como um feitiço, quase contemplando o mal sem explicações, dos aviões explodindo sozinhos no céu, do homem que testemunha aquilo impassível, do ruído da chuva e da neblina que a tudo toma. Vemos um carro preso ao trilho do trem, no túnel carregado de fumaça, exemplo claro do que no extracampo tanto interessa a Solomon; o túnel em questão é afastado da área urbana de Los Santos, no trilho do trem que liga o centro da cidade às áreas mais rurais. É um caminho de fuga que o estacionou ali? Quem o abandonou? Para onde foi o motorista daquele fim de mundo?

A câmera que voa, como uma alma pelos lugares que passa, em certo momento estoura a mesma cerca de madeira que vemos no térreo da montanha do primeiro plano do filme. Diferente de Crossroad, aqui Solomon experimenta a presença que se choca com a materialidade, que entra em contato com ela deixando consequências, sem a textura invisível que fazia o corpo do primeiro filme atravessar árvores. Não é sobre uma alma fora do nosso plano, um fantasma digital; a dor em Rehearsals for Retirement é de tentar reunir desesperadamente um corpo para sobreviver às texturas em colisão que tentam o atravessar.

Na realidade à beira do abismo, as imagens surreais se enfileiram, todas de objetos que tentam negociar alguma escapatória da fúria dos elementos. Um carro que se afoga, um buquê que vela algo que não vemos, a bicicleta flutuando com o avião ao fundo. A física foi exposta em suas mentiras e o fluxo do homem digital é de testemunho do ambiente destrutivo, impossibilitado de qualquer revide, retirado do controle que um jogador poderia ter em alguma jornada narrativa mais trivial (e voltaremos a isso mais à frente). Solomon acessa os signos das águas e do fogo para criar uma sinfonia particular de cidade, como o movimento da chuva de Regen (1929, Joris Ivens e Mannus Franken) sob a sombra à espreita, o fim próximo diante do consumo total pelo fogo. Se em Regen a água era assimilada pela cidade de Amsterdã, cuja arquitetura foi desenhada para conter de alguma forma as torrentes, aqui a água incontrolável luta contra o fogo interminável para se tornar refúgio apenas ao final – talvez Los Santos, diferente de Amsterdã, tenha sido desenhada para acabar.

O homem digital que uma vez foi CJ agora observa os pássaros na superfície do mar, na fuga de tudo o que as pessoas construíram, no poder de voar que cessou diante da calmaria da matéria. A destruição aconteceu além das nossas capacidades, mal tivemos chance como atuantes naquele apocalipse; nosso único poder concreto é o da observação, do espectador. Estaríamos passivos diante da cidade?

A mesma questão e a mesma destruição acontece em Last Days in a Lonely Place, o curta seguinte de Solomon, que dessa vez parece funcionar como uma história anterior aos dois: estamos na cidade ainda em decadência, prestes a ruir, mas ainda contendo signos e paisagens suficientes para nos relacionar com uma normalidade. A opção pelo preto-e-branco da fotografia, dessa vez mais enclausuradora e elegíaca, já antecipa todo o fim que iremos testemunhar; não que isso impeça Solomon de articular seu apocalipse sob meandros mais insidiosos, menos diretos. O que há são pistas, como em Rehearsals for Retirement, e é através da topografia de Los Santos que podemos entender um pouco melhor os sinais do apocalipse. Solomon indica mais deliberadamente a sua aproximação cinematográfica entre a Los Santos do jogo com a Los Angeles real; melhor, não a Los Angeles real, mas a Los Angeles imaginada tantas vezes no cinema. E para isso recorre a uma imagem em particular: um cinema abandonado.

O Legal Cinema, a sala retratada, é localizada em Vinewood Boulevard, no distrito de Market. No jogo, é um cinema de centro de cidade, no coração comercial de Los Santos. Não há qualquer reação pública expressiva a esse cinema vazio; ninguém passa na frente dele, não há letreiro indicando qual filme está em cartaz, ninguém parece ocupar a sala que exibe o filme. Quando um carro explode na frente do cinema, nada acontece; na área rural de Los Santos, quase que como consequência, a sala de uma casa começa a pegar fogo. Por essas sugestões desconexas entremeadas a essa imagem recorrente das chamas, sempre mediada pela presença ameaçadora de pessoas à distância, Solomon parece se aproximar da reflexão sobre os fantasmas que objetos e lugares guardam de traumas passados também trabalhado por David Lynch na terceira temporada de Twin Peaks – para citarmos outro realizador que filmou um país com traumas passados.

Repete-se também as imagens de abandono elegíaco, com o vazio urbano preenchido pela atmosfera surrealista: um carro está parado com uma pessoa na floresta, um homem está petrificado sozinho no seu quarto, outro alguém aguarda algo na chuva, uma pessoa diante do mar testemunha os trovões e raios sem reação; a obsessão com os anos 50, um marco sociocultural da suposta civilização que os Estados Unidos construíram para si, através da arquitetura e através do cinema. É quase natural que a imagem que abre o filme seja na réplica do observatório Griffith, não por acaso comentado por Solomon com os ecos de James Dean questionando a hora do apocalipse em Juventude Transviada (1955, Nicholas Ray). Porque Los Santos aqui é a Los Angeles falsa do cinema, a cidade como palco dos filmes que por ali foram rodados. A memória daquele lugar se confunde com o imaginário de cinema, como um conjunto de memórias do que foi aquela cidade antes do fim. E não há conjunto de hábitos enraizados em um lugar revisitado sob o código dos fantasmas e dos filmes, desses rastros imprecisos de memória, que obedeça a alguma ordem sustentável de tempo presente.

No clímax do filme, Solomon compõe um mini-filme estrutural com a imagem da câmera fotográfica virtual testemunhando o Sol em colapso, a bomba atômica do amanhecer. A mesma pan se repete incessantemente, repetindo o gesto de destruição consecutivas vezes ao ponto da anestesia – um apocalipse programado e modificável, artificial. De alguma forma soa mais desolador, justamente porque o movimento de retorcer texturas virtuais termina irresoluto, abandonando os lugares e personagens que retratou por frestas. O incêndio foi apagado no Legal Cinema e nada mudou.

A calmaria nesse epílogo, na modulação dramática de Solomon, faz parte de um movimento de entrega. Há a vitória da natureza, há também a vitória do mistério intransponível. Escorraçados pela realidade, personagens se fragmentam; alguém sente sua solidão sob as sombras do quarto vazio, alguém se resigna com a realidade ao observar a indiferença do mar. Novamente: estamos passivos diante do movimento anônimo da cidade?

O jogador no apocalipse.

Solomon pergunta isso com imagens que representam, supostamente, o oposto ao que se espera de um videogame como GTA: San Andreas. Ao andar por Ganton, ou dirigir por Vinewood, ou mesmo voar pela área rural de Red County – onde Solomon filma um dos trechos finais, no aeroporto poeirento de lá -, existe a sensação de liberdade e de tempo próprios, no controle total do jogador. Mas pensemos no modo história – o verdadeiro diferencial que torna o jogo tão influente e tão agressivo como comentário para as transformações de Los Angeles em 1992 diante da brutalidade policial, das guerras de gangue e do racismo explícito expressado na gentrificação da cidade. Ao longo de 30-35 horas, somos transportados àquele mundo, executando as missões que guiam a história sob nosso tempo e vontade, mas planejada sob obstáculos que exigem a completude dela para que se aproveite a extensão do jogo por completa: San Fierro e Las Venturas, as cidades vizinhas a Los Santos, só surgem conforme o modo campanha avança, áreas da cidade são modificadas conforme a história progride, locais são desbloqueados à medida que missões são realizadas. Pensando dessa forma, a tal “liberdade” dos videogames, mesmo dos jogos sandbox, é apenas um leque maior de atividades e do flanar no mundo proposto pelo jogo; não caracteriza de fato uma liberdade total para se criar o que bem entender, mas sim uma liberdade negociada com o total controle criativo e narrativo dos designers do jogo.

Teoricamente, a distância das imagens de Crossroad, Rehearsals for Retirement, Last Days in a Lonely Place e GTA: San Andreas se apoia no argumento da “atividade” dos jogadores da Rockstar diante da “passividade” dos espectadores de Solomon. Mas tendo em mente que ainda estamos, enquanto jogadores, desvelando uma realidade programada – e, mais importante, linear, porque liberdade está diretamente associada à tempo -, essa distância se configura de fato como algo coerente?

É onde entra a teoria de Jacques Rancière em seu ensaio O Espectador Emancipado, de 2008. O filósofo francês não adentra nos signos dos videogames (ao menos não aqui), mas cria toda uma ideia dessa dissociação entre passividade e atividade do espectador a partir de teorias teatrais. Rancière exemplifica duas vertentes ideológicas do teatro, a do teatro épico de Brecht em se propor “a trocar a posição de espectador passivo pela de inquiridor ou experimentador científico que observa os fenômenos e procura suas causas.” [1], e a do teatro da crueldade de Antonin Artaud, em propor que o espectador “deve ser desapossado desse controle ilusório, arrastado para o círculo mágico da ação teatral.” [2]. Brecht dialoga com o espectador sob os termos da dialética franca, do ator que comenta direta ou indiretamente seu personagem através de sua impressão, e do espectador que é convidado ao debate político do texto e da encenação sem que para isso seja posto sob o véu da imersão narrativa, da (suposta) ilusão. Já Artaud pensa nessa mágica da encenação, de um espectador que assimila experiências sensoriais sem a princípio racionalizar essas impressões. Com isso, é construído o argumento de que o espectador de Brecht é mais “ativo”, pelo seu convite à reflexão das obras, enquanto o de Artaud é mais “passivo”, pela ideia da escuta que não atravessa a quarta parede do palco.

A questão para Rancière é menos de como essas teorias são válidas ou não, até porque ambas foram aplicadas magistralmente por cada um dos diretores/dramaturgos, e mesmo a interpolação entre ambas é possível em qualquer ramo das artes: da mesma forma que Michael Snow parte do cinema de paisagem que data dos Lumière para o aliar à sensorialidade pictórica das fusões e da montagem focada no cinema estrutural em Wavelength (1967), ou as pinturas entre 1910 e 1920 de Giorgio de Chirico, que pôde partir do impressionismo francês e das paisagens holandesas para chegar ao “surrealismo” de sua obra – entre aspas, porque nem mesmo entre os surrealistas ele fôra classificado após se afastar da sua fase metafísica. Não é sobre as obras que Rancière fala sobre, e sim sobre o papel de quem as recebe. E a questão central é do porquê dessa estranha dicotomia entre espectador e letargia, ou “por que assimilar escuta e passividade (…)?” [3]

Para Rancière, tanto no teatro épico quanto no teatro da crueldade isso coloca espectadores e atores em direto confronto estrutural, porque é dessa forma que desqualifica-se o espectador porque ele não faz nada, enquanto os atores em cena ou os trabalhadores lá fora põem seus corpos em ação”. [4] No cinema isso funciona de forma razoavelmente similar, uma vez que também existe o véu da quarta parede – imaginária no teatro, palpável na tela de cinema – e também existe a falta de controle do tempo na recepção daquelas imagens. No cinema e no teatro, estamos reféns do tempo de seus criadores. Já nos videogames, quem recebe as imagens não é o “espectador”, e sim o “jogador”. Ao jogador é entregue o controle, as possibilidades de renovar os caminhos da narrativa, de ponderar e decidir como serão aproveitadas as opções programadas nos jogos, o tempo no qual a obra será jogada; em síntese, ao jogador é dada a escolha.

E isso é tratado de forma ferrenha por uma parte do público de games. Obras como Thirty Flights of Loving (2012, Blendo Games), e os mistérios criados pelo diretor David Cage, Heavy Rain (2010, Quantic Dream) e Detroit: Become Human (2018, Quantic Dream), entre tantas outras, desafiam o controle do jogador, o omite da ação em prol de decisões morais, ou dedica foco maior em narrativa em detrimento de uma jogabilidade mais clássica; é só procurar em fóruns, nos comentários da Steam ou algo similar, para vê-los sendo classificados pejorativamente como “filmes interativos”, ou nem mesmo isso. Há também os jogos focados em uma história que é traduzida diretamente na jogabilidade, mais “clássicos”, mas que através dos caminhos narrativos tomam decisões emocionais que despertam a sensação de “traição” no jogador. Tomemos dois desses jogos como exemplos, Bioshock (2007, Irrational Games), um shooter de ficção-científica especulativa em primeira pessoa, e Spec Ops: The Line (2012, Yager), um shooter de guerra em terceira pessoa.

Bioshock começa com Jack, um protagonista sem memória que sobrevive a um desastre aéreo caindo no mar, e que busca refúgio em um misterioso farol no meio das águas. Lá descobre a cidade de Rapture, uma utopia subaquática moldada em volta do suposto livre pensamento e do espírito de ação, ideias promovidas pela literatura reacionária da escritora Ayn Rand. Ao longo do jogo, percebemos que aquela cidade uma vez próspera e ultratecnológica virou um apocalipse, com os habitantes tornados zumbis e ambientes destruídos por uma guerra civil. Nessa atmosfera de survival horror, uma voz nos guia para entender o que motivou o fim da cidade. Seguindo esses objetivos, vamos logo percebendo que a presença do protagonista ali é programada: sua (e portanto nossa) jornada é matar Andrew Ryan, o idealizador da cidade, que através de sua covardia em se blindar diante da ideologia de ação humana é assassinado por nós sem reagir, porque reagir seria interferir na escolha do jogador. Nossa ação é orquestrada por Fontaine, um político que confrontou Ryan e usou o povo, através da religião que antes era proibida na cidade, para questionar a utopia do magnata. Nossa queda na ilha era parte do plano para matar o rival de Fontaine, e o protagonista sofre uma lavagem cerebral para realizar tudo o que Fontaine manda. Claro que eventualmente o final do jogo é voltado na vingança contra o vilão que nos ludibriou, mas isso não tira um decisivo fator de Bioshock: enquanto jogadores, fomos enganados por 12 horas de narrativa.

Durante toda a história, faz parte da trajetória do protagonista que controlamos que ele funcione como um “vilão” não-declarado do jogo, que ele execute sua missão sem saber que a está realizando; com essa ferramenta controversa, o diretor Ken Levine busca uma reflexão sobre a suposta elucidação que as escolhas pregadas por Ayn Rand falam, e que não levam em conta a sociedade como um lugar de equidade e alguma justiça sociopolítica. Levine questiona o excepcionalismo nojento da escritora confrontando suas idéias na forma de Rapture, a cidade-fantasma destinada aos grandes feitos da humanidade mas que esconde terrível desigualdade social nas suas raízes; “escolha” não é um conceito que se aplica a todos nessa utopia. E com essa discussão, Bioshock fala sobre a própria ideia de escolha nos jogos: caso fôssemos avisados de antemão, talvez não houvesse narrativa alguma. Sofremos um direcionamento míope para melhor imersão na própria jornada emocional de Jack. Enquanto força trabalhadora, enquanto “operário”, a Jack não é dado o direito da escolha. E como jogadores percebemos que “jogar” não é sinônimo de “atividade”, ou de “escolha”; estamos no terreno pré-programado, imaginado, pelas escolhas das mentes da Irrational Games.

Isso é diretamente exemplificado também em um segmento de Spec Ops: The Line, brilhante adaptação de Coração das Trevas, que cito brevemente. Jogamos como Martin Walker, um soldado que, junto a dois outros fuzileiros, deve cruzar uma Dubai destruída por tempestades de areia para resgatar o capitão John Konrad, que ficou supostamente preso numa missão de resgate. Um dos soldados companheiros de Walker questiona sobre o uso de uma bomba fosforescente, uma arma química que derrete a pele dos afetados por ela. Ele diz que Walker “viu o efeito que essa bomba causa”, e que não deve usar. Walker então responde que “não tem escolha”, ao que o soldado replica que “sempre há escolha”. É quando o protagonista arremata: “não, não há”. E após essa cena o jogador é obrigado a jogar uma arma biológica terrível sobre seus inimigos, para mais tarde descobrir que matou dezenas de inocentes no ataque, em uma cutscene muito impactante e controversa.

Esse metacomentário de Walker, que diz com todas as letras que “não há escolha”, nos força a pensar, como em Bioshock, na essência de escolha atribuída a esses jogos. Nossa “impotência” diante dos eventos que tomam forma à nossa frente desvela explicitamente essa falsa ideia de controle do jogador. A questão é, como cito em Rancière anteriormente: essa “falta” de escolha significa passividade? Não estamos aproveitando uma experiência imersiva e sensorial baseada no nosso olhar e nossa reflexão? Essa distância, esse “controle”, é mesmo necessário para se ter uma relação frutífera com uma obra? Cabe aqui pensar então que é possível, também, a “emancipação” do jogador. Seguir um caminho determinado não nos impede de ter uma opinião sobre, de construir ligações com os signos ali apresentados. A emancipação do espectador proposta por Rancière passa por outro lugar, já que “começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir.” [5] Atribuir uma qualidade ao fato do jogador, diferente do espectador, ter esse “controle” que já se provou em muitos casos imaginário, é negar que a recepção de obras cinematográficas tem preceitos tão ativos quanto.

Nos filmes de Phil Solomon existe menos liberdade de fruição e interpretação, menos atividade de quem assiste e joga, do que em games como os Far Cry mais recentes ou Ghost Recon: Wildlands, jogos repetitivos e cujos objetivos de ação se restringem às mesmas missões ano após ano? Existe mais ação e atividade mesmo em um ótimo jogo como The Last of Us (2013, Naughty Dog), uma aventura linear cujos mecanismos narrativos são bastante definidos e pré-programados, cujo desenvolvimento de personagens se assemelha tanto a vários exemplos no cinema clássico-narrativo americano? O mesmo vale para o oposto: não existem menos interpretações, reflexões e ganchos emocionais em Bioshock como existem em Rehearsals for Retirement, e presumir isso seria trair o fato de que “o que está em ação é sempre a mesma inteligência, uma inteligência que traduz signos em outros signos” [6], que Rancière aponta no ensaio.

Essa ideia da liberdade do jogador diante dos games, sejam eles em mundo aberto ou não, soa diretamente como a falsa liberdade do espectador chamado à ação no teatro apontada por Rancière. A noção dicotômica permanece falha, e como o francês aponta, “caberia hoje reexaminar esses princípios, ou melhor, a rede de pressupostos (…): equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade (…); oposições entre coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade e passividade, posse de si e alienação.” [7]

Do espectador não é tirado o controle que um jogador teria; somos chamados a um novo tipo de fruição, tão complexa quanto a de alguém jogando, na atividade de um espectador buscando ligações sensoriais entre os planos, para que então possamos compor nosso “próprio poema com os elementos do poema que tem(os) diante de si.” [8]

A dialética das imagens propostas por todas essas obras, de duas artes aparentemente distintas, funciona sob a mediação do artista que realiza sua obra e que também escuta, de certa forma, o espectador/jogador, através das questões e reflexões dos espectadores, e da fruição interativa e interpretativa dos jogadores. Rancière levanta o quanto essa distância não deveria ser inquisidora, sob alturas distintas de argumentação, e sim uma troca comunicativa cujas transformações virão de ambos os lados, já que “a distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda comunicação.” [9] O escritor diz que “a distância que o ignorante precisa transpor não é o abismo entre sua ignorância e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe àquilo que ele ainda ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto.” [10], e como tal, os jogadores precisam ir do ponto A, que conhecem, ao ponto B, que os designers do game conhecem; não existe hierarquia pejorativa, existe diálogo e dialética, e é dessa fricção que se gera conhecimento.

Em GTA: San Andreas, podemos vasculhar a densa e vasta topografia daquelas três cidades, supostamente com a liberdade da não-linearidade, da escolha; decisões de game designers que entendem que o jogo de aparência que envolve “liberdade” é uma convocação à exploração curiosa de um espectador/jogador precisamente limitado aos desejos e regras dos criadores da obra, mas sempre se reconhecendo como tal, sem ilusões; um jogador emancipado como o espectador de Rancière. Quando estamos diante dos filmes de Solomon, não é diferente: espectadores expostos a signos enigmáticos, abstratos, cujas imagens inspiram memórias e reflexões próprias que forçam o espectador a lidar com um objeto tão oblíquo e capaz de despertar reações emocionais tão diversas, através de seu desenho de som focado em noise e ambient como um fluxo constante, ou com a torrente de imagens cataclísmicas geradas por códigos virtuais e a inteligência do quadro e do corte do cineasta. Não existe relação de qualidade entre o espectador de Solomon e o jogador da Rockstar; ambos estão em diálogo constante e fluido. Como aponta o filósofo francês, “é nesse poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador. (…) Ser espectador não é a condição passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa situação normal.” [11]

Quando se tira totalmente o controle das mãos do jogador, o suposto poder de decisão delimitado pela Rockstar, Phil Solomon escancara dois tecidos muito densos da realidade, mas que nunca soam contraditórios: estamos passivos na experiência cinematográfica de algo que nasceu na “atividade”, e ao mesmo tempo estamos conscientes como espectadores de podermos articular interpretações distanciadas que não teríamos caso estivéssemos sob a teia da imersão em terceira pessoa do agir no jogo; é demonstrado que somos capazes de produzir aquelas imagens porque estamos num mundo de recursos de ação familiares aos olhos, e simultaneamente nos é destituído o véu da missão, nos sobrando apenas o fluxo espiralado de confronto de uma natureza fora do (aí sim) nosso controle. No caos urbano de Los Santos, seja na versão oficial da Rockstar ou no mod cinematográfico concebido pelo tempo de Solomon, estar jogando ou assistindo são convites igualmente atraentes a quem está do outro lado da tela repensar o fluxo contínuo e anestésico do que significa agir.

Referências:

[1] – O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, pág. 10

[2] – idem, pág. 10

[3] – idem, pág. 16

[4] – idem, pág. 17

[5] – idem, pág. 17

[6] – idem, pág. 15

[7] – idem, pág. 12

[8] – idem, pág. 17

[9] – idem, pág. 21

[10] – idem, pág. 21

[11] – idem, pág. 21

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1$$0 é um4 1m4g3m

Por Lara Ovídio

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Os desktop movies se popularizaram nos anos 2010 junto com a internet.  Já as ferramentas de captura de tela estão disponíveis desde 1960, surgiram junto com os primeiros computadores. Os screenshots são fotografias instantâneas de tela. Mas entraram para o cotidiano como prints. Pedimos prints o tempo todo e não paramos de printar.

Os prints são imagens bidimensionais que quase sempre trazem em si elementos do app em que foram capturadas: abas, janelas, barras, botões. Possuem, como toda imagem, uma capacidade narrativa que independe da resolução, nitidez e do contexto original. Ao mesmo tempo, são fragmentos das vidas que vivemos on-line, imagens de imagens que se acumulam vertiginosamente nos dispositivos que acessam as redes. Fotos e vídeos aleatórios, conversas, lembretes, recibos, memes, figurinhas de WhatsApp, etc, etc, etc. 

Mas são as capturas dos movimentos que acontecem nas telas que permitem o surgimento de filmes que se passam inteiramente no ecrã – os desktop movies. Ao invés de se parecerem com o que foi, se parecem ao que está sendo. Janelas de janelas que se combinam uma atrás da outra, uma sobre a outra, uma ao lado da outra. Imagens heterogêneas que se acumulam, se repetem, se reproduzem, se multiplicam, se excedem, se chocam e constituem sentidos diversos. Elementos divergentes que se combinam em uma sequência de disparates que já não produz qualquer estranhamento, porque assim também se convivem imagens e textos cotidianamente nas telas dos computadores pessoais. 

A estética cotidiana dos excessos e da heterogeneidade pode ser exagerada. Em Grosse Fatigue (2013),  de Camille Henrot,  esqueletos de peixes, aves empalhadas e arquivistas do Museu Smithsonian Nacional de História Natural se misturam a vídeos de cientistas no youtube, janelas do google, imagens de livros e tentam reconstituir a história do universo pela sobreabundância e pela confusão, com um ritmo frenético e uma voz em off que guia o espectador no meio do caos. Em Noah (2013), de Patrick Cedeberg, o fim de relacionamento abusivo se dá entre conversas de skype, invasão de facebook, sites de pornografia e troca de músicas. Em Proxy Reverso (2014), de Guilherme Peters e Roberto Winter, dois jovens tentam encontrar documentos que possam provar que as eleições presidenciais do Brasil em 2014 foram fraudadas, enquanto fofocam no Skype, trocam vídeos do youtube, discutem teorias da conspiração e baixam filmes piratas. Em todos esses filmes muitas coisas acontecem enquanto a narrativa avança e as distrações são parte essencial do ecossistema de imagens.

Vivemos uma parte enorme das nossas vidas conectados. Os desktop movies se ocupam desses acontecimentos que são mediados pelas telas e o fato de que ainda que tentássemos fugir, não haveria para onde. O mundo off-line incorporou as telas, as imagens, a estética e a lógica das redes, desejando parecer com o mundo on-line e já  parecendo.

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# O recurso da captura de tela funciona como uma câmera que fotografa para dentro de si, mas nada revela sobre si mesma. # # A superfície e a profundidade se encontram numa tela só. # # # de deep, só web.  

1$$0 é um4 1m4g3m

Ainda que o cinema experimental tenha incorporado os bastidores há décadas – [Funeral de Rosas (1969), de Toshio Matsumoto], [Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho] –, nem sempre a parafernalha estava em cena. Esse recurso lembrava ao espectador absolutamente imerso na projeção, de repente, que ele estava diante de uma imagem. Nos filmes ficcionais, era também uma maneira de tensionar os limites entre os elementos ficcionais e documentais que construíam a narrativa. 

Já nos desktop movies, a parafernalha deixa de ser hard e se revela soft(ware), é a própria estética digital. A mesa de trabalho, aplicativo, google, maps, chrome, e-mail, whatsapp, facebook, twitter, zoom, meets, avisos, pop ups, abas, youtube, pastas, hd, e, sobretudo, o m0u$e. O mouse conduz o espectador em meio a narrativa, é a manifestação do personagem e às vezes do narrador. O mouse abre programas, seleciona links, destaca textos. E mesmo quando não vemos indícios de tela, suas especificidades estéticas nos lembram que ela continua ali. Por isso, o dispositivo é parte essencial e incontornável destas narrativas. 

Se por um lado o espectador não esquece a tela, pode esquecer daquilo que separa seu íntimo desktop, do que nele se vê: um filme. (Por isso, me assusto repetidas vezes ao ver clicks em minha tela que não são meus). Nesse momento, de total correspondência, não nos projetamos no personagem ou no narrador, nos confundimos completamente com ele. 

Talvez por isso Chloé Galibert-Laîné não disfarçou sua alegria ao lançar seu filme Forensickness em meio à pandemia. Muitas pessoas assistiriam o filme em seus computadores pessoais, uma tela, em quase tudo idêntica àquela em que o filme foi rodado. 

De forma que o dispositivo de visualização, poderia se parecer exatamente ao dispositivo de captura. 


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O original e o apropriado quando vistos em uma mesma mesa de trabalho parecem por vezes idênticos. É difícil encontrar algum elemento capaz de diferenciar as imagens filmadas por  Kevin B. Lee para o Transformers: the Premake, daquelas que os – outros – fãns de Transformers capturaram com seus próprios celulares e postaram no Youtube. Em tudo coincidem: ponto de vista, qualidade, estética, amadorismo. Ainda assim, Lee decide marcar uma – suposta – diferença entre original e apropriado – mostrando a pasta “My footage”, em que guarda os vídeos que ele mesmo gravou, antes de “dar o play”. Afirmando nesse gesto, a indistinção entre umas e outras. 

Camille Henrot, em Grosse Fatigue, adota uma estratégia diferente. Captura suas próprias imagens a partir do arquivo do Smithsonian Museum e trabalha para reduzir as diferenças entre as imagens que ela produz e aquelas que usou da internet. Tenta aproximar a imagem autoral da apropriada, se aproveitando da capacidade dos desktops igualarem uma à outra. As imagens capturadas em alta resolução, brilhantes, sedutoras, fascinantes, são dissolvidas no desktop, no excesso, no acúmulo, na velocidade e na proximidade com as imagens apropriadas, descarregadas, sem nitidez ou resolução. (Ou pelo menos assim pareciam na cópia pirata do filme).

 […] é sobre circulação em enxame, dispersão digital, temporalidades fracturadas e flexíveis. 

Hito Steyerl

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No auge do distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19, a vida passou a se parecer com um desktop movie. Muito do que acontecia, acontecia na tela. (Nunca as mortes, nem as contaminações). Mesmo a população que não teve direito a quarentena, mudou sua relação com as redes e os dispositivos de acesso a elas. Aulas, cursos, palestra, festas, textos, notícias, imagens, pornografia, conversas aleatórias e aplicativos diversos dividiam o mesmo espaço e ocupavam muito tempo. Ainda que os primeiros filmes de captura de tela sejam muito anteriores à pandemia, nesse período sua estética se difundiu através dos recorrentes compartilhamentos de telas.  

Mais de dois anos depois, a pandemia não acabou e a vida segue híbrida. Uma série de eventos se mantém on-line e on-line devem continuar. De repente, nos damos conta que o mundo como existia antes, já não existe mais. Assim como aconteceu com outras tecnologias, não dominamos as telas, ao contrário, elas sim é que nos dominaram. Apesar de um cansaço difuso do excesso de conexão e telas, não temos escolhas. Paradoxalmente (ou obviamente) em meio a essa exaustão, os filmes de captura de tela avançam rumo ao mainstream. Talvez um indicativo de que não vemos escapatória para o convívio full time com as telas e as redes, talvez apenas indício de que algumas histórias não podem prescindir destes dispositivos como parte da narrativa.

Ch4ts

Esse texto recupera questões levantadas por Anselm Jappe, Jacques Aumont, Jacques Rancière, Hito Steyerl, Kevin B. Lee, Vilém Flusser e Dora Longa Bahia. Os filmes e vídeos que mencionei estão linkados no próprio texto. Agradeço a Multiplot! pelo convite, a Bruno Ferreira e a Taiani Mendes pelos comentários e sugestões. Se quiser saber mais, recomendo as seguintes leituras: AUMONT, Jaques… et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995. JAPPE, Anselm. Guy Debord. Editora Vozes: Petrópolis: 1999. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. STEYERL, Hito. Em defesa das imagens pobres. Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes. Universidade do Porto, s/a. Disponível em: https://alix.fba.up.pt/em-defesa-das-imagens-pobres acesso em: 13 set. 2021. ______. ​​Capítulo 11: A internet está morta? In: Hito Steyerl: Três capítulos de Arte “Duty Free”: Arte na Era da Guerra Civil Planetária. Tradução: Carolina Eiras Pinto. ARS, ano 18, n. 3, p. 291 a 308, 2018. 

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