Estática e cinética, sistema e indivíduo: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles

Por João Lucas Pedrosa

Discorrer sobre Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, envolve inevitavelmente discorrer sobre a permanência (e a derrocada) de um sistema que constitui os alicerces do filme. Um sistema, sobretudo, de trabalho. Segundo a Física, o trabalho existe quando uma força exercida sobre um corpo gera o seu deslocamento. A força exercida durante esse deslocamento é a que conhecemos por “cinética”, cuja raiz etimológica é a mesma de “cinema” (kinema, “movimento”; kinein, “mover, deslocar”). Tratar de cinema é, portanto, tratar do movimento, desse deslocamento cujo trabalho aparece como fundamento-motor, como a força que faz mover. Essa força pode tratar-se da vida mesma que passa pelo ser, coisa ou lugar captado pela lente, como pode também tratar-se da força mecânica da câmera que registra os efeitos da força misteriosa primeira, e a obra fílmica surge primordialmente como produto do choque entre essas duas forças.

Em filmes como Um Homem Com Uma Câmera (1929) pode ser estabelecido um preciso contraponto estrutural e histórico a Jeanne Dielman. Em meio à exaltação da industrialização soviética e da consequente articulação entre homem e máquina (como aponta o título de sua obra), Dziga Vertov desenha em cerca de uma hora o funcionamento do dia de uma cidade, guiado pelo percurso de um cinegrafista que registra cidadãos em trabalho e/ou atividades rotineiras, máquinas e construções. A montagem estabelece entre os componentes uma harmonia operacional, como células de um grande organismo, que é a metrópole. Quando os cidadãos repousam, toda a cidade o faz, e a grandiosa geometria dos edifícios reflete o repouso dos corpos dormentes na cama, nos bancos da rua. O despertar é igualmente compartilhado e, numa das sequências iniciais, o enquadramento da chegada de um trem é justaposto a planos-detalhe da agitação de uma moça na cama de sua casa, que eventualmente desperta com o balançar do plano anterior. Os dois eventos tomam lugar em diferentes espaços, mas a edição permite o agito contagiar um espaço indeterminadamente distante. A edição estabelece uma ligação metafísica entre homem e máquina. O que os une é a força do movimento, sendo o filme o campo dessa troca sinérgica.

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A metalinguagem é muito presente em Um Homem Com Uma Câmera e associa o trabalho cinematográfico-criativo aos demais: o filmar e o editar não são diferentes do dirigir caminhões, do lavar roupas ou do costurar (ação, esta, justaposta com o “cerzir” da montadora). O fazer cinema faz parte do fazer a cidade,

faz parte da atividade coletiva que constitui a metrópole mesma. As máquinas trabalham para as pessoas que para elas trabalham (por isso as cadeiras do teatro abrem-se sozinhas para a acomodação dos espectadores que chegam na abertura do filme) e daí se dá o funcionamento coletivo do organismo comunitário soviético. O trabalho funciona aqui como cinética combustível do mundo, como energia vital de um espaço do operariado, que funciona pela e para a operação laboral. Eis a construção da União Soviética como um grande corpo-nação, em que o labor é a entidade que rege o mundo.

Se a obra prima de Akerman e a obra prima de Vertov funcionam como exemplares opostos, é principalmente por serem oriundos de momentos e motivações histórico-estéticas diametralmente diferentes. Na União Soviética de 1929, Vertov procurava desenvolver um cinema independente das demais artes, livre do roteiro e da noção de narrativa. Seu projeto envolvia registrar principalmente acontecimentos ao invés de encenações (salvo exceções como a moça acordando), e ressaltar, dentro da obra, o artifício cinematográfico, lembrando todo o tempo que estamos assistindo a fragmentos deliberadamente ligados, ao que registrou uma câmera, (articulando a emancipação da sétima arte a ambos o entusiasmo construtivista da época e a exaltação operarial da URSS leninista). Já Akerman, na Bélgica de 1975, influenciada pelo movimento feminista e por um crescente ideário da emancipação individual da mulher, trata não do sistema coletivo de trabalho, mas de um microcosmo laboral invisibilizado por séculos de costume: o doméstico, ao qual associará a escravização do corpo feminino. Ela se apropriará dos acontecimentos para criar uma diegese narrativa profundamente imersiva, reduzindo as ações ao mais bruto e banal pela duração quase absoluta do filme.

Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles acompanha três dias na vida da protagonista que dá nome ao filme, quase todo passado dentro da casa cujo endereço também constitui o título (mulher e casa são nele cooptados como homem e câmera em Vertov). Os dias são preenchidos por atividades domésticas: fazer a cama, cozinhar as batatas, botar a mesa, servir a janta, tirar a mesa, fazer a cama do filho. As ações são registradas em tomadas estáticas, geométricas, com profundidade de campo e na integralidade de sua duração, intervaladas por espaços vazios que precedem e sucedem a entrada, ação e saída de Jeanne em cena. Ela se prostitui a um homem por dia, ação que é elipsada: o enquadramento corta seu rosto do queixo para cima, ela pega o casaco do cliente na sala e o pendura na parede, acompanha-o até seu quarto no fundo do corredor e fecha a porta. Um jump cut que baixa as luzes do cenário sugere um lapso temporal no qual teria acontecido o programa. Mesmo as elipses são posicionadas estrategicamente no intuito de manter a sensação estagnada da rotina da personagem ao preservar a duração integral de cada atividade doméstica. Ivone Margulies, em seu capítulo sobre o filme no livro “Nada Acontece”, associa essa escolha estética a uma descrição cumulativa

inspirada na literatura hiperrealista: a dinâmica dos cortes entre longos blocos de ação funcionam como conjunções aditivas, em que ações são enumeradas e empilhadas, e delas é bloqueada qualquer dimensão simbólica ou evasão metafísica. O aqui e agora da rotina de Jeanne é tudo o que há em seu amontoado alienante de tarefas.

Segundo também ressalta Marguiles, é muito caro a Akerman o movimento do cinema estrutural nos EUA dos anos 1960 e seu projeto de centralizar a forma do filme, no qual a narrativa tem importância marginal. Neles, um objetivo formal específico guia a obra (em exemplos mais claros, como em Wavelength (1967) um lento zoom in de mais de 40 minutos, ou em Back and Forth (1969) o movimento de ida e volta da câmera, ambos de Michael Snow), de forma que a encenação narrativa surge de modo fragmentário, no momento em que a câmera, no meio de seu obstinado dispositivo, acabou captando. Voltamos à dupla do início do texto: a força da vida que move o evento prefílmico e a força mecânica que move a câmera que o registra. No cinema estrutural, cada uma tem seu movimento independente friccionado, e o filme, como faísca, surge dos seus atritos e esbarrões.

Em Jeanne Dielman, entretanto, Akerman inspira-se nesse movimento para criar um corpo fílmico que ande em paridade com a narrativa e cause um impacto dual no espectador, construindo tanto uma harmonia sensorial que o embala quanto uma distensão temporal da ação que permite a reflexão sobre ela enquanto acontece. A rígida execução do sistema formal é necessária para que, na metade do filme, ele seja totalmente corrompido. Na noite do segundo dia, Jeanne queima as batatas da janta de seu filho após um programa que demorou um pouco demais, afetando as convenções de seu deslocamento pela casa (num momento de ansiedade e confusão, ela leva a panela de batatas queimadas ao banheiro) e, em consequência, o sistema formal que o rege. A retórica do filme sempre girou em torno do deslocamento (a cinética) de Jeanne pelo espaço, pois são seus passos que preenchem os vazios entre as ações domésticas dentro do plano, seja entre o ato de pegar o café do armário e botá-lo no moedor, seja nos espaços vazios entre os blocos de ação, quando aparecem em extracampo. Desde o início, esse movimento atrita com a estagnação do dispositivo linguístico que a registra. Jeanne desloca-se constantemente, num labor higiênico obsessivo (que Margulies associa à tentativa de limpar os vestígios de sua profissão, “obscena” moral e cenicamente). Uma inquietude estrutural habita as profundidades de seu ser, uma inquietude que era apenas domada pela rotina. Com o queimar das batatas, essa energia não tem mais direção. Ela esparrama-se pelos cantos e causa rachaduras no que estava cimentado pela utilidade. Apenas o acaso que invade essas fendas poderia quebrar o automatismo da rotina de Jeanne e abrir caminho para sua subjetividade como agente das ações. A força primeira (vida) ataca a força segunda (mecânica) e empurra a protagonista em direção à sua emancipação.

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Naturalmente, a quebra desse sistema de contenção existencial envolve o caminho inverso da cooptação homem-aparato de Vertov, à medida que os objetos domésticos passam a recusá-la, a cair das mãos da protagonista (a escova que usa para engraxar os sapatos de seu filho, a colher que acabou de secar e precisa lavar novamente). O rompimento entre Jeanne e sua rotina doméstica se reflete nesse trabalho opositivo ao seu, realizado tanto pelos elementos pontuais desse mundo (os utensílios) quanto pelo mundo em si (no terceiro dia, ela chega à padaria ainda fechada pois acorda uma hora mais cedo). A dinâmica individual é uma, a do trabalho e da cidade é outra. Cada pequeno descompasso que consuma essa cisão indivíduo-sistema gera uma suspensão, gera a antecipação de algo mais extremo à frente. A imersão no fluxo bem sucedido das ações é tão intensa, que os seus transvios tornam-se a chave do drama, ainda que haja um arco narrativo proeminente (que Margulies identifica como tipicamente melodramático). É na dimensão material da narrativa que o drama do filme toma forma.

Para o sucesso dessa empreitada estrutural, Akerman construiu uma série de acontecimentos em benefício de uma experiência diegética fortificada. Como indica Margulies, quando Jeanne/Delphine “descasca as batatas e lava os pratos, as batatas ficam descascadas e os pratos ficam limpos”. Esse pacto de aceitabilidade pelo espectador em relação à consumação real do evento prefílmico cria o choque do desfecho trágico encenado. Ao longo do terceiro dia, Jeanne tem uma hora sobrando (ela acordou muito cedo) e desliga-se totalmente de sua rotina, saindo para procurar um botão que seja o mesmo do tipo que caiu do seu casaco canadense (não encontraria, o fim é sempre o movimento). Quando chega, abre o presente de sua irmã que chegou do correio (mais uma camada para o título?) e é pega desprevenida quando chega o cliente do dia. A câmera agora entra no quarto com ela e vemos num longo take estático o cliente deitado sobre Jeanne, movendo-se muito pouco. Ela se incomoda, agita-se na cama e, em determinado momento, tem um orgasmo, do qual se envergonha. No plano seguinte, sentada de frente para o espelho da penteadeira, ela veste a blusa, pega a tesoura, com a qual tinha aberto a encomenda, e mata o homem deitado em sua cama. São as únicas vezes em que uma ação passa de acontecimento para encenação no filme, mas são ainda homogeneizadas na estrutura do filme (conectadas cumulativamente): Jeanne fez café e abriu o presente de sua irmã e recebeu o cliente e gozou e o matou com uma tesoura no pescoço. Todas as ações são atos de emancipação de Jeanne ao indicarem a ativação de seu corpo como agente de si, e cada ato antecipava o outro pela eficácia da rigidez estrutural do filme e dos seus respectivos glitches. Foi tecida uma rede de subversões que remonta à dinâmica foucaultiana da microfísica do poder, em que um pequeno evento leva a uma teia de outros eventos que desembocam na grande mudança estrutural. A estrutura do filme, assim, faz com que o pequeno evento estopim dessa rede de alterações não seja um motivo psicológico (uma relação edipiana com o filho, presente no filme: ele não suporta pensar nela com outro homem), mas um erro material que descompassaria a estrutura de trabalho doméstico por definitivo, levando ao grande contra ataque de Jeanne ao patriarcado que a construiu. Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles precisar valer-se da precisa construção de um sistema formal e laboral para ser um filme anti-sistêmico por excelência.

O último plano do filme tem sete minutos corridos de Jeanne sentada à mesa da sala, repousando com as mãos ensanguentadas. A queda dos utensílios das mãos de Jeanne, suas hesitações, seus devaneios silenciosos e suas ações-digressões da rotina eram os bloqueios gradativamente mais agressivos do fluxo cinético laboral que se consuma quando seus desejos tomam conta das decisões de seu corpo. A estagnação do último plano não mais briga com Jeanne, mas com ela descansa, na ação mais subversiva possível num sistema do movimento compulsório: o repouso.

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“A Negra de…” e a escravidão silenciosa

Por Chico Torres

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Um filme político, para fazer valer o seu esforço, precisa ser, acima de tudo, didático. Afastando-se de qualquer estado contemplativo ou de apelo emocional, deve indicar sistematicamente suas ideias e críticas, não poupando esforços para transmitir com precisão tudo o que almeja. Por outro lado, para progredir ainda mais em suas funções políticas, deve se propor a elaborar todo o seu arsenal ideológico sob o véu inocente de uma narrativa. Sendo assim, antes de se apresentar como tese ou documento histórico, um filme político irá funcionar plenamente se chegar ao patamar de obra de arte.

E “A negra de…” (La noire de…), de Ousmane Sembene, atinge esse propósito. Um filme objetivo, que possui apenas uma hora de duração, não trazendo consigo nenhuma superficialidade. Um filme pessimista e não condescendente sobre as mazelas do colonialismo francês na alma de uma jovem mulher senegalesa. Na obra, o artifício do trabalho é o elemento principal para se pensar criticamente essa questão. O trabalho faz evidenciar as diversas relações sutis sobre a alienação e suas camadas. Pois não é Diouana cada vez mais incentivada a alienar-se de sua cultura, dos aspectos de seu povo, para cultuar o progresso estrangeiro do colonizador, consumindo sua moda e procurando adotar às suas maneiras? Não é ela quem parte para a França, sonhando com um emprego digno que irá lhe proporcionar os avanços da vida civilizada? Todo o sonho ingênuo de Diouana é apagado quando a personagem descobre que seu trabalho não é cuidar das crianças do casal francês de classe média, mas ser sua empregada doméstica.

Vemos pouco a pouco as energias de Diouana serem sugadas. O acordo civilizado que garantia o seu sucesso como alguém que se liberta das condições limitadas de seu país, torna-se  escravidão, já que agora ela circula apenas entre as paredes do apartamento dos patrões. Estes, subjugam Diouana seja de forma sutil ou direta: vão dá exotização à humilhação sem o menor constrangimento. O ponto mais sensível da personagem é o modo como aquelas pessoas a enganaram, a rebaixando a um papel que ela não esperava cumprir. Revela-se assim o caráter ambíguo da personagem, já que alienado. O que é ferido em Diouana é, antes de mais nada, o seu orgulho.

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Portanto, o que vemos ao longo do filme é o crescente sofrimento psíquico da personagem, submetida a uma condição de isolamento completo. Ainda que as funções domésticas de Diouana sejam simples, o que a deprime não é a exaustão, mas a clausura, o modo injusto como se dá o seu trabalho e as constantes humilhações que sofre, sobretudo de sua patroa. Diouana vive fechada no apartamento, tendo que sofrer uma série de humilhações da mulher ociosa.

A Clausura é um dos elementos mais relevantes no filme. Não apenas no que se refere à claustrofobia provocada pela presença constante de Diouana no apartamento. Muitas das cenas que se passam em Dakar estão contaminadas pela presença do colonizador, como se o território africano pertencesse a ele, como se as trocas de cenários e ambientações não tivessem quase nenhuma demarcação, nos dando a sensação de que espaços tão distintos, na verdade, integram um único espaço dominado. O exemplo mais didático dessa questão é a cena em que negras se oferecem como mercadoria para serem empregadas pelos brancos. Elas ficam paradas nas calçadas, enquanto mulheres brancas as analisam como peças a serem compradas, referência explícita ao processo de compra de escravizados. Uma cena bastante funcional.

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Se em suas aspirações vemos uma Diouana alienada e fútil, é através de uma narração em off da própria personagem que percebemos suas angústias, coisa que contrasta com sua personalidade de jovem deslumbrada. A narração nos chega como um discurso de revolta, quase existencialista em suas reflexões, impondo à personagem um tipo de sobriedade que acaba por indicar muito mais os pontos de vista do diretor do que consonância com o caráter da personagem. Até o próprio suicídio de Diouana pode ser visto como a adição de uma mensagem política direta. Isso pode artificializar o universo particular da personagem, mas cumpre o papel denunciador do filme. O suicídio de Diouana é exemplar, à medida que revela o aspecto trágico que submerge de um cotidiano que esconde uma série de mazelas estruturais.

Sembene não ameniza em suas escolhas, o que evidencia o seu engajamento. A mensagem carregada de pessimismo surge sempre mais potente do que a narrativa, mas esta continua lá, se desenvolvendo através das pequenas misérias cotidianas, fazendo com que nos emocionemos com o sofrimento da jovem senegalesa.  O filme termina declarando orgulho e resistência, pois nem Diouana e nem sua mãe aceitam o dinheiro que o francês oferece para amenizar a sua culpa. A grande máscara africana que figurava na parede do apartamento do casal francês e que foi um presente de Diouana, volta para sua origem e, através de um menino africano, surge como símbolo fantasmagórico, como se a África e tudo o que ela pode representar, todo a beleza e o todo o horror, assombrassem aqueles que ousam invadir o seu território e retirar a sua liberdade.

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Justine Triet, uma cineasta no século XXI

Por Lucas Saturnino

I.

Dado que “Sur place” (2006) e “Victoria” (2016) compartilham um ponto de partida dramatúrgico em comum, pode-se dizer que Justine Triet passou da videoarte à comédia romântica de modo absolutamente coerente. A francesa Justine Triet nasceu em Fécamp, na Normandia, em 1978. Formou-se em artes plásticas na Escola de Belas Artes de Paris. Seus primeiros trabalhos em vídeo (como “Sur place”) circularam majoritariamente em museus. Em uma década, suas narrativas audiovisuais foram do Centre Pompidou ao Varilux (que exibiu “Victoria” no Brasil) movidas por um mesmo motor: a precarização do trabalho e a mútua erosão das esferas pública e privada na sociedade francesa.

“Sur place” se baseia em filmagens de uma manifestação anti-CPE (“Contrat Première Embauche” = “Contrato do Primeiro Emprego”) em Paris, março de 2006. No início daquele ano, o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin havia apresentado um projeto de lei para instituir um novo tipo de contrato laboral, o CPE, cujo objetivo seria combater os altos índices de desemprego na juventude – entre 20% e 25%, número que se mantém até hoje. O CPE seria destinado a menores de 26 anos e tornaria a demissão mais fácil, permitindo ao empregador demitir seu funcionário sem a necessidade de apresentar quaisquer justificativas durante um “período-teste” de 2 anos – duração máxima do contrato.

Argumentava-se que, aos olhos dos empregadores, seria mais fácil contratar caso também fosse mais fácil demitir. Todavia, protestos de larga escala irromperam por todo o país, capitaneados por jovens, estudantes secundaristas e universitários. A enorme oposição ao CPE – 68 universidades públicas foram ocupadas, estima-se que até 3 milhões de pessoas possam ter saído às ruas, em meio a paralisações e ameaças de greve geral – sagrou-se vitoriosa quando o governo recuou, abandonando a proposta menos de um mês após o presidente Jacques Chirac assiná-la.

“Sur place” prenuncia duas décadas politicamente tumultuadas na França. Com efeito, os protestos estudantis de 2006 inauguraram uma nova era de insurreição social no país, junto à revolta que havia eclodido nas periferias francesas em 2005, após o assassinato de dois jovens de origem imigrante em decorrência de uma ação policial – e, no filme de Triet, veem-se muitos negros.

Contudo, nenhum contexto nos é dado: cabe ao espectador projetar nas imagens as razões que ele deseja para a revolta; assistir “Sur place” é uma experiência similar à de ter vivido a década de 2010, acompanhado o surgimento de grandes protestos por todo o planeta e as subsequentes tentativas de decifrar seus significados ou mesmo se apropriar da dor, revolta ou catarse dos outros (ou deslegitimar tudo isso) – da Primavera Árabe ao Chile e Hong Kong, de junho de 2013 no Brasil aos coletes amarelos na própria França.

Triet enquadra a Praça – espaço-símbolo de tantas dentre essas manifestações – e o guião é prontamente reconhecível: o protesto se encaminha ao fim e os participantes se agrupam – ou são agrupados (pelas câmeras da cineasta, mas também pelas da mídia em cena) – em um canto, e a tensão aumenta à medida que se instala a estranha calmaria que precederá a previsível tempestade a ser incitada pela ação da polícia.

“Sur place” contrapõe o niilismo dos jovens manifestantes, dispostos a encarar a repressão, ao niilismo dos patrões, confortavelmente fora de quadro, propensos a bancar a violência que explodirá no espaço diegético. O confronto entre manifestantes e policiais é o choque entre um movimento caótico e outro mecanizado – os policiais, afinal, já foram absorvidos pelo mercado de trabalho. A ambiguidade/transitoriedade das narrativas que buscamos impingir discursivamente nas imagens é reforçada pela presença de policiais à paisana, os quais parecem ser manifestantes constantemente virando a casaca.

O vídeo “Sur place” pertence à Colecção Berardo, além de integrar a coleção new media do Centre Pompidou, em Paris. A Colecção Berardo leva o nome de José “Joe” Berardo, empresário madeirense que fez fortuna explorando ouro na África do Sul, e conta com obras de artistas como Picasso, Bacon, Miró, Duchamp, Warhol, Basquiat e etc.

Em 2006, um comodato (empréstimo gratuito a prazo) de 862 obras entre Berardo e o Estado português deu origem a um museu no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 2016, o acordo foi renovado até 2022. Como “Sur place” não está entre as 862 obras inicialmente inventariadas pelo Estado, é de se supor que sua aquisição tenha ocorrido entre 2007 e 2008, quando novas peças foram compradas.

O acordo previa a ampliação anual da coleção: o Ministério da Cultura e Berardo contribuiriam com 500 mil euros cada e formar-se-ia a Coleção Estado-Berardo, a qual poderia ser vendida ou adquirida por uma das partes ao fim do comodato. Compraram-se 214 obras antes de Berardo e do Estado português desistirem da iniciativa em 2008. E, assim, “Sur place” foi parar num museu em Lisboa.

Em 2019, Berardo tornou-se pivô de um escândalo em Portugal: ele deve cerca de 980 milhões de euros a bancos portugueses (inclusive públicos), que desejam aceder à coleção para cobrar a dívida. Convocado a prestar esclarecimentos no parlamento, riu-se ao ser confrontado pelos deputados sobre as suas dívidas. Segundo Pedro Lapa, antigo diretor artístico do Museu Berardo, a Coleção Estado-Berardo teria sido formada de maneira “pouco precisa, pouco estruturada, numa perspetiva museológica e nacional” e as 214 peças (“Sur place” inclusa) adquiridas em conjunto por Berardo e pelo Estado teriam um futuro incerto.

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II.

Triet filmou duas eleições presidenciais francesas seguidas: 2007 e 2012. Em ambas, dirigiu-se à Rue Solférino, em Paris, onde fica a sede do Partido Socialista francês. Em 2007, realizou um documentário de média-metragem, “Solférino” (2009), que registrava a decepção (compartilhada por ela) dos presentes com a derrota de Ségolène Royal frente à Nicolas Sarkozy. Cinco anos depois, retornou ao local para incorporar a ocasião na ficção. Em “La bataille de Solférino” (2013), seu primeiro longa, Laetitia Dosch encarna uma jornalista cobrindo o dia eleitoral enquanto o ex-marido briga com ela para poder ver as filhas dos dois – em suma, ela falha em manter a vida pessoal afastada da profissional.

Ao fim do dia, após serem conhecidos os resultados, tumultos (igualmente descontextualizados) emergem nas ruas e se pressente o enfrentamento com a polícia –momento em que a tensão racial é evidente. A personagem de Dosch funciona como uma extensão das pequenas massas de fotógrafos e jornalistas que víamos cobrindo os protestos em “Sur place”. Ao ex-marido, ela se jacta de ser uma formadora de opinião, alguém a quem o público recorre para construir um ponto de vista.

No entanto, a própria estrutura do filme realça a futilidade de se emitir julgamentos com base em recortes arbitrários e seletivos. Quem se atreve a ser categórico a respeito dos personagens? Por um lado, os ex-cônjuges comportam-se de maneira que corrobora as acusações de um em relação ao outro – a mãe a praticar alienação parental e o pai a ser violento. Por outro, presenciamos uma situação-limite e não sabemos de mais nada sobre os dois – ambos são narradores não-confiáveis; falta-nos, justamente, informação.

No instante da vitória de Hollande, a reação da jornalista à História desenrolando-se à sua volta é de indiferença e, sobretudo, desorientação. Ela se encolhe na massa; e o documentário sufoca a ficção. Triet achava que Sarkozy iria ganhar, de modo que o estado de penúria da personagem seria compartilhado pela multidão. Faltou combinar com os russos, já dizia Garrincha. Mexer com o real pode ser assim imprevisível. Dosch teria até sido confundida com uma verdadeira repórter, sendo cobrada pelo seu posicionamento.

Na obra de Triet, a deterioração das esferas pública e privada é um processo que se intensifica conjuntamente. As relações entre pais e filhos se encontram judicializadas: é o Estado quem define quem estará com quem e quando, organizando os elementos em cena. A luta do pai em “La bataille de Solférino” é para poder permanecer no espaço diegético – e ele o faz exibindo uma decisão judicial.

As protagonistas de “La bataille de Solférino” (uma repórter) e “Victoria” (uma advogada) têm muito comum: o emprego das duas pressupõe uma dose de performatividade pública (manter uma imagem: a maquiagem e o figurino mudam drasticamente quando elas não estão trabalhando) e ambas lidam diretamente com o aparelho estatal. Elas representam canais de comunicação entre o povo e o Estado; nenhuma, porém, está dando conta.

A repórter passa o filme segurando o choro, à sombra da “festa da democracia”, e tentando manter o autocontrole em frente às câmeras, o qual inexiste, na vida privada da formadora de opinião pública, a partir do momento em que ela sai do ar. A advogada também trabalha performando – diante dos representantes do Estado (e os julgamentos são razoavelmente ridículos; representação sintonizada com a crise de confiança na aptidão da democracia).

No início de “Victoria”, a personagem-título surge discursando diante de uma câmera: trata-se de uma mensagem de felicitações a um amigo que está se casando. Ela erra e repete várias vezes. “Mais natural”, diz quem está a filmá-la. “Seja mais natural”. Fora do trabalho, Victoria se mostra extremamente desconfortável em performar. Perdeu o jeito.

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III.

“La bataille de Solférino” é uma ficção imersa no real. “Victoria” também; embora não tenha um “pano de fundo documental”, à exemplo das eleições no filme anterior. Assim como em “Sur place”, o estado das relações trabalhistas na França impulsiona a ação dramática no filme – uma comédia romântica cujo romance só ocorre devido ao desemprego. Em outras palavras, a ficção resulta da teatralização de tensões político-econômicas e sociais. À título de comparação, um movimento semelhante ao realizado em “Les Neiges du Kilimandjaro” (2011) e “La Villa” (2017), dois filmes de Robert Guédiguian que, por sua vez, versam sobre os efeitos da desindustrialização no sul da França.

“Victoria” aborda as relações de Victoria – uma advogada, mãe de duas filhas pequenas – com três homens diferentes: seu ex-marido, um amigo que ela aceita defender em um processo de assédio e um antigo cliente que passou a trabalhar de babá para ela.

No casamento de um conhecido em comum, Victoria reencontra Samuel (Vincent Lacoste), um ex-traficante a quem havia defendido. Ele parou de traficar (ou seja, deixou o mercado informal) e precisa de um emprego; então, tenta convencê-la a aceita-lo como seu assistente pessoal: afinal, ela precisa de uma babá e ele está disposto a tudo; assim, os dois podem unir o útil ao agradável – ou o burnout ao desemprego.

Samuel explica-a que poderia ser útil como uma espécie de faz-tudo, um “homem nas sombras” (a subalternização implica em invisibilidade, à exemplo do que diz o guarda-costas encarregado de proteger Victoria durante o julgamento: “Eu sei como manter certa distância”) capaz de resolver os problemas dela, além de estar disponível a qualquer horário, pois até dormirá – por necessidade dele – no trabalho (i.e., a casa dela).

Ele propõe-na um teste: passará uma semana dormindo no sofá dela e trabalhará de graça em troca de uma oportunidade. Sua saída para se reinserir mercado de trabalho é a sujeição absoluta – direitos trabalhistas inexistem e mesmo o salário, em meio a estágios não-renumerados e jobs por visibilidade, torna-se um luxo, quase um favor do patrão.

A influente youtuber Nathalia Arcuri (dona do que afirma ser o maior canal sobre finanças no YouTube do mundo, e apresentadora do programa “Me Poup!” na Band) recomenda uma conduta semelhante ao desempregado: oferecer-se para trabalhar de graça durante 4 horas por dia em um período de 2 semanas, com a finalidade de poder demonstrar o seu valor e se fazer “presente e insubstituível”.

Samuel se desvaloriza para mostrar que ele – um jovem sem experiência profissional – tem consciência de que, segundo a lógica do contratante, não vale nada até se provar meritocraticamente. Tal figura do jovem psicologicamente e economicamente à deriva entre o desemprego e o subemprego é uma constante no cinema francês contemporâneo e encontrou sua expressão mais marcante em “Jeune femme”, de Léonor Serraille.

Note-se que a vitória de Hollande não serviu para muita coisa, o que ajuda a explicar o colapso da centro-esquerda em países como a França e a Alemanha. “Nada mudou”, declarou Triet um ano após a estreia de “La bataille de Solférino”, atentando para a ironia dos cartazes excessivamente esperançosos com o candidato socialista, os quais logo adquiriram um aspecto de comicidade e cinismo. Diferentemente de quando Miterrand foi eleito nos anos 1980, ela alega que a maioria dos apoiadores de Hollande tinha consciência de que nada mudaria e de que a grande vitória era a derrota de Sarkozy.

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IV.

Se considerarmos que o papel mais famoso do Melvil Poupaud é em “Conte d’été” e que neste filme ele bem poderia estar interpretando a mesma pessoa 20 anos depois, “Victoria” é um filme no qual a protagonista tenta salvar um personagem do Rohmer de uma acusação de assédio sob o argumento de que “Sim, ele é um babaca, um grande merdinha, todos sabemos, mas, afinal e a rigor, isso não é crime”.

O personagem de Poupaud não tem mulher nem filhos. Então, a estratégia para que o júri veja-o como um “cidadão de bem” é focar no trabalho, encenando-o como alguém respeitável mediante suas responsabilidades profissionais – a essência do homem. “As pessoas não veem homens bonitos como assassinos. E pessoas bonitas ganham mais que pessoas feias”, explicam-no – imagem é autoridade é dinheiro é sexo é imagem.

Outra linha narrativa trata da apropriação que o ex-marido de Victoria (um aspirante a escritor) faz da história de sua vida – ele pode, é o homem, o autor, cheio de status e hubris –, criando uma personagem inspirada nela, a qual, informam-nos, ganhou o direito de explorar inclusive no cinema. Ora, mas já estamos vendo um filme!

A história de Victoria, tal qual contada por Triet, inclui o fato de que um homem tentou tomar sua biografia de assalto – e conseguiu. A cineasta se reapropria dessa apropriação; porém, sem omitir as difamações do ex-marido, sejam verdadeiras ou não, muitas das quais até podem ser – Victoria admite ter transado com juízes, por exemplo. Pois Triet afirma não desejar que suas personagens femininas sejam meramente vítimas.

Triet sabe que o modo mais justo de se amar alguém é amando-o de maneira que abarque também os seus defeitos – quanto mais em uma economia regida pela performatividade social. A imperfeição da personagem humaniza-a e engrandece-a; suas falhas não são rebeldia ou pose, mas vulnerabilidade e desorientação: ela, uma advogada bem-sucedida, porém esgotada psicologicamente, é a personificação da sociedade do cansaço e do quão insuficiente e insatisfatório é mesmo o “sucesso” burguês no capitalismo tardio.

Simbólico que o personagem de Lacoste seja um traficante – ocupação-chave da vida contemporânea – e que seja o traficante a virar o apoio psicológico dela. Só cheirando ela se põe de pé para a última missão. A vida à base de fármacos – medicinais ou recreativos.

Igualmente emblemático que Victoria tenha comprado um celular inquebrável, que pode ser arremessado no chão ou contra a parede porque foi “feito para militares” (vide Les combattants, de Thomas Cailley, em que a personagem de Adèle Haenel busca se militarizar para sobreviver ao apocalipse vindouro). O celular toca a todo momento com questões de trabalho – até quando ela está transando. Ele põe-na acessível o tempo todo, pulverizando a noção de expediente e tornando-a refém de sua disponibilidade.

Victoria não para de pensar em trabalho nem mesmo durante o sexo. Os homens que ela conhece na internet chegam à sua casa nos horários combinados, mas sua mente ainda não está no mesmo lugar que o corpo. Ela não consegue se fazer presente e estar ali para o outro. A relação dela com o tempo das coisas é esquizofrênica: no trabalho, está pensando no terapeuta; no terapeuta, em sexo; no sexo, em trabalho.

Após ser suspensa da advocacia por alguns meses, uma montagem sua “aproveitando o tempo” com as filhas mostra-nos o quão desconectada ela está de tudo: sem trabalhar, fica vazia, não consegue recanalizar as energias, não sabe tirar prazer de mais nada, sua vida entra numa pausa. O trabalho colonizou o modo dela estar no mundo: “Eu preciso do meu trabalho, não posso viver assim, preciso me reconectar com as pessoas”, ela diz – a vida profissional substituiu outras formas de sociabilidade.

O cenário doméstico possui um aspecto caótico: o quadro preenchido ao máximo, não há espaço, brinquedos e coisas estão por toda a parte. As crianças representam o real (em ambos os longas, interpretadas uma pela filha dela e a outra pela de sua melhor amiga), uma vez que, explica Triet, eram crianças tão pequenas que os atores é que tinham de se adaptar a elas e não o contrário. As crianças – o real – embaralhavam o set, dando origem a uma tensão crua e genuína e gerando a necessidade dos atores efetivamente virarem babás das pequenas (cf: “Poto and Cabengo”, de Jean-Pierre Gorin).

As babás nos filmes de Triet são sempre homens, invertendo a divisão sexual do trabalho clássica, que delega as tarefas domésticas às mulheres, enquanto os maridos passam o dia fora de casa no emprego. Victoria, divorciada, cria as filhas sozinha, mas não tem tempo para elas por causa do trabalho, o qual, porém, paga as despesas de criá-las. O dinheiro que ela ganha trabalhando permite-a contratar ajuda para suprir sua ausência enquanto ela trabalha para ganhar o dinheiro que suprirá sua ausência.

E o pai? Nada. É uma figura infantil, que ademais não paga pensão alimentícia há 7 meses. Já Victoria é uma mulher que triunfou no mercado de trabalho. E do que chama-a o ex-marido? “Mulher fálica”, de “sexualidade cerebral” – como se o trabalho a tivesse masculinizado. Ela afirma que seu ex-marido nasceu em uma família burguesa e não possui preocupações financeiras, tendo tempo para bancar o moralista. Por outro lado, ela não teria tido escolha exceto cometer muitos erros. Questão de classe. No capitalismo neoliberal, ascender socialmente requer certa dose de amoralidade.

Da vidente ao psicólogo, sua conduta é errante mesmo na busca por ajuda. Ela não sabe o que quer e abre-se a tudo. O flerte com o esoterismo revela uma dupla desconfiança: a ajuda não virá nem dos homens nem dos deuses; então, ela procura o oculto, um que a informe de um futuro já escrito, sobre o qual ela nada poderá fazer – os infortúnios serão obra do destino, não é culpa dela, e, bem ou mal, isso é uma espécie de conforto.

Victoria não teve tempo – essa commodity – para se perceber apaixonada e descobrir que existe outra vida além da profissional. E o que se pode oferecer à pessoa amada no capitalismo tardio? Ela declara o seu amor oferecendo ajuda para capacitá-lo profissionalmente – e apresentá-lo a todos os advogados de Paris, pois, como alertam os gurus das finanças, networking é o mais importante….

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A ética do trabalho infinito em Holy Motors

Por Gabriel Papaléo

“Nos dias de hoje, uma das igrejas de Tlön sustentam platonicamente que tal dor, que tal matiz esverdeado do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. (…) Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare, são William Shakespeare.”

                                        Jorge Luís Borges, Ficções.

 

Como se define a ética de um trabalho infinito, se o que legitima os limites do labor é o tempo? Em Holy Motors, Oscar parte da mansão onde dormiu para um dia de trabalho na sua limusine branca de rico economista (ou bancário, ou chefe no mercado financeiro, ou outra coisa), já fazendo ligações profissionais no caminho até o centro de Paris, e a partir daí serão muitas as profissões do protagonista, sempre partindo dos mistérios; de possível excêntrico milionário a encontrar vidas menos luxuosas a confirmado ator do destino invisível de uma corporação nunca vista. O único lugar onde Oscar reflete sobre o que faz é no trânsito, onde podemos acessar mais de suas ambições, frustrações e desejos; o único lugar onde vemos alguém acordar em casa é no prólogo com o despertar do diretor Leos Carax, a entrar num cinema cuja plateia dorme. O artista só reflete sobre seu tempo infinito quando acorda e quando se desloca. Pés em solo firme e consciência recuperada, é tempo de intuição, sentimentos, e sobretudo ação.

Dos elementos que mais estrutura Holy Motors como um travelogue por Paris, pelo imaginário do Cinema, pelas vidas muitas de Oscar, pelo iconográfico de personagens burgueses no Ocidente, é o ludismo no qual encara a atuação. A cada nova troca de cenários, pessoas e memórias, o mistério paira pela superfície digital que só permite sonhos em glitch. Carax nos convida a vagarosamente reconfigurar nossas expectativas, colocando contexto e personagens com simplicidade para imergir na ação e buscar rapidamente empatia diante daquelas novas vidas. Estariam essas vidas em conflito? Falta algo ao ator das muitas vidas?

HOLY MOTORS

O passeio pelos gêneros, portanto, também configura as disparidades sociais nele embutidas, como uma carta ao potencial plural de fissão e guerra da narrativa. O filme começa com um banqueiro, mas no meio Oscar assassina a si mesmo para pontuar a disparidade. Em dado momento, os violinos graves sobem para adornar o drama burguês do velho que morre; pouco antes, um pai ausente busca a filha adolescente numa festa onde era preterida, em seu carro modesto e roupas simples, na situação de drama social que passeia por um subúrbio de pedras inconciliável com os vastos jardins da mansão do primeiro Oscar. O que lhe espera é sempre a limusine, a certeza do trânsito, a companhia via relação de trabalho com Édith Scob, os olhos sem rosto que aqui são o traço de harmonia mais próximo do protagonista.

Claro que por conter passeios tão breves Holy Motors abraça a disposição a personagens arquetípicos, e na hora de satirizar comportamentos Carax mira onde lhe é mais caro, enquanto francês. O fotógrafo esteta que fala inglês entra em cena como caricatura barata, difuso nas metáforas, ridículo nos encantamentos. Grita histriônico a Merde, o mendigo comedor de flores que Oscar vive na invasão ao cemitério, e explora sua miséria quando lhe parece devido. Esses holofotes da fama e do glamour que a arte emana nesse trecho do ensaio fotográfico é usado em contrapartida ao isolamento do estúdio, da relação animalesca entre ator e atriz no motion capture, do ritual de aproximação que gera o gesto computadorizado – que também é cena, também é toque -, e encontra paralelo nos silêncios entre Merde e a modelo vivida por Eva Mendes, recriando seu desfile particular na caverna, sua Pietà farsesca diante do homem que caminha na linha da veneração e objetificação. (não que sejam coisas distintas, mas enfim.)

HOLY MOTORS

Onde está o espectador diante de câmeras agora tão pequenas?, pergunta Oscar, em uma de suas muitas ranhetices sempre respondidas com sabedoria por Céline, a motorista da limusine, que parece não se importar com essa insegurança emocional do ego da atuação; uma câmera está nela o tempo todo, afinal. Essa preocupação com a imagem que retrata, discussão direta por razões óbvias do filme, aparece sobretudo no shopping abandonado que Oscar visita com Eva Grace para uma última canção. O fóssil abandonado de uma antiga civilização comercial, com seus manequins jogados, representam menos o bobo pensamento de uma sociedade de consumo afetada por contemporaneidades, por padrões de beleza, e todos os tipos de crítica mais enfadonhas ao ser retratadas nesses símbolos fáceis, e entram mais como corpos físicos de fantasmas que ali passaram, efeitos do tempo de um passado não tão glorioso, mas que deve ser lembrado de alguma forma, porque é cidade. E a reação com o maravilhamento do trivial na cidade (que Céline ressalta a Oscar mais de uma vez) age como respiro ético diante da insensatez infinita do trabalho, diferente da cidade-bolha de estúdio da limusine de Cosmópolis, por exemplo, na qual o trabalho se estendia à rua das formas mais violentas.

Como homem que passeia, tão ou mais que homem que atua, Oscar aparece como o flaneur de Baudelaire, na cidade que contém muitas historias de Benjamin. É um diálogo sem dúvida antigo o da dedicação ao olhar da pluralidade de fantasias da cidade, suas histórias múltiplas que transcorrem e se perdem no dia-a-dia, mas é raro percebe-la sob essa empolgação imaginativa como no filme de Carax. Paris é fotografada como uma cidade de sonhos terrenos, de vidas cotidianas a se cruzar, prestes a ter tramas desbaratadas e quadros dissolvidos a qualquer momento. Nesse sentido, Holy Motors caminha como um filme que parece sempre ter existido, pela forma que a familiaridade com os temas e fluxos de seu protagonista existem no imaginário cinematográfico do espectador, em algum nível que seja. Não que seja uma construção narrativa de referências e reverências, nem que busque um perigoso e tão empostado universalismo estético, mas que use do Cinema para palcos diversos de jogos cênicos – que revelam mais sobre a política dos corpos nessa Paris, suas memórias e fantasmas, e como o presente guarda tanto.

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A magia desse cotidiano, da trivialidade, é encarada sob a ótica do trânsito, e não necessariamente da reflexão teórica, acadêmica. É ingênuo pensar na vida exercendo sua beleza do gesto, mas aqui o pêndulo do vento parece colocar Oscar onde as histórias precisam dele, e através dela revela-se violências estruturais que passam batidas por nossas vivências porque, como Oscar, não temos tempo para a cidade. As demandas até aparecem como contratos da empresa simbólica na qual Oscar trabalha – da qual nesse texto não entrarei em detalhes, uma vez que acredito nela como ferramenta narrativa de ligação de cenas, mera âncora dramática, não interessando tanto à leitura articulada aqui -, mas as histórias parecem geradas à esmo, como contos reunidos num livro, buscando sentido entre elas através da concisão temática que une todo o filme, na pulsão maníaca e francamente divertida de tentar criar imagens poderosas e efêmeras o suficiente para narrativas que se desafiam e se confundam entre si.

A explosão social do súbito arroubo de violência contra o banqueiro, em praça pública, é um desses exemplos de violência estrutural – e de curto-circuito narrativo que não é esclarecido, e tampouco inspira a resoluções; a Carax, interessa o mistério. Todos os homens, como na citação de Borges, agem e respondem a seus respectivos papeis e sofrem suas consequências, por vezes conflitantes, seja teórica ou socialmente, em tempos simultâneos ou distantes, em legado ou em corpo. O fato da memória de Oscar pouco importar para sua vida, e em nada importar para o trabalho, fala sobre esse tempo suspenso onde o presente é o único que existe, e diante do futuro incerto e oculto, o passado parece apenas obstáculo que complexifica os papeis de seguirem o planejado pelo acaso; a piada do destino, como for.

O trabalho infinito entra como antítese de uma vivência de experiências que duram. O que é fugidio, geralmente o que constroi momentos duradouros e sentimentos sempre interpretados e nunca reproduzidos, acaba sendo vivido, superado, e portanto eclipsado. Os dramas pessoais de Oscar passam sempre pela prisão da convivência artística, seus amores passados distantes pelo fluxo da profissão, seus amores futuros como promessas de um dia atuar novamente. O musical como aceno a um passado de insuficiências, o drama burguês como forma de enganar a morte através da promessa.

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Viver e morrer tantas vezes na cidade de recomeços, nesse filme moderno (e não necessariamente contemporâneo) nas vivências múltiplas do urbano, no qual as historias acontecem, o trabalho corrompe e faz o trânsito acontecer. A beleza do gesto se mantém mesmo que as câmeras tenham sumido, e esse existencialismo de frustração com as motivações úteis do trabalho parece o tipo de vislumbre contemporâneo que Holy Motors toca ocasionalmente para discutir sobre a experiência como commodity, saber que o trabalho está a serviço de alguém invisível e intocável, mas continua sendo feito porque a paixão pelo corpo e pelo movimento existem. “Pelo mesmo motivo que comecei: a beleza do gesto”, Oscar lembra a Michel Piccoli, para que não haja dúvidas.

Essa fina linha entre o desapaixonado e o encantamento pela imagem que fazem o filme de Carax tão especial no olhar para a historia das imagens – e o que os espectadores podem devolver a elas, sendo representados nas muitas historias possíveis dessa Paris utópica, sendo representados no eterno serventilismo do agir diante dos outros; seja para fins profissionais, ou emocionais. Na cidade moderna, até os carros são dotados de sentimentos e elucubrações; não é de se espantar que quem mais trabalha ao infinito sejam as máquinas que dormem juntas, e portanto tem a possibilidade de se organizar para existir além das performances demandadas pela cidade e suas luzes.

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Corpo e Máquina

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MÁQUINAS DE MONITORAMENTO, VIGILÂNCIA E CAPTURA
Camila Vieira

UMA ESPÉCIE DE COMPUTADOR – NOTAS SOBRE TÉCNICA E ESTILO NO CINEMA
Bernardo Oliveira

COMO VIVE O CORPO VIRTUAL – A PRESENÇA FÍSICA EM “O SEGUNDO ROSTO”
Gabriel Papaléo

UM HOMEM É UMA CÂMERA
João Pedro Faro

GHOST IN THE SHELL E A HUMANIDADE NEGOCIADA
Isabel Wittman

A TRILOGIA JOHN WICK E O EPÍLOGO DO HOMEM-RESPOSTA
Pedro Tavares

A MERETRIZ-CIBORGUE DE DAEHAK-RO: OS LIMITES DA VIOLÊNCIA ÉTICA E A EXIGÊNCIA DO NÃO CEGADO
Diogo Serafim

A RELAÇÃO CORPO-MÁQUINA: DE METRÓPOLIS A MATRIX
Natália Alonso

TETSUO E O NIILISMO REVOLUCIONÁRIO
Chico Torres

TRAGAM-ME A CABEÇA DE CARMEN M. – ENTREVISTA COM FELIPE BRAGANÇA E CATARINA WALLENSTEIN
Pedro Tavares

DIVINO AMOR: ENQUADRAMENTOS E EXCLUSÕES DE UM FUTURO PRÓXIMO
Kênia Torres

A SINCRONICIDADE DAS SOMBRAS
Felipe Leal
*

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Uma espécie de computador – Notas sobre técnica e estilo no Cinema

Por Bernardo Oliveira

Gance La Roue

1.

Em reportagem para a Folha de São Paulo, em 27 de agosto de 1995, o jornalista Alcino Leite Neto perguntou a Julio Bressane e Rogério Sganzerla: — Por que fazer Cinema? E, afinal, o que é o Cinema? Entre as diversas respostas disparadas respectivamente pelo “enfant terrible” e pelo “enfant gâté“, Sganzerla declara que um filme como “O Parque dos Dinossauros”, de Steven Spielberg, apesar de muito bem filmado, não demonstra qualquer preocupação com a “mise en scène”, isto é, com a forma do filme: “o que falta hoje em dia é a ausência de ornamentação, a essencialização da forma que se vê, por exemplo, em Robert Bresson […] o importante é que os filmes tenham uma forma. O filme é uma espécie de computador. Nós não temos ainda esse registro do pensamento humano que poderia ser comparado à definição do Abel Gance. Quer dizer: a música da luz, mas que poderia ser a música da luz e do som— e da fúria”.

2.

Há décadas, essa formulação me intriga: “O filme é uma espécie de computador”. Nada nas frases que envolvem essa sentença nos auxilia a tratá-la como um enigma passível de tradução — pois, a rigor, o que faz o enigma é sua perene insolubilidade a reivindicar respostas variadas, conforme as tendências e desvios de época. 

3.

Duas ideias em particular parecem saltar no entorno da sentença-enigma, sem lançar luzes ou explicá-la propriamente: a primeira afirma que, em algumas obras específicas, a mise en scène e a “essencialização da forma” corresponderiam a um mesmo movimento interno ao filme — e, para sublinhar essa característica, Sganzerla evoca Robert Bresson, deslocando o problema não para o campo do “Cinema” — o teatro filmado, litero-centrado, mais focado na manutenção do drama do que na sensorialidade da experiência —, mas para o Cinematógrafo, com as suas características e potenciais próprios, capaz de organizar a matéria sensorial de maneira irredutível aos primados da linguagem literária ou teatral. Trabalhar a forma dos filmes, em seus registros constitutivos, para fugir às representações mediadoras das outras artes e buscar a especificidade do Cinematógrafo — Bresson observa que “o Cinematógrafo é uma escrita com imagens em movimentos e sons”, cuja força “se dirige a dois sentidos de maneira regulável”. Ausência de ornamentação, quer dizer ausência de artifícios pré-concebidos; ou, nas palavras de Eduardo Coutinho, “refresco visual”, a utilização automática do clichê.

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4.

A segunda ideia se relaciona com uma noção célebre, enunciada pelo cineasta francês Abel Gance, segundo a qual o cinema corresponderia à “música da luz”. Essa ideia pode ser interpretada tanto do ponto de vista de sua realidade técnica — pois, afinal de contas, a luz incide sobre o acetato que, além de assimilá-la, em sua composição físico-química, ainda a mantém “organizada”, tornando-a passível de ser reproduzida —, como em seus aspectos sensoriais e cognitivos, pois o que o Cinema faz não é exatamente reproduzir ou mesmo representar o real, mas sintetizar blocos sensoriais capazes de embaralhar cadeias causais que, habitualmente, forneciam as coordenadas para a construção das artes tradicionais e até mesmo do Conhecimento, transformando-as em um outro tipo de registro — “um registro do pensamento humano” que, segundo Sganzerla, “ainda não temos”.

5.

Retenho aqui ambos os raciocínios para concluir, ainda que provisoriamente, que, para Sganzerla, o Cinema exprime um “registro do pensamento humano” irredutível às Artes, às “Linguagens”, até mesmo ao Conhecimento  — tal como o compreendemos na Modernidade. Em oposição à noção de Verdade, tradicionalmente instalada no real, o Cinema propõe uma experiência construtivista essencialmente criativa, articulando som e imagem em uma sequência de situações, captações e composições. Dialética não há, pois não há negatividade: tudo no Cinema encaminha o pensamento para uma experiência positiva com as sensações, tanto do ponto de vista daquele que compõe as forças, como também daquele que assimila seus clichês, deslocamentos e modulações. O Cinema, portanto, como um registro do pensamento, pode ser aprofundado por contínuas práticas de experimentação tecno-sensorial cujo resultado depende do estilo de cada “Autor” — e aqui vale ressaltar que entendo a autoria como uma categoria complexa que não atende somente a uma subjetividade encerrada sobre si mesma, mas à complexidade das interações que encaminham um processo de filmagem e captação.

6.

Para o mecanólogo francês Gilbert Simondon, os objetos técnicos possuem dois aspectos centrais: a) uma função consolidada pelo uso corrente, prescrito em manuais; e b) outra, chamada “margem de indeterminação”, que opera como uma força premente de inovação: “O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que, poderíamos dizer, eleva o grau de tecnicidade, corresponde não a um aumento do automatismo; mas, ao contrário, ao fato de o funcionamento de uma máquina guardar certa margem de indeterminação. É essa margem que permite à máquina ser sensível a uma informação exterior. É por essa sensibilidade das máquinas à informação que um conjunto técnico pode se realizar, muito mais do que por um aumento do automatismo. Uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma, num funcionamento pré-determinado, não poderia oferecer mais do que resultados sumários. A máquina dotada de alta tecnicidade é aberta; e o conjunto das máquinas abertas supõe o Homem como ‘organizador permanente’, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras”.

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7.

Um computador é uma máquina que, como qualquer objeto técnico, possui funções consolidadas e potenciais de renovação. Esse potencial aumenta e diminui conforme o usuário também aumenta ou diminui o grau de interação como o objeto em sua totalidade — no caso, não apenas a operacionalidade entre os softwares, como também a possibilidade de compreender o hardware e manipulá-lo. Sendo assim, as máquinas operariam sempre no limite entre a sua função consolidada e aquelas ainda desconhecidas, recalcadas pelo hábito. A própria história da técnica se dá como uma sucessão de tensionamentos entre a lógica escravocrata do uso consolidado e as sucessivas insurgências que a interação humana pode vir a provocar. “Novos seres técnicos” aparecem quando novos usos transformam os antigos. Em ambos os casos, tanto no “filme-cinema” como no “filme-computador”, trata-se de ampliar a margem de indeterminação para que se amplie, igualmente, o espaço de invenção.

8.

Na mesma entrevista, Bressane afirma que “o Cinema é um organismo intelectual demasiadamente sensível”, pois é capaz de assimilar, incorporar ou, até mesmo, recusar as informações e interações externas, permitindo que elas ingressem no seu sistema e reinventem as dinâmicas internas, reconfigurando usos e potenciais. Como os demais objetos técnicos, um computador é um ser sensível à informação externa. Que pode ampliar seus usos consolidados através da inclusão de novos procedimentos e informações. Em suma: é a margem de indeterminação, o elemento desconhecido, que mantém o ser técnico “vivo”. Ou seja, rico em potenciais renovadores. É a margem de indeterminação que confere ao objeto técnico uma “situação” de diferença, pois provisória e em estado de gestação e movimento. Transpondo esse raciocínio para o Cinema, percebemos que a relação transformadora entre a informação e o filme obedece às relações internas, não exatamente regras, mas a uma axiomática mínima que se opera entre duas coordenadas: o ver e o ouvir.

9.

Em uma de suas “Extemporâneas”, Nietzsche afirma que “Cultura é, antes de tudo, Unidade de Estilo em todas as expressões da vida de um povo”. Tomada como “Unidade de Estilo” — seja de um grupamento humano , seja de um indivíduo — a Cultura encarna as tensões entre subjetividade e coletividade, operando, portanto, em uma “margem de indeterminação” que jamais fixa o sentido absoluto da extensão de sua expressão, senão que a estende até as fronteiras da afirmação ou da dissolução. Em todo caso, o Estilo se confunde com a própria noção de Cultura, na medida em que são atravessadas pela estranha ideia de “Grandeza”. Portanto, para que haja Estilo (Cultura), é necessário que haja Grandeza. Em “Reflexões sobre a História Universal”, no capítulo chamado “Indivíduo e Coletividade (Grandeza Histórica)”, de 1870, o historiador suíço Jacob Burckhardt afirma que “Grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer sua influência mágica sobre nós, através dos séculos e dos povos, muito além das fronteiras da simples tradição (…). Um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior do seu tempo e ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Ele está, fundamentalmente, ligado ao grande fluxo central das causas e efeitos. Há um provérbio que diz  que “Nenhum homem é indispensável’. Mas, justamente os poucos que o são, são grandes”.

10.

E isso é de tal forma que as características da Grandeza também acabam por se confundir com as características do Estilo, construindo uma correlação que se exprime nos seguintes termos : uma Cultura — seja expressa por um indivíduo ou coletividade — encarna tanto mais a Grandeza quanto mais consegue distinguir-se pelo Estilo, isto é, pelos traços de inovação, influência; em suma, por suas ações irredutíveis a quaisquer outros registros da atividade humana, que possuem o estranho poder de evocar tanto o tempo presente (“o interior de seu tempo”), como ultrapassá-lo. Por se manifestar como Grandeza, a ação do Estilo — ou melhor, o Estilo como uma atividade — perdura e sustenta sucessivas renovações do campo expressivo, absorvendo e repelindo simultaneamente as tendências de época. 

11.

Ao que parece, Sganzerla não se referia ao “filme” enquanto suporte (película), mas ao Cinema como um sistema complexo e suas obras. Cada uma trazendo sua própria sistematização interna, geralmente fechada dentro de protocolos da Arte e da Técnica Cinematográficas. Um computador é uma máquina. E, talvez, a frase de Sganzerla queira simplesmente indicar que o Cinema é o produto estético, em si mesmo original, que emerge da originalidade da associação entre dois objetos técnicos: o cinematógrafo e a ilha de montagem. Por ser capaz de sintetizar imagens, sons e sensações, através desses dois dispositivos, o Cinema possibilitaria uma experiência estética mais completa do que, por exemplo, a Música ou a Literatura. Um computador que produz blocos sensoriais, ora ajustados às representações correntes (“clichês”), ora banhado por uma formalização extremamente variável, que se altera conforme o estilo da mise en scène e as estratégias de filmagem e captação.

12.

Nesse sentido, o filme seria um computador na medida em que opera como um dispositivo técnico apto a captar e organizar dados de ordem física (a luz), técnica (a captação, a projeção) e estética (os blocos sensoriais, o raccord). Como registro da percepção, registro cognitivo e criativo, o Cinema é capaz de organizar essas informações tal como em um banco de dados. Capaz, inclusive, de permitir que certas perspectivas e sensações sejam criadas através do entrecruzamento e a convergência desses dados. Nesse ponto, os dados que o Cinema opera indicam a força imanente das possibilidades abertas pelo Estilo, o que não ocorre sem que o “Autor” e sua equipe interajam de forma distinta com os objetos técnicos e as operações estéticas. Se o Cinema permanece no imaginário como uma arte ambígua — a “arte sem futuro”, prestes a morrer, mas que permanece instalada, há mais de um século, em nossos hábitos —, essa ambiguidade se deve às suas engrenagens maquínicas e seus potenciais de renovação.

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Como vive o corpo virtual – a presença física em O Segundo Rosto.

Por Gabriel Papaléo

 

“Long live the new flesh.”

Max Renn, vivido por James Woods em Videodrome (1983, dir. David Cronenberg).

 

Onde exatamente experimentamos algo “real”? Qual o paradigma que lhe é concedido para explorar essa realidade? Para John Frankenheimer, a virtualidade faz parte (se não é o motor) da experiência real, e em O Segundo Rosto o diretor coloca o protagonista Arthur Hamilton para questionar a natureza visual do real, o que significa sua liberdade, ou como concilia desejos distintos, pulsões discrepantes, tempos e gerações opostos nas aspirações de destruição um do outro.

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Os créditos iniciais concebidos por Saul Bass concentram desde já a disposição ao rigor que Frankenheimer prega sobretudo de texturas e superfícies falhas do psicológico e do material mostrando a fragilidade da imagem que temos (e construímos) do nosso corpo, das projeções dos ambientes ao redor nos quais intuímos uma vida. O subúrbio em teoria é um lugar de porto seguro para o protagonista Arthur, onde mora com sua esposa, mas esse iconográfico carregado da cultura americana – especialmente na projeção estética que carrega para si nos filmes – é sufocado pela estilização da câmera do fotógrafo James Wong Howe. Aquele é um lugar de confronto velado, não conforto, e a estação de metrô que abre o filme é mapeada na tradição do suspense de paranoia; a câmera colada ao rosto de Arthur, seu suor, o homem que o persegue com uma maleta, os chapéus e sobretudos que andam sem identidade pelo lugar – tudo é informação e paranoia, porque existe algo escondido nessa falsa harmonia social mecânica.

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Tratar desse corpo disperso pela imagem é das soluções mais elegantes de Frankenheimer e Wong Howe na dramaturgia cheia de camadas de O Segundo Rosto; ao evitar que o filme se torne apenas um tratado psicológico, estudo de personagem focado em texto e informação, a câmera do filme cola seu corpo no corpo do protagonista e distorce a realidade ao redor para deixar dúvidas sobre ela. As cenas de drama aqui são registradas em lentes abertas que distorcem o rosto de John Randolph antes de sua transformação em Rock Hudson, ou teleobjetivas que ressaltam o quanto o banco no qual Arthur trabalha é apenas um borrão em sua atenção. A encenação pesada, minimalista, reforça esse dispositivo quase lúdico de fotografia, como se desafiasse aquele ambientes corriqueiros a se tornarem misteriosos, seja o subúrbio vazio, seja o escritório comum de empresa da corporação do filme que vira algo soturno nos mínimos detalhes. Para Frankenheimer, a pulsão da mudança passa também pela mente, mas se origina sobretudo em um movimento corporal – se é que aqui exista alguma diferença entre eles. A chantagem feita com Arthur é feita num momento de descontrole corporal, de quase possessão, e inconscientemente talvez seja ali que ele perceba que a casa onde sua mente mora é um catalisador da mudança, dos desejos, do qual não controla inteiramente – e isso precisa mudar.

A vida anterior à transformação, ligada aos bancos, ao sonho da casa de veraneio, ao barco de cobiça, ao sonho americano afinal, tem uma estrutura definida e desapaixonada que se revela o principal motivo para a insatisfação de Arthur. O pulo do gato do diabo corporativo que o tenta com promessas é uma tradução capciosa de inconsciente. cravando que o desejo de Arthur é a mudança, e eles enquanto empresa oferecem esse serviço. A promessa é da falta de responsabilidades. “Você vai estar na sua própria dimensão”, diz um dos muitos empregados que acompanham o protagonista pelas transformações.

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E que dimensão é essa, propriamente? A vida nova de Arthur, agora Antiochus (ou Tony, pra facilitar), ligada às artes, hedonista e de contato maior com a natureza vasta, com o coletivo. A arquitetura modernista da casa nova, construída como provocação à casa do subúrbio, o clima ameno e praiano da California, as roupas mais personalizadas, a jaqueta de couro branca que entra no lugar do terno e gravata impessoais. A reunião quase religiosa hippie para fazer vinho, exemplo da sexualidade e da liberdade de expressão que Arthur procurava em sua vida anterior. O mar como fuga do subúrbio, um horizonte de possibilidades utópicas (sei que O Segundo Rosto não é um filme brasileiro, mas esse texto é, então portanto nossas utopias aqui estão também). A leveza do vento no primeiro encontro na praia com Nora, aquele lugar vazio diante do mar, habitado apenas por aquelas duas almas, como numa cena egressa de A Noite ou A Aventura. A forma que esse contexto todo contrasta violentamente com os chapéus noir da estação de metrô e o subúrbio serve de imersão insuspeita na violência do arco de Arthur/Tony, que posteriormente é revelado na primeira aparição “pública” de Tony, na primeira vez que o protagonista está diante de pessoas, do coletivo.

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E é por conta desse medo público que Tony se torna indisposto com sua nova identidade. O medo de viver em coletivo permanece a lamúria da jornada do heroi individualista americano, e aqui isso é questionado. O roteiro de Lewis John Carlino parte do conto moral muito simples e direto (homem em crise de meia-idade despreza seu cotidiano e é oferecida a ele a chance de mudar), cheio de armadilhas moralistas especialmente num contexto americanizado, e no entanto abraça ambiguidades em ambos os lados da moeda porque sabe que o motivo pelos quais os estudos exatos e os estudos humanos andam tão separados, tão díspares em utilidade, é por conta de um calculado corporativismo capitalista.

Essa disputa geracional do Arthur diretamente de um cotidiano anos 50 para Tony, cujos signos conversam mais com seu presente de anos 60, busca no isolamento um lastro do que a sociedade americana construiu pra si – e o como essa situação é insustentável, porque leva ao eterno desejo insaciável, à eterna insatisfação que é o motor capitalista do conformismo estrutural. O que Tony experimenta dolorosamente é que a promessa de mudança sem uma reeducação do olhar apenas se molda em experiência corporativa efêmera e finita; é como se O Segundo Rosto falasse que é impossível conciliar o pensamento americano individual com os novos exemplos de sociedade mais coletivista que pelo mundo surgem. Tony espera ter liberdade de pensamento e falta de comprometimentos prévios, mas quando percebe que o preço que pagou para isso é um constante estado de vigilância e paranoia, volta ao porto seguro que lhe foi imposto.

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O cotidiano se torna imaterial quando planejado, quando cercado por questões pré-estabelecidas, e é isso que impede a apreciação do presente que Tony buscava. Em determinado momento, Nora fala com Tony que “as boas coisas sempre acontecem com a chuva”, e parece que o único encantamento que nos é disposto sem a contaminação da utilidade é o que vem da natureza, e que vem do acaso.

Quando volta à sua casa original, com novo rosto, Tony recebe a notícia de que as aquarelas de Arthur foram destruídas. É como se a única expressão artística do seu antigo eu perdesse o valor no presente utilitarista, algo que nem mesmo sua família se importou em guardar. O que se mantém, no entanto, é um troféu esportista, medidor de qualidade.

O arrependimento portanto parece culminação de toda a encenação da paranoia de ter sua vida dividida em estágios, em salas organizadas, que Frankenheimer e Wong Howe promovem. O retorno à empresa para mudar novamente de identidade vira calvário do mecanismo kafkiano da corporação capitalista, vidas a serem regurgitadas em prol do mercado, um doloroso flashback involuntário de Tony voltando à sala na qual entrou por acidente quando ainda era ainda Arthur, mas agora com motivo definido: uma eterna espera. Seu corpo é dispensável sob os olhos poderosos, e como tal pode ser reaproveitado se isso for lucro. A sua liberdade, no entanto, permanece um sonho intocado por quem silenciosamente já ditava seu cotidiano desde o princípio.

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As imagens distorcidas que abrem e fecham o filme, sinais de uma vida prestes a ruir sempre que os desejos são maiores que a necessidade de se conformar com o ambiente no qual fomos designados. O contrato com o diabo cuja máquina funciona sem percalços porque sabe que o indivíduo sempre terá a pulsão da mudança e do trânsito quando a harmonia com o ambiente não está acontecendo. O exílio de Antiochus é numa casa de luxo, sozinho diante do mar, mas como alguém que só encontra felicidade no coletivo delirante comungando, estar solitário diante daquela realidade forjada é o maior sinal de que o real é virtual, e como tal simulacro não existe além do plano artificial, imaterial, e portanto extracorpóreo.

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A relação corpo-máquina: de Metropolis a Matrix

Por Natália Alonso

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Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

Em 1927, Fritz Lang presenteou o cinema com a então obra retrô-futurista pioneira do cinema. Metropolis é, até hoje, uma das primeiras referências quando se pensa em Steampunk1. Começava, de forma categórica, e nada tímida, – muito embora ainda solitária –, a relação corpo-máquina no cinema.

Metropolis é um grande centro que utiliza um sistema organizacional trabalhista influenciado pelo capitalismo, um evidente cenário pós-Revolução Industrial. O funcionamento da metrópole engloba altos níveis tecnológicos e estilo artístico. O filme é ambientado no ano de 2026 e mostra a cidade futurista ideal (cenários deslumbrantes, avanços tecnológicos inimagináveis para a época), onde aviões circulam entre edifícios gigantes, no auge da urbanização, uma verdadeira obra-prima do engenho humano. Mas a sua ambientação excêntrica e detalhista não é a única coisa que a trama intenta mostrar: a crítica social ao maniqueísmo e à oligarquia – que está enraizada na sociedade capitalista até hoje – são pontos fortes a serem analisados. O contexto sócio-político também é relatado com destreza e com toque surrealista, característica muito marcante em diversas obras retrô-futuristas.

            A relação corpo-máquina, enfim, se fortaleceu nos anos 80, em películas como Blade Runner (1982), Videodrome (1983) O Exterminador do Futuro (1984) e Robocop (1987), que também influenciaram a criação de jogos com cenário Steampunk e exploração da onda tecnológica em situações surreais ou absurdas. Na contemporaneidade, observam-se games extremamente acurados, com gráficos e cenários que evocam os filmes dos quais sofreram grande influxo. Um exemplo é Fallout. O jogo, inclusive, em especial na sua versão de número 4, faz referência ao filme que consagrou Schwarzenegger de diversas formas, a começar pela caracterização dos personagens (jogadores).

            Na maioria dos filmes, a tecnologia surge como uma importante aliada ao homem, mas acaba por causar catástrofes, com a dominação pelas máquinas e a inversão de papéis: a máquina controla o homem e não mais o oposto (destaque para O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, de 2003). A ideia de que a máquina poderia atingir inteligência suficiente e autonomia para fazer escolhas sem precisar do homem sempre transpassou os filmes de ficção científica. Pior ainda: a máquina seria capaz de alcançar uma inteligência sobre-humana, tomando conta da humanidade. O corpo humano, antes visto como instrumento de inteligência e de criação, dentro da gama sci-fi, apresenta vertentes, nas quais alcança sua capacidade máxima, tem força e poderes que não seriam passíveis na existência humana comum. Os androides, que até o século XX eram tratados como realidade em um futuro quase sempre ambientado no século XXI, são protótipos criados a partir do corpo humano (O Homem Bicentenário (1999), A.I. – Inteligência Artificial (2001), Ex-Machina (2014)). No entanto, o homem, na ânsia de aperfeiçoar seu próprio eu, cria alter egos com atributos dos quais ele não poderia desfrutar fora de um enredo de ficção científica. A inteligência artificial, derivada da humana, em diversas tramas, fornece às máquinas, ainda, a capacidade de ter sentimentos humanos, como empatia e amor.

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Matrix (Wachowski Sisters, 1999)

Mas, é em Matrix (1999), que a relação corpo-máquina atinge seu ápice nas telas. A história do hacker Neo (inesquecível, interpretado por Keanu Reeves) que é o “escolhido” na luta contra a dominação dos humanos pelas máquinas, não só tem todos os elementos clássicos sci-fi, como uma síntese conspiratória. Na Matrix, a raça humana foi dominada por inteligências artificiais. Neo descobre que esteve “dormindo” o tempo todo, conectado a um programa de computador, sem poder desfrutar sequer da própria força, sendo utilizado apenas como fonte de energia. Assim como o sempre atual Metropolis, há crítica sócio-política em relação a regimes ditatoriais e totalitários embutida no enredo, que se relaciona com problemáticas contemporâneas. Essa distopia pode ser vista em diversos filmes do gênero.

Apesar de os filmes do gênero serem reconhecidos pela saturação de efeitos especiais, também prezam pela teia bem construída, geralmente fomentando críticas construtivas e gerando reflexões mais profundas em relação à submissão da sociedade à tecnologia e a dominação pelas máquinas (na maioria das vezes em analogia à própria sociedade real). Ao longo do tempo, contudo, os efeitos foram aperfeiçoados, enquanto que a mensagem a ser passada estagnou: afinal, sempre esteve um passo à frente. Metropolis era atual em 1927 e é atual hoje.

Glossário

Steampunk: O Steampunk é um subgênero da Ficção Científica passado em uma realidade alternativa, cuja proposta estética remete ao Século XIX, como se a Era Vitoriana, por exemplo, tivesse sido de tal forma bem-sucedida que seus costumes, tecnologia e cultura tivessem perdurado por muito mais do que de fato perduraram.

 

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Tetsuo e o Niilismo Revolucionário

Por Chico Torres

TETSUO (ABERTURA)

Desde a segunda metade do século XIX e, sobretudo, início do século XX, a tecnicização da vida nas grandes cidades passou por um processo de aceleração nunca antes imaginado. Desenvolvimento do capitalismo, crescimento populacional, distribuição de mercadorias em massa, tráfego urbano, meios de transporte e comunicação, tudo isso entra em conjunção com a inserção da tecnologia na vida cotidiana. Um contexto que, desde o seu surgimento, gerou uma perspectiva dúbia em relação àquele novo mundo: a cidade apresentava, ao mesmo tempo, o sonho e pesadelo humanos.

Ao mesmo tempo que os indivíduos usufruíam do conforto e da praticidade ocasionados pela inserção da técnica no cotidiano, surgiam constantemente novas demandas psíquicas e físicas que se impunham e precisavam ser absorvidas. A máquina em toda a sua força e velocidade não só gerava medo, mas uma série de novos estímulos. Diante disso é que a modernidade fora compreendida por pensadores como Simmel, Krakauer e Benjamin em um sentido neurológico: tal condição, ao desenvolver hiperestímulos, proporcionou um novo tipo de experiência subjetiva. A vida, pela primeira vez, estava marcada por choques físicos e perceptivos sem precedentes.

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“Cidade de Nova York. Ela vale a pena?” Life, 1909.

É partindo dessa perspectiva histórica que quero pensar em Tetsuo: o homem de ferro (1989), de Shinya Tsukamoto, filme cultuado por sua subversão e ligação com a denominada cultura cyberpunk. Para além da sedução fácil de pensar a obra em seus adjetivos mais evidentes, reduzindo-a a uma caricatura, quero propor uma análise que aproxima Tetsuo desse olhar ambíguo que recai sobre o papel da técnica na vida moderna. No filme, a presença constante do pessimismo e do conflito através da relação descontrolada entre corpo e máquina, pode ser compreendida também como uma reação ao ideal de progresso, emergindo como crítica à modernidade através da maximização simbólica dos barbarismos a partir de tal relação.

Tetsuo retrata uma máquina guiada pelo seguinte propósito: habitar o corpo humano e o mundo como um parasita. Uma invasão que não se explica, que não possuí uma lógica interna (como, por exemplo, em Blade Runner e Matrix, filmes onde a máquina possui um plano “lúcido” e que depende da vida humana para se concretizar), mas que apenas perturba a integridade física e mental das personagens. Constantemente a obra afirma, por um simbolismo que sempre tem como ferramenta um tipo de fisicalidade extrema, que a humanidade não soube se utilizar da técnica, voltando a um estado de barbárie e incompreensão irremediáveis.

TETSUO V

O que se vê é uma série de imagens, ainda que agarradas a fios narrativos muito frágeis, que expressam sempre situações-limite, integrando prazer sensual e dor física sob o imperativo do vírus-máquina. Como meio de maximização dessas situações, e uma possível aproximação com questões psicanalíticas, diversas interações sexuais se desenvolvem, todas elas sob o estigma da perversão. Objetos fálicos surgem dos corpos e se personificam, afirmando, violentamente, o poder fálico e patriarcal, sendo causa e consequência daquele mundo apocalíptico.

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As técnicas audiovisuais utilizadas por Tsukamoto também buscam explorar gráfica e sonoramente uma perspectiva acelerada e desordenada que rementem a esse mundo absorvido pelo processo industrial. A montagem descontínua; a câmera na mão (uma personagem à parte que explora a falta de objetividade inerente ao filme) e as alterações nos recursos fotográficos; muitas imagens em stop motion, picotadas e aceleradas; a trilha sonora que reproduz sons maquinais, todos esses elementos revelam o desejo de construir um filme que se  mantêm à distância das formas contemplativas, com o nítido objetivo de desorientar pelo excesso e de ser um documento experimental que, sob a máscara de pesadelo distópico, se revela como uma pungente crítica à tradição, ao humanismo e ao progresso.

Nesse sentido, podemos alinhar Tetsuo ao dadaísmo e principalmente ao surrealismo, vanguardas que, na ótica de Walter Benjamin, possuíam forças revolucionárias justamente por se fundamentarem na pobreza experiencial do mundo moderno, que pelo próprio esfacelamento dos valores tradicionais da obra de arte se torna   um novo motivo artístico. Quando Benjamin escreveu o seu ensaio sobre o surrealismo, afirmou que era preciso organizar o pessimismo, sintoma característico do século XX. O filósofo alemão, interessado no poder revolucionário das vanguardas europeias, viu nesses movimentos, sobretudo no surrealismo e no dadaísmo, manifestações que explodiam os valores burgueses expressos, em arte, pela contemplação e manutenção de um humanismo que paralisavam as forças revolucionárias surgidas através do desencantamento do mundo. Ainda segundo Benjamin, a técnica surge, diante dessa   perspectiva, como elemento político fundamental do exercício artístico, sendo a política, agora, um aspecto que deve ser absorvido pela arte. Diante dessa nova perspectiva, exige-se, portanto, uma tomada de posição. É nesse sentido que Benjamin dirá que é preciso não estetizar a política (como fez o nazismo), mas politizar a arte.

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As vanguardas teriam a capacidade de se utilizar do inconsciente e do sonho (surrealismo), dos elementos industriais deslocados de sua funcionalidade, surgidos em recortes aleatórios (dadaísmo) e da ruína prematura das cidades modernas para, dialeticamente, propor uma “iluminação profana” que recairia sobre a relação ambígua advinda da modernidade, ou seja, a técnica como libertação e escravização. É assim que Benjamin, pensando na atitude surrealista, irá pensam em um “niilismo revolucionário”, postura pessimista e de consciência crítica da perda irremediável da experiência coletiva, mas que vê na própria pobreza experiencial possibilidades estético-políticas apenas possíveis nesse contexto desolador.

Penso que Tetsuo se alinha a todas essas imagens benjaminianas; que muito antes de ser apenas um filme experimental, horror cyberpunk, ou algo feito para proporcionar o mero escândalo, é uma obra consciente das limitações da tradição e, ao mesmo tempo, do poder político do fragmento, do sonho e da ruína, do surrealismo e do dadaísmo. Em Tetsuo, a ruína surge através da exploração dos espaços vazios, do maquinário abandonado e destruído (muito raramente uma máquina surge em seu estado natural de funcionamento), o que demonstra as intenções de Tsukamoto em exibir essa máquina como elemento atmosférico e, portanto, surrealista. A ruína do mundo revela o fracasso histórico do ideal de progresso, surgindo, em sentido redentor, como reelaboração estética daquilo que só pode surgir como alegoria da tragédia humana. A única possibilidade de redenção, portanto, é a exploração surrealista desses objetos degradados, buscando não uma restauração daquilo que está irremediavelmente perdido, mas um novo caminho em toda a sua radicalidade imagética. Sim, o pessimismo de Tetsuo é, antes de tudo, um posicionamento político.

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Ghost in the Shell e a humanidade negociada

Por Isabel Wittmann

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção.[…] Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra (HARAWAY, 2009 p.36-39).

 

O mangá Ghost in the Shell, um marco para o cyberpunk, que já havia sido adaptado em anime com O Fantasma do Futuro, de 1995, foi adaptado para uma versão com atores, A Vigilante do Amanhã, de 2017, protagonizada por Scarlett Johansson. É difícil não analisar ambas as obras em paralelo, já que fazem leituras diferentes de uma mesma fonte comum. Ficção científica com pitadas de ação, a narrativa do filme mais recente trata de um futuro distópico em que a Major (Johansson) possui um corpo cibernético, chamado de concha (shell), especialmente construído para receber seu cérebro após um acidente em que quase morreu. O cérebro, aqui, representa a individualidade do ser humano, sendo entendido como uma espécie de equivalência à alma (ghost). Major é a primeira de seu tipo: uma soldada perfeita para o combate ao crime, com um corpo artificial, mas entendido como humano. Ela encarna o mais próximo que um ciborgue pode chegar de um androide, ou seja um humano híbrido de um humanoide artificial.

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Os aspectos visuais dos filmes se destacam. O anime, especificamente, empresta referências de Blade Runner (1982), tratando-o como um antecessor espiritual e projetando referências a um futuro que é, sim, androide, mas mais que é isso é ciborguizado e conectado em rede. É fácil perceber como a estética foi absorvida pelas irmãs Wachowski, resultando, através da combinação de outros elementos, em Matrix (1999). O filme com atores segue as referências a Blade Runner, mas abstém-se de replicar o que já havia sido digerido por Matrix. Temos uma cidade cosmopolita preenchida com arranha-céus e adornada de neons e hologramas publicitários.

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Ambos os filmes tratam de discutir questões sobre corpo, humanidade e individualidade. Outro ponto forte das adaptações são as discussões pertinentes que suscitam, mas a encarnação de 2017 perde em profundidade ao personalizar as motivações envolvidas na trajetória dos personagens e se afastar não só das maiores reflexões (expostas em diálogos elaborados no anime) sobre os temas citados, como alterando em parte o sentido destas. Entretanto são trabalhados pontos importantes, ainda que de maneira superficial e apressada. A dúvida que norteia o roteiro é, afinal, o que nos define como humanos? O que diferencia um corpo artificial lido como humano e outro que não o é ? Major é confrontada com a casca de uma gueixa-robô agonizante e seu olhar reflete esse questionamento: se aquele mecanismo é tão artificial quanto o seu, porque os outros a tratam como humana? A resposta supostamente reside em sua alma ou seu cérebro, intacto, mas o próprio filme deixa claro que o corpo pode ser curado quantas vezes for necessário, enquanto o cérebro definha, pode ser hackeado e ter memórias manipuladas. Se aquilo que lhe garante a humanidade é justamente o que não pode ser confiado, como ter certeza de seu status de humanidade?  Conforme Donna Haraway, esses limites se apagam:

A cultura high-tech contesta – de forma intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quanto na prática cotidiana (por exemplo, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo-nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. Os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos – dispositivos de comunicação como qualquer outro. Não existe, em nosso conhecimento formal, nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico (HARAWAY, 2009, p.95).

Mas essa persiste como uma dúvida que atormenta Major, especialmente depois de incentivada a indagar-se a respeito da exclusividade de sua categoria. A versão de 2017 é claramente privada dos monólogos sobre o contexto social do conceito de humanidade focando na individualidade: Major se pergunta “quem sou eu”, não o que ela é, fugindo da noção de coletividade que envolve os indivíduos construídos. Mas de toda forma o que a leva a refletir sobre si é a totalidade artificial de sua corporalidade, uma vez que o aprimoramento cibernético dos corpos é entendido como algo corriqueiro.

Seu parceiro de campo, Batou (interpretado por Pilou Asbæk) perde os olhos em uma explosão e recebe em troca um complexo sistema de lentes muito mais eficiente do que as naturais. A prática da ciborguização leva a uma hierarquização dos corpos apresentados: mesmo que os implantes e próteses sejam melhorias, há um personagem que afirma ter orgulho de ser cem porcento humano. Mais que isso, a hierarquização perpassa a noção de humanidade com que as imagens humanoides são dispostas para o espectador. Não há dúvidas de que os gigantes corpos holográficos projetados nas publicidades não correspondem ao que se entende como humano. Acima deles, em termos de aproximação com o humano, temos os corpos físicos dos robôs, categorizados como seres sem valor, criados para servir. Em seguida viriam os corpos de seres humanos, que se estabelecem em níveis variados de poder e, por fim, os próprios ciborgues, fisicamente melhores que estes, embora com a humanidade possivelmente questionada.

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E nesse momento é importante mencionar a discussão acerca do whitewashing, ou seja, do apagamento das pessoas que não são brancas no filme de 2017. Os principais robôs que aparecem em cena têm a forma de gueixas, em uma problemática representação fetichizada e esterotipicamente submissa de raça, etnia e gênero, relativizada pela percepção de sua não-humanidade, que nesse contexto permitiria sua exploração. A única mulher negra retratada, sem nome, é uma prostituta contratada pela Major, que busca uma forma de tentar se conectar com sua humanidade. No trailer ela beija a mulher, mas a cena foi removida na montagem final. Ainda assim permanece o contexto erotizado, como se a Major buscasse um espelho de si e tentasse encontrar em outro corpo a humanidade que tenta sentir em seu. Além disso, se o ser humano é marcado também pela posse do próprio corpo (já que os corpos ciborgues, robôs e holográficos pertencem a corporações), como se encaixa essa personagem anônima na escala de humanidade? Em ambos os casos robôs e humana não-brancas são apresentadas como instrumento de uma sexualização que não lhes pertence. Isso é agravado no segundo caso pelo uso desse corpo com marcação de raça e etnia específica por uma mulher entendida como humana (embora ciborgue) e branca (contextualizada como ausente da mesma marcação de raça).

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Como o mangá e anime, o filme manteve o cenário e as influências estéticas e culturais da Ásia, mas o protagonismo é de pessoas brancas. Como uma androide com o corpo completamente construído, Major poderia representar qualquer etnia, mas é apresentada como ocidental. O problema, no final das contas, não é o papel ser delegado para Scarlett Johansson especificamente, já que a ficção científica abre margem para essa possibilidade, mas todo o conjunto de representações, contextos e subtextos presentes na obra, que resultam em uma clara percepção de whitewashing. Os entendimentos a respeito de humanidade acabam sendo apresentados de maneira intrinsecamente relacionada a raça e etnia, complexificando involuntariamente a questão principal do filme com a possibilidade de uma leitura racista.

Scarlett Johansson plays The Major in Ghost in the Shell from Paramount Pictures and DreamWorks Pictures in theaters March 31, 2017.

Vestida, ou seja, coberta do que nos é artificial, Major se apresenta, em contraste, como humana. Despida, livre da construção que é o vestuário, com o que parece um corpo nu, mas na verdade coberto por um collant composto de placas que lhe permite camuflagem térmica, ela se aproxima de outras formas humanoides não-humanas. Se por vezes humanizamos as coisas, em outras coisificamos ou objetificamos pessoas. A noção de pessoa e de coisa e as imagens que elas produzem (sejam as que estão sendo captadas nas filmagens, sejam as que são o resultado final da película) são indissociáveis.

 Torna-se assim possível imaginar uma corporalidade que nada tem a ver com as cisões entre interior e exterior, mas sim com estado alternativo de experiência produzido por acoplamentos entre complexidades. Compatibilidade e não-compatibilidade, portanto, seria o desafio em questão; a constituição de um corpo conectivo como modo de afetação entre configurações de mundo distintas e suas distintas produções de sentido (CESARINO, 2017, p.12).

Dessa maneira, A Vigilante do Amanhã não extirpa de todo as questões apresentadas no anime O Fantasma do Futuro, questionando as categorias de humano e não-humano, cujos limites são borrados pela ciborguização, e a relação destas com a corporalidade de seus personagens.

Referências:

CESARINO, Pedro. Conflitos Entre Pressupostos na Antropologia da Arte: Relações entre pessoas, coisas e imagens. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 32 n. 93, fev. 2017.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue- Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; HARI, Kunzru; TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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Olhar de Cinema: A Cidade Escondida

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Por Gabriel Papaléo

O preço visual da cidade.

Todo o arco narrativo, não-clássico e que convida aos experimentos imagéticos, se foca na jornada do ambiente abstrato a se tornar palpável diante dos olhos. O primeiro plano do filme já apresenta essa disposição, ao mostrar o céu estrelado que aos poucos se revela um chão molhado, de esgoto. Os operários que ali trabalham andam com lanternas nos capacetes, revelando o ambiente à medida que avançam, e o som cuidadoso do filme aqui só privilegia a respiração desses trabalhadores. Parece uma cena das ficções-científicas que conciliam o horror e a curiosidade pelo desconhecido, como Alien, e o diretor Victor Moreno abraça essa atmosfera no trato estético das tubulações e subterrâneos que filma.

O horror com o desconhecido parece ser a liga que mantém os vinte minutos iniciais, um trato de luzes e sombras misteriosas que aos poucos revelam suas origens. A partir dali, quando reconhecemos o metrô e suas distâncias com a cidade, a narrativa se desvela a partir de como tudo ali debaixo da terra funciona como uma base de estrutura que não encontra uma linguagem comum à sociedade, a cidade à margem que possui imagens deslocadas de contexto, abstratas à seu modo, mas ainda responsáveis pela maquinaria invisível da cidade.

Nessa aproximação entre público e privado, entre os mecanismos do subsolo e o funcionamento civil do solo, existe também encontro das pessoas com o que não está no controle delas. A presença de confronto mais forte que o diretor encontra são os animais do esgoto, hostis e vistos sob os filtros da lente noturna e da baixa resolução, o que aumenta a hostilidade diante deles, e revela trabalhadores sempre tateando aos poucos o terreno deles, como se fosse um território que estamos invadindo enquanto espécie. No debate após a sessão, Moreno disse que entre as inspirações para suas aspirações estéticas estavam os escritos de Asimov, e é notável a disposição de criar atrito ficcional entre os documentos visuais do que está abaixo da terra, e portanto é alienígena como um corpo espacial.

Esse potencial de ficção-científica na forma que aquelas imagens despertam tanto perigo quanto curiosidade, e aos poucos é localizada espacialmente até virar cidade de fato. Não por acaso o interesse em imagens microscópicas no epílogo do filme; é uma narrativa que se desafia a encontrar contos a cada desconhecido, nem sempre bem sucedida nessas aproximações, mas com pique para deixar o movimento de fricção entre mundos respirar na tela.

Por mais que perca um tanto de fôlego no final, quando o jogo de encenação se torna reiterativo, retém a força da mediação e diálogo entre o urbano e o visual rústico do esgoto que constroi a base social que nos parece tão banal. O que mantém a cidade em movimento, a força aparentemente invisível do que rege a civilidade acima, tem desses espaços que contém galáxias encontradas num chão aparentemente banal, por onde passa os dejetos urbanos.

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A Rosa Azul de Novalis (Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro)

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Por Gabriel Papaléo

Em dado momento de A Rosa Azul de Novalis, o protagonista Marcelo diz que o poeta Novalis tinha como grande objetivo de vida achar a tal rosa azul, que era uma busca impossível mas não por isso menos incessante. Para quem entra na projeção se perguntando o porquê do título o filme trata logo de explicá-lo, e ao longo de 71 minutos também se concentra em tentar achar o que move o protagonista, para descobrir a rosa azul, a Rosebud de Marcelo. Sabemos ali que é um homem que gosta de interpretar as próprias palavras, de oferecer uma leitura direta sobre os objetos que mais o interessam: as suas falas. A performance é central aqui, no contexto de que a performance parece central em qualquer filme brasileiro que se propõe observacional nessa década. Como então se oferece algo desse registro da performance?

As imagens que abrem o filme meio que o resumem: um close de um cu piscando, que então revela o corpo contorcido de Marcelo lendo um livro. É a descrição do que se diz banal, um cu, em contraste com algo supostamente não banal, a literatura ali declamada. O teor “revolucionário” do corpo e da existência, e todos os reducionismos que vêm com isso. E Marcelo, um homem com complexidades, as quais raramente acessamos além da capa da referência e da domesticação do corpo.

No encadeamento de cenas, entre entrevistas e observações cotidianas, o interessante narcisismo do personagem perante a imagem que performa fica latente. Esse é bem mais interessante quando mediado pela fala dele mesmo do que quando Vinagre e Carneiro tentam ensaiar uma encenação mais marcada, como o enterro do irmão. A estrutura do filme já abraça esse conceito de que os traumas se reconfiguram em fetiches, é algo afirmado verbalmente pelo protagonista, mas existe uma polidez na encenação que passa longe do sentimento evocado pela fala de Marcelo. É uma encenação marcada que se configura kitsch, exagerada, mas como se sentisse acima do exagero, quase cínica diante daquela formação estética que finge abraçar.

A relação de fetiche com os traumas, exposta especialmente nas cenas mais estilizadas (como a transa simbólica com o carro), coloca a capa de estereótipo homossexual a Marcelo, algo que ele mesmo abraça: quando diz que algum familiar o colocou em algum clichê gay, ele faz questão de abraçar esse clichê, como uma forma de afronte. Na cena em que fala que gostaria de enviar uma sextape para o pai, fica claro a relação traumática que Marcelo tem com sua infância, com sua família, com seu irmão. A oralidade desses contos, mesmo que registrados numa câmera na mão evasiva que geralmente ignora a imagem, cria um panorama emocional e físico do protagonista que é perspicaz muito pela disposição de Marcelo em interpretar a própria imagem que emana o tempo inteiro.

Essa hiperinterpretação de Marcelo por si mesmo fecha as leituras ao filme com recorrência, sempre didático demais no trato do personagem, mas ainda passa suas complexidades com mais afinco que a encenação de Vinagre e Carneiro. As perguntas diretas demais dos diretores acabam por tentar colocar o pensamento de Marcelo em categorias que ele mesmo recusa; quando sugere que ele poderia fazer algo com seu conhecimento acadêmico pouco depois do mesmo afirmar que tudo o que importa é inútil, e não queria seu conhecimento instrumentalizado. E ao longo do filme é o que mais vemos acontecer. Se esse choque causasse alguma fricção criativa entre entrevistador e entrevistado, poderia gerar debate, alguma relação dialética que sangrasse no filme, mas não parece existir um interesse além da superfície, do que Marcelo parece representar para Vinagre com suas referências plásticas e estéticas a Bataille e Hilda Hirst.

Todo a glamurização dessas referências combinadas com as tentativas de choque tão domesticadas limam a complexidade do personagem. Na última cena, com Marcelo com um plug na bunda virada para o espectador, a câmera faz literalmente o movimento de um pau tentando entrar ali, e errando o caminho (fico me perguntando até quando um pau simulando um poder fálico vai soar transgressor para alguém). Até que consegue, e o filme se encerra com a contemplação do vazio dentro do orifício que vimos no início. Parece que o choque basta, parece que o banal basta, a hiperinterpretação diegética de um corpo que não parece feliz em ser reduzido com tal digressão, transformado num confronto inexistente através da violência imagética que também inexiste, a serviço da domesticação que chocaria apenas a família tradicional brasileira que não verá jamais esse filme. Caso se assumisse como a vaidade que é, talvez chegasse a provocar alguma coisa. Do jeito que chega, me passa batido.

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Olhar de Cinema: Família da Madrugada (Luke Lorentzen)

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Gabriel Papaléo

Na Cidade do México, apenas 45 ambulâncias são de fato dos serviços governamentais. Em sua vasta maioria dos casos, o governo contrata ambulâncias terceirizadas para levar os feridos aos hospitais. Família da Madrugada conta a historia da rotina de uma dessas ambulâncias, comandada pela família Uchoa, que vara as madrugadas na rua atendendo e socorrendo desde vítimas de acidente de trânsito até uma mulher agredida pelo namorado. Já por essa contextualização da capital do México se percebe um retrato de mundo cão, por acaso ou não dirigido por um americano, e aqui a cidade está longe da estilização de algo como o Chamas da Vingança de Tony Scott, mas encara aquele espaço sob o mesmo desamparo causado pelo sistema falido.

A escolha do diretor Luke Lorentzen em filmar tudo como um filme de ação, se concentrando nas ações rápidas e localizadas dos homens da família, cria a cidade com luzes múltiplas, muito movimento, palco apropriado para o caos. Essa disposição no entanto por vezes estiliza demais aquele lugar, um encantamento com o potencial visual do dispositivo que não parece comentar algo além do exercício do gênero – o que certamente não é suficiente quando temas delicados vão surgindo na tela e sendo evitados. A interação da família em volta do dinheiro é um desses tópicos, filmado em detalhes por Lorentzen, comenta diretamente cenas como a bizarra corrida na qual ambulâncias disputam adoidadas pelas ruas para saber quem chega primeiro na vítima para faturar o dinheiro. A ética é importante diante da ação, e as consequências aqui nunca são sentidas; as vítimas soam como rotina, os perrengues financeiros também, e o que sobrevive é a ação carente de impacto.

O filho Uchoa é central nesse ínterim. Suas características de liderança e proatividade são vistas com simpatia pela câmera, e colocadas sob um ponto de vista mais frágil apenas quando Lorentzen usa do dispositivo das ligações no celular do filho mais velho, uma forma de exposição de seus sentimentos sobre as situações de estresse nas quais trabalha que fica repetitiva com o tempo, algo estruturado demais para criar mais camadas naquele personagem. O fato do personagem ser o com mais intimidade diante da câmera o deixa mais exposto e sensível a um arco emocional, mas Lorentzen parece mais interessado numa cobertura visual linear das ações, ao invés de coloca-las em alguma perspectiva opinativa.

Isso se reflete também no registro caótico dos pacientes. A preocupação formal em evitar rostos para não expor demais é louvável, mas mesmo com esse cuidado volta e meia o teor gráfico dos relatos soa exploratório, porque não muito é suscitado a partir dessas ações além de um lamento, de um desespero com a falta de trato urbano – crítica unidimensional que parece satisfeita demais consigo mesma. Os dilemas morais da família, que sempre atende os pacientes sem saber se receberá o dinheiro ou não (e por vezes não recebe mesmo), conduz bem a motivação daquelas pessoas nos primeiros minutos de filme, mas logo fica reiterativa.

Caso algo fosse feito com essa dubiedade, especialmente ao relacionar com as contradições nas quais a família tem que lidar ao perpetuar esse estranho sistema predatório de saúde, o filme sugeriria mais leituras do que de fato propõe. Como exercício de gênero diante do filme denúncia de realismo selvagem, se contenta com a força às vezes insuficiente da observação, sendo assim um curioso caso do filme que tem sua câmera à todo tempo perto dos personagens e da ação, mas sempre parece distanciado do que fala.

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Olhar de Cinema: Enquanto Estamos Aqui (Clarissa Campolina e Luiz Pretti)

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Por Gabriel Papaléo

Em uma das retrospectivas do Olhar de Cinema, os diálogos à época do exílio entre quem foi deslocado de sua pátria se desdobram nos filmes mais diversos de resistência, algo caro à reação às ditaduras latinoamericanas das décadas de 60 e 70. Como no mundo contemporâneo, globalizado, a ideia de algo próximo ao exílio é estabelecida? Um dos grandes truques do capitalismo é justamente o uso do consumo para atrair os então terceiromundistas ao chamado Primeiro Mundo, e essa imigração mais sutil e reconfigurada para uma contemporaneidade menos direta em suas opressões através de regimes políticos é uma dos temas trabalhados em Enquanto estamos aqui, filme de Clarissa Campolina e Luiz Pretti sobre a vida de ambos em trânsito fora do Brasil natal.

A chegada em Nova York, com a narração em libanês da protagonista feminina do filme, já traz toda uma estrutura à News from Home para construir o cinediário: imagens cotidianas, fragmentos de pessoas comuns à espera no metrô, nas ruas, em movimento constante. No entanto, as intenções narrativas de Campolina e Pretti são menos nos recortes diretos desse cotidiano, como nos filmes de Jem Cohen ou mesmo no filme antes citado de Chantal Akerman; o interesse maior é aproveitar a tapeçaria de imagens diárias para estruturar uma tentativa de ficção mais pesada, um filme de desencontros no qual as pessoas são à parte do quadro, no qual a encenação se mune de imagens típicas de filmes-ensaio.

Os encontros entre a libanesa Lamis e o brasileira Wilson, ela recém-chegada, ele há anos nos Estados Unidos ilegalmente, atravessam as memórias deles na cidade, e como lidar com a distância da família. É nesse fluxo narrado com a solenidade da voz de Grace Passô que percebemos o mundo contemporâneo que aproxima as migrações, a voz libanesa com a Estátua da Liberdade, as questões políticas brasileiras na mesa de bar que em quadro são meras ruas vazias.

Como o excelente A última vez que fui a Macau, que João Pedro Rodrigues fez na China a partir também de suas imagens de viagem, a ficção escorre pelas bordas do quadro, desafiando o ambiente ao redor a contar a historia dos personagens apresentados em off comentando os sentimentos deles, suas angústias e amores diante da cidade, e o que eles como estrangeiros podem comentar algo. Se no filme do português Rodrigues uma reflexão acerca da culpa colonialista estava presente diante da cidade chinesa colonizada pelo seu povo, aqui em Enquanto estamos aqui o palco novaiorquino é focado do ponto de vista dos acossados, das duas pessoas que se aproximaram num lugar que não os quer ali, apesar da capa de metrópole mundial da inclusão e dos sonhos.

Existe um balanço entre os afetos e as contradições que dá ao filme um coração no lugar, com seus personagens profundos apesar de quase nunca visíveis, porque a confiança no que o ambiente tem a dizer é suficiente para abraçar essa historia de conexões em lugares hostis, que apesar da falta de riscos consegue passar sua melancolia do trânsito irrefreável de quem largou sua cidade natal pra trás.

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Olhar de Cinema: Uma Noite de Inverno (Jang Woo-jin)

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Por Gabriel Papaléo

O som do táxi é das primeiras coisas que ouvimos, um casal dentro dele, e o marido conversa com o motorista. A esposa perdeu o celular e por isso pede um desvio na rota, tira a conversa do lugar comum, e o carro dá meia volta. Essa situação se repetirá no filme, mas muito antes disso várias outras circularidades são mostradas na estrutura de Uma Noite de Inverno, um realismo fantástico contido, sobre as formas que tomam os relacionamentos amorosos com o tempo, com o contexto, com o lugar no qual eles se inserem.

Os ambientes aqui contam do isolamento desses personagens, dos silêncios, especialmente na figura da pousada na qual os personagens vagueiam. Ao longo dessa noite, visitam os lugares novamente com alguma constância, sempre com cenas pacientes, para entender que o drama daquelas pessoas pode ter ocorrido diversas vezes naqueles mesmos lugares, como se acessando a arquitetura dali, seja dos humanos ou da natureza, algumas respostas poderiam aparecer.

O uso das cores e luzes é importante na assimilação dessa dimensão quase fantástica dessa noite branca. Lembra o cineasta chinês Bi Gan no tratar da locação como um espaço dotado de memórias a ser conjuradas através do tempo, num jogo de cenas longas para reforçar o papel da natureza no quadro, a passagem das coisas comentando diretamente a encenação – mas enquanto Bi se concentra nas especificidades da região na qual filma, sua cidade natal, aqui o diretor Jang Woo-jin abraça ideais mais universais, que ao retirarem contexto do lugar conferem a ele um teor menos realista, mais alegórico, mas não menos dotado de memórias e momentos guardados.

Esse peso da neve e o que esconde é evidenciado no legado da relações com a mulher de branco e o soldado, quase uma versão mais jovem do casal protagonista. Através deles muito da juventude dos mais velhos é intuída e comentada, até em cenas mais didáticas como o diálogo das duas mulheres, perto do final. E assim se ensaia o que despertou a paixão entre aquelas duas pessoas, e a passagem do tempo que as levou à distância que vemos nesse presente. O confronto então é retratado numa cena mais pacata, com a luz vermelha em movimento por conta de um ventilador, um lembrete visual, mesmo que dos menos sutis, de que o tempo sempre está acontecendo e se modificando, e nas relações em crise é preciso pensar nele com carinho e cuidado para o dia amanhã nascer.

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