Como vive o corpo virtual – a presença física em O Segundo Rosto.

Por Gabriel Papaléo

 

“Long live the new flesh.”

Max Renn, vivido por James Woods em Videodrome (1983, dir. David Cronenberg).

 

Onde exatamente experimentamos algo “real”? Qual o paradigma que lhe é concedido para explorar essa realidade? Para John Frankenheimer, a virtualidade faz parte (se não é o motor) da experiência real, e em O Segundo Rosto o diretor coloca o protagonista Arthur Hamilton para questionar a natureza visual do real, o que significa sua liberdade, ou como concilia desejos distintos, pulsões discrepantes, tempos e gerações opostos nas aspirações de destruição um do outro.

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Os créditos iniciais concebidos por Saul Bass concentram desde já a disposição ao rigor que Frankenheimer prega sobretudo de texturas e superfícies falhas do psicológico e do material mostrando a fragilidade da imagem que temos (e construímos) do nosso corpo, das projeções dos ambientes ao redor nos quais intuímos uma vida. O subúrbio em teoria é um lugar de porto seguro para o protagonista Arthur, onde mora com sua esposa, mas esse iconográfico carregado da cultura americana – especialmente na projeção estética que carrega para si nos filmes – é sufocado pela estilização da câmera do fotógrafo James Wong Howe. Aquele é um lugar de confronto velado, não conforto, e a estação de metrô que abre o filme é mapeada na tradição do suspense de paranoia; a câmera colada ao rosto de Arthur, seu suor, o homem que o persegue com uma maleta, os chapéus e sobretudos que andam sem identidade pelo lugar – tudo é informação e paranoia, porque existe algo escondido nessa falsa harmonia social mecânica.

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Tratar desse corpo disperso pela imagem é das soluções mais elegantes de Frankenheimer e Wong Howe na dramaturgia cheia de camadas de O Segundo Rosto; ao evitar que o filme se torne apenas um tratado psicológico, estudo de personagem focado em texto e informação, a câmera do filme cola seu corpo no corpo do protagonista e distorce a realidade ao redor para deixar dúvidas sobre ela. As cenas de drama aqui são registradas em lentes abertas que distorcem o rosto de John Randolph antes de sua transformação em Rock Hudson, ou teleobjetivas que ressaltam o quanto o banco no qual Arthur trabalha é apenas um borrão em sua atenção. A encenação pesada, minimalista, reforça esse dispositivo quase lúdico de fotografia, como se desafiasse aquele ambientes corriqueiros a se tornarem misteriosos, seja o subúrbio vazio, seja o escritório comum de empresa da corporação do filme que vira algo soturno nos mínimos detalhes. Para Frankenheimer, a pulsão da mudança passa também pela mente, mas se origina sobretudo em um movimento corporal – se é que aqui exista alguma diferença entre eles. A chantagem feita com Arthur é feita num momento de descontrole corporal, de quase possessão, e inconscientemente talvez seja ali que ele perceba que a casa onde sua mente mora é um catalisador da mudança, dos desejos, do qual não controla inteiramente – e isso precisa mudar.

A vida anterior à transformação, ligada aos bancos, ao sonho da casa de veraneio, ao barco de cobiça, ao sonho americano afinal, tem uma estrutura definida e desapaixonada que se revela o principal motivo para a insatisfação de Arthur. O pulo do gato do diabo corporativo que o tenta com promessas é uma tradução capciosa de inconsciente. cravando que o desejo de Arthur é a mudança, e eles enquanto empresa oferecem esse serviço. A promessa é da falta de responsabilidades. “Você vai estar na sua própria dimensão”, diz um dos muitos empregados que acompanham o protagonista pelas transformações.

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E que dimensão é essa, propriamente? A vida nova de Arthur, agora Antiochus (ou Tony, pra facilitar), ligada às artes, hedonista e de contato maior com a natureza vasta, com o coletivo. A arquitetura modernista da casa nova, construída como provocação à casa do subúrbio, o clima ameno e praiano da California, as roupas mais personalizadas, a jaqueta de couro branca que entra no lugar do terno e gravata impessoais. A reunião quase religiosa hippie para fazer vinho, exemplo da sexualidade e da liberdade de expressão que Arthur procurava em sua vida anterior. O mar como fuga do subúrbio, um horizonte de possibilidades utópicas (sei que O Segundo Rosto não é um filme brasileiro, mas esse texto é, então portanto nossas utopias aqui estão também). A leveza do vento no primeiro encontro na praia com Nora, aquele lugar vazio diante do mar, habitado apenas por aquelas duas almas, como numa cena egressa de A Noite ou A Aventura. A forma que esse contexto todo contrasta violentamente com os chapéus noir da estação de metrô e o subúrbio serve de imersão insuspeita na violência do arco de Arthur/Tony, que posteriormente é revelado na primeira aparição “pública” de Tony, na primeira vez que o protagonista está diante de pessoas, do coletivo.

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E é por conta desse medo público que Tony se torna indisposto com sua nova identidade. O medo de viver em coletivo permanece a lamúria da jornada do heroi individualista americano, e aqui isso é questionado. O roteiro de Lewis John Carlino parte do conto moral muito simples e direto (homem em crise de meia-idade despreza seu cotidiano e é oferecida a ele a chance de mudar), cheio de armadilhas moralistas especialmente num contexto americanizado, e no entanto abraça ambiguidades em ambos os lados da moeda porque sabe que o motivo pelos quais os estudos exatos e os estudos humanos andam tão separados, tão díspares em utilidade, é por conta de um calculado corporativismo capitalista.

Essa disputa geracional do Arthur diretamente de um cotidiano anos 50 para Tony, cujos signos conversam mais com seu presente de anos 60, busca no isolamento um lastro do que a sociedade americana construiu pra si – e o como essa situação é insustentável, porque leva ao eterno desejo insaciável, à eterna insatisfação que é o motor capitalista do conformismo estrutural. O que Tony experimenta dolorosamente é que a promessa de mudança sem uma reeducação do olhar apenas se molda em experiência corporativa efêmera e finita; é como se O Segundo Rosto falasse que é impossível conciliar o pensamento americano individual com os novos exemplos de sociedade mais coletivista que pelo mundo surgem. Tony espera ter liberdade de pensamento e falta de comprometimentos prévios, mas quando percebe que o preço que pagou para isso é um constante estado de vigilância e paranoia, volta ao porto seguro que lhe foi imposto.

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O cotidiano se torna imaterial quando planejado, quando cercado por questões pré-estabelecidas, e é isso que impede a apreciação do presente que Tony buscava. Em determinado momento, Nora fala com Tony que “as boas coisas sempre acontecem com a chuva”, e parece que o único encantamento que nos é disposto sem a contaminação da utilidade é o que vem da natureza, e que vem do acaso.

Quando volta à sua casa original, com novo rosto, Tony recebe a notícia de que as aquarelas de Arthur foram destruídas. É como se a única expressão artística do seu antigo eu perdesse o valor no presente utilitarista, algo que nem mesmo sua família se importou em guardar. O que se mantém, no entanto, é um troféu esportista, medidor de qualidade.

O arrependimento portanto parece culminação de toda a encenação da paranoia de ter sua vida dividida em estágios, em salas organizadas, que Frankenheimer e Wong Howe promovem. O retorno à empresa para mudar novamente de identidade vira calvário do mecanismo kafkiano da corporação capitalista, vidas a serem regurgitadas em prol do mercado, um doloroso flashback involuntário de Tony voltando à sala na qual entrou por acidente quando ainda era ainda Arthur, mas agora com motivo definido: uma eterna espera. Seu corpo é dispensável sob os olhos poderosos, e como tal pode ser reaproveitado se isso for lucro. A sua liberdade, no entanto, permanece um sonho intocado por quem silenciosamente já ditava seu cotidiano desde o princípio.

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As imagens distorcidas que abrem e fecham o filme, sinais de uma vida prestes a ruir sempre que os desejos são maiores que a necessidade de se conformar com o ambiente no qual fomos designados. O contrato com o diabo cuja máquina funciona sem percalços porque sabe que o indivíduo sempre terá a pulsão da mudança e do trânsito quando a harmonia com o ambiente não está acontecendo. O exílio de Antiochus é numa casa de luxo, sozinho diante do mar, mas como alguém que só encontra felicidade no coletivo delirante comungando, estar solitário diante daquela realidade forjada é o maior sinal de que o real é virtual, e como tal simulacro não existe além do plano artificial, imaterial, e portanto extracorpóreo.

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A relação corpo-máquina: de Metropolis a Matrix

Por Natália Alonso

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Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

Em 1927, Fritz Lang presenteou o cinema com a então obra retrô-futurista pioneira do cinema. Metropolis é, até hoje, uma das primeiras referências quando se pensa em Steampunk1. Começava, de forma categórica, e nada tímida, – muito embora ainda solitária –, a relação corpo-máquina no cinema.

Metropolis é um grande centro que utiliza um sistema organizacional trabalhista influenciado pelo capitalismo, um evidente cenário pós-Revolução Industrial. O funcionamento da metrópole engloba altos níveis tecnológicos e estilo artístico. O filme é ambientado no ano de 2026 e mostra a cidade futurista ideal (cenários deslumbrantes, avanços tecnológicos inimagináveis para a época), onde aviões circulam entre edifícios gigantes, no auge da urbanização, uma verdadeira obra-prima do engenho humano. Mas a sua ambientação excêntrica e detalhista não é a única coisa que a trama intenta mostrar: a crítica social ao maniqueísmo e à oligarquia – que está enraizada na sociedade capitalista até hoje – são pontos fortes a serem analisados. O contexto sócio-político também é relatado com destreza e com toque surrealista, característica muito marcante em diversas obras retrô-futuristas.

            A relação corpo-máquina, enfim, se fortaleceu nos anos 80, em películas como Blade Runner (1982), Videodrome (1983) O Exterminador do Futuro (1984) e Robocop (1987), que também influenciaram a criação de jogos com cenário Steampunk e exploração da onda tecnológica em situações surreais ou absurdas. Na contemporaneidade, observam-se games extremamente acurados, com gráficos e cenários que evocam os filmes dos quais sofreram grande influxo. Um exemplo é Fallout. O jogo, inclusive, em especial na sua versão de número 4, faz referência ao filme que consagrou Schwarzenegger de diversas formas, a começar pela caracterização dos personagens (jogadores).

            Na maioria dos filmes, a tecnologia surge como uma importante aliada ao homem, mas acaba por causar catástrofes, com a dominação pelas máquinas e a inversão de papéis: a máquina controla o homem e não mais o oposto (destaque para O Exterminador do Futuro 3 – A Rebelião das Máquinas, de 2003). A ideia de que a máquina poderia atingir inteligência suficiente e autonomia para fazer escolhas sem precisar do homem sempre transpassou os filmes de ficção científica. Pior ainda: a máquina seria capaz de alcançar uma inteligência sobre-humana, tomando conta da humanidade. O corpo humano, antes visto como instrumento de inteligência e de criação, dentro da gama sci-fi, apresenta vertentes, nas quais alcança sua capacidade máxima, tem força e poderes que não seriam passíveis na existência humana comum. Os androides, que até o século XX eram tratados como realidade em um futuro quase sempre ambientado no século XXI, são protótipos criados a partir do corpo humano (O Homem Bicentenário (1999), A.I. – Inteligência Artificial (2001), Ex-Machina (2014)). No entanto, o homem, na ânsia de aperfeiçoar seu próprio eu, cria alter egos com atributos dos quais ele não poderia desfrutar fora de um enredo de ficção científica. A inteligência artificial, derivada da humana, em diversas tramas, fornece às máquinas, ainda, a capacidade de ter sentimentos humanos, como empatia e amor.

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Matrix (Wachowski Sisters, 1999)

Mas, é em Matrix (1999), que a relação corpo-máquina atinge seu ápice nas telas. A história do hacker Neo (inesquecível, interpretado por Keanu Reeves) que é o “escolhido” na luta contra a dominação dos humanos pelas máquinas, não só tem todos os elementos clássicos sci-fi, como uma síntese conspiratória. Na Matrix, a raça humana foi dominada por inteligências artificiais. Neo descobre que esteve “dormindo” o tempo todo, conectado a um programa de computador, sem poder desfrutar sequer da própria força, sendo utilizado apenas como fonte de energia. Assim como o sempre atual Metropolis, há crítica sócio-política em relação a regimes ditatoriais e totalitários embutida no enredo, que se relaciona com problemáticas contemporâneas. Essa distopia pode ser vista em diversos filmes do gênero.

Apesar de os filmes do gênero serem reconhecidos pela saturação de efeitos especiais, também prezam pela teia bem construída, geralmente fomentando críticas construtivas e gerando reflexões mais profundas em relação à submissão da sociedade à tecnologia e a dominação pelas máquinas (na maioria das vezes em analogia à própria sociedade real). Ao longo do tempo, contudo, os efeitos foram aperfeiçoados, enquanto que a mensagem a ser passada estagnou: afinal, sempre esteve um passo à frente. Metropolis era atual em 1927 e é atual hoje.

Glossário

Steampunk: O Steampunk é um subgênero da Ficção Científica passado em uma realidade alternativa, cuja proposta estética remete ao Século XIX, como se a Era Vitoriana, por exemplo, tivesse sido de tal forma bem-sucedida que seus costumes, tecnologia e cultura tivessem perdurado por muito mais do que de fato perduraram.

 

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Tetsuo e o Niilismo Revolucionário

Por Chico Torres

TETSUO (ABERTURA)

Desde a segunda metade do século XIX e, sobretudo, início do século XX, a tecnicização da vida nas grandes cidades passou por um processo de aceleração nunca antes imaginado. Desenvolvimento do capitalismo, crescimento populacional, distribuição de mercadorias em massa, tráfego urbano, meios de transporte e comunicação, tudo isso entra em conjunção com a inserção da tecnologia na vida cotidiana. Um contexto que, desde o seu surgimento, gerou uma perspectiva dúbia em relação àquele novo mundo: a cidade apresentava, ao mesmo tempo, o sonho e pesadelo humanos.

Ao mesmo tempo que os indivíduos usufruíam do conforto e da praticidade ocasionados pela inserção da técnica no cotidiano, surgiam constantemente novas demandas psíquicas e físicas que se impunham e precisavam ser absorvidas. A máquina em toda a sua força e velocidade não só gerava medo, mas uma série de novos estímulos. Diante disso é que a modernidade fora compreendida por pensadores como Simmel, Krakauer e Benjamin em um sentido neurológico: tal condição, ao desenvolver hiperestímulos, proporcionou um novo tipo de experiência subjetiva. A vida, pela primeira vez, estava marcada por choques físicos e perceptivos sem precedentes.

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“Cidade de Nova York. Ela vale a pena?” Life, 1909.

É partindo dessa perspectiva histórica que quero pensar em Tetsuo: o homem de ferro (1989), de Shinya Tsukamoto, filme cultuado por sua subversão e ligação com a denominada cultura cyberpunk. Para além da sedução fácil de pensar a obra em seus adjetivos mais evidentes, reduzindo-a a uma caricatura, quero propor uma análise que aproxima Tetsuo desse olhar ambíguo que recai sobre o papel da técnica na vida moderna. No filme, a presença constante do pessimismo e do conflito através da relação descontrolada entre corpo e máquina, pode ser compreendida também como uma reação ao ideal de progresso, emergindo como crítica à modernidade através da maximização simbólica dos barbarismos a partir de tal relação.

Tetsuo retrata uma máquina guiada pelo seguinte propósito: habitar o corpo humano e o mundo como um parasita. Uma invasão que não se explica, que não possuí uma lógica interna (como, por exemplo, em Blade Runner e Matrix, filmes onde a máquina possui um plano “lúcido” e que depende da vida humana para se concretizar), mas que apenas perturba a integridade física e mental das personagens. Constantemente a obra afirma, por um simbolismo que sempre tem como ferramenta um tipo de fisicalidade extrema, que a humanidade não soube se utilizar da técnica, voltando a um estado de barbárie e incompreensão irremediáveis.

TETSUO V

O que se vê é uma série de imagens, ainda que agarradas a fios narrativos muito frágeis, que expressam sempre situações-limite, integrando prazer sensual e dor física sob o imperativo do vírus-máquina. Como meio de maximização dessas situações, e uma possível aproximação com questões psicanalíticas, diversas interações sexuais se desenvolvem, todas elas sob o estigma da perversão. Objetos fálicos surgem dos corpos e se personificam, afirmando, violentamente, o poder fálico e patriarcal, sendo causa e consequência daquele mundo apocalíptico.

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As técnicas audiovisuais utilizadas por Tsukamoto também buscam explorar gráfica e sonoramente uma perspectiva acelerada e desordenada que rementem a esse mundo absorvido pelo processo industrial. A montagem descontínua; a câmera na mão (uma personagem à parte que explora a falta de objetividade inerente ao filme) e as alterações nos recursos fotográficos; muitas imagens em stop motion, picotadas e aceleradas; a trilha sonora que reproduz sons maquinais, todos esses elementos revelam o desejo de construir um filme que se  mantêm à distância das formas contemplativas, com o nítido objetivo de desorientar pelo excesso e de ser um documento experimental que, sob a máscara de pesadelo distópico, se revela como uma pungente crítica à tradição, ao humanismo e ao progresso.

Nesse sentido, podemos alinhar Tetsuo ao dadaísmo e principalmente ao surrealismo, vanguardas que, na ótica de Walter Benjamin, possuíam forças revolucionárias justamente por se fundamentarem na pobreza experiencial do mundo moderno, que pelo próprio esfacelamento dos valores tradicionais da obra de arte se torna   um novo motivo artístico. Quando Benjamin escreveu o seu ensaio sobre o surrealismo, afirmou que era preciso organizar o pessimismo, sintoma característico do século XX. O filósofo alemão, interessado no poder revolucionário das vanguardas europeias, viu nesses movimentos, sobretudo no surrealismo e no dadaísmo, manifestações que explodiam os valores burgueses expressos, em arte, pela contemplação e manutenção de um humanismo que paralisavam as forças revolucionárias surgidas através do desencantamento do mundo. Ainda segundo Benjamin, a técnica surge, diante dessa   perspectiva, como elemento político fundamental do exercício artístico, sendo a política, agora, um aspecto que deve ser absorvido pela arte. Diante dessa nova perspectiva, exige-se, portanto, uma tomada de posição. É nesse sentido que Benjamin dirá que é preciso não estetizar a política (como fez o nazismo), mas politizar a arte.

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As vanguardas teriam a capacidade de se utilizar do inconsciente e do sonho (surrealismo), dos elementos industriais deslocados de sua funcionalidade, surgidos em recortes aleatórios (dadaísmo) e da ruína prematura das cidades modernas para, dialeticamente, propor uma “iluminação profana” que recairia sobre a relação ambígua advinda da modernidade, ou seja, a técnica como libertação e escravização. É assim que Benjamin, pensando na atitude surrealista, irá pensam em um “niilismo revolucionário”, postura pessimista e de consciência crítica da perda irremediável da experiência coletiva, mas que vê na própria pobreza experiencial possibilidades estético-políticas apenas possíveis nesse contexto desolador.

Penso que Tetsuo se alinha a todas essas imagens benjaminianas; que muito antes de ser apenas um filme experimental, horror cyberpunk, ou algo feito para proporcionar o mero escândalo, é uma obra consciente das limitações da tradição e, ao mesmo tempo, do poder político do fragmento, do sonho e da ruína, do surrealismo e do dadaísmo. Em Tetsuo, a ruína surge através da exploração dos espaços vazios, do maquinário abandonado e destruído (muito raramente uma máquina surge em seu estado natural de funcionamento), o que demonstra as intenções de Tsukamoto em exibir essa máquina como elemento atmosférico e, portanto, surrealista. A ruína do mundo revela o fracasso histórico do ideal de progresso, surgindo, em sentido redentor, como reelaboração estética daquilo que só pode surgir como alegoria da tragédia humana. A única possibilidade de redenção, portanto, é a exploração surrealista desses objetos degradados, buscando não uma restauração daquilo que está irremediavelmente perdido, mas um novo caminho em toda a sua radicalidade imagética. Sim, o pessimismo de Tetsuo é, antes de tudo, um posicionamento político.

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Ghost in the Shell e a humanidade negociada

Por Isabel Wittmann

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção.[…] Com o ciborgue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra (HARAWAY, 2009 p.36-39).

 

O mangá Ghost in the Shell, um marco para o cyberpunk, que já havia sido adaptado em anime com O Fantasma do Futuro, de 1995, foi adaptado para uma versão com atores, A Vigilante do Amanhã, de 2017, protagonizada por Scarlett Johansson. É difícil não analisar ambas as obras em paralelo, já que fazem leituras diferentes de uma mesma fonte comum. Ficção científica com pitadas de ação, a narrativa do filme mais recente trata de um futuro distópico em que a Major (Johansson) possui um corpo cibernético, chamado de concha (shell), especialmente construído para receber seu cérebro após um acidente em que quase morreu. O cérebro, aqui, representa a individualidade do ser humano, sendo entendido como uma espécie de equivalência à alma (ghost). Major é a primeira de seu tipo: uma soldada perfeita para o combate ao crime, com um corpo artificial, mas entendido como humano. Ela encarna o mais próximo que um ciborgue pode chegar de um androide, ou seja um humano híbrido de um humanoide artificial.

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Os aspectos visuais dos filmes se destacam. O anime, especificamente, empresta referências de Blade Runner (1982), tratando-o como um antecessor espiritual e projetando referências a um futuro que é, sim, androide, mas mais que é isso é ciborguizado e conectado em rede. É fácil perceber como a estética foi absorvida pelas irmãs Wachowski, resultando, através da combinação de outros elementos, em Matrix (1999). O filme com atores segue as referências a Blade Runner, mas abstém-se de replicar o que já havia sido digerido por Matrix. Temos uma cidade cosmopolita preenchida com arranha-céus e adornada de neons e hologramas publicitários.

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Ambos os filmes tratam de discutir questões sobre corpo, humanidade e individualidade. Outro ponto forte das adaptações são as discussões pertinentes que suscitam, mas a encarnação de 2017 perde em profundidade ao personalizar as motivações envolvidas na trajetória dos personagens e se afastar não só das maiores reflexões (expostas em diálogos elaborados no anime) sobre os temas citados, como alterando em parte o sentido destas. Entretanto são trabalhados pontos importantes, ainda que de maneira superficial e apressada. A dúvida que norteia o roteiro é, afinal, o que nos define como humanos? O que diferencia um corpo artificial lido como humano e outro que não o é ? Major é confrontada com a casca de uma gueixa-robô agonizante e seu olhar reflete esse questionamento: se aquele mecanismo é tão artificial quanto o seu, porque os outros a tratam como humana? A resposta supostamente reside em sua alma ou seu cérebro, intacto, mas o próprio filme deixa claro que o corpo pode ser curado quantas vezes for necessário, enquanto o cérebro definha, pode ser hackeado e ter memórias manipuladas. Se aquilo que lhe garante a humanidade é justamente o que não pode ser confiado, como ter certeza de seu status de humanidade?  Conforme Donna Haraway, esses limites se apagam:

A cultura high-tech contesta – de forma intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quanto na prática cotidiana (por exemplo, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo-nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. Os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos – dispositivos de comunicação como qualquer outro. Não existe, em nosso conhecimento formal, nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico (HARAWAY, 2009, p.95).

Mas essa persiste como uma dúvida que atormenta Major, especialmente depois de incentivada a indagar-se a respeito da exclusividade de sua categoria. A versão de 2017 é claramente privada dos monólogos sobre o contexto social do conceito de humanidade focando na individualidade: Major se pergunta “quem sou eu”, não o que ela é, fugindo da noção de coletividade que envolve os indivíduos construídos. Mas de toda forma o que a leva a refletir sobre si é a totalidade artificial de sua corporalidade, uma vez que o aprimoramento cibernético dos corpos é entendido como algo corriqueiro.

Seu parceiro de campo, Batou (interpretado por Pilou Asbæk) perde os olhos em uma explosão e recebe em troca um complexo sistema de lentes muito mais eficiente do que as naturais. A prática da ciborguização leva a uma hierarquização dos corpos apresentados: mesmo que os implantes e próteses sejam melhorias, há um personagem que afirma ter orgulho de ser cem porcento humano. Mais que isso, a hierarquização perpassa a noção de humanidade com que as imagens humanoides são dispostas para o espectador. Não há dúvidas de que os gigantes corpos holográficos projetados nas publicidades não correspondem ao que se entende como humano. Acima deles, em termos de aproximação com o humano, temos os corpos físicos dos robôs, categorizados como seres sem valor, criados para servir. Em seguida viriam os corpos de seres humanos, que se estabelecem em níveis variados de poder e, por fim, os próprios ciborgues, fisicamente melhores que estes, embora com a humanidade possivelmente questionada.

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E nesse momento é importante mencionar a discussão acerca do whitewashing, ou seja, do apagamento das pessoas que não são brancas no filme de 2017. Os principais robôs que aparecem em cena têm a forma de gueixas, em uma problemática representação fetichizada e esterotipicamente submissa de raça, etnia e gênero, relativizada pela percepção de sua não-humanidade, que nesse contexto permitiria sua exploração. A única mulher negra retratada, sem nome, é uma prostituta contratada pela Major, que busca uma forma de tentar se conectar com sua humanidade. No trailer ela beija a mulher, mas a cena foi removida na montagem final. Ainda assim permanece o contexto erotizado, como se a Major buscasse um espelho de si e tentasse encontrar em outro corpo a humanidade que tenta sentir em seu. Além disso, se o ser humano é marcado também pela posse do próprio corpo (já que os corpos ciborgues, robôs e holográficos pertencem a corporações), como se encaixa essa personagem anônima na escala de humanidade? Em ambos os casos robôs e humana não-brancas são apresentadas como instrumento de uma sexualização que não lhes pertence. Isso é agravado no segundo caso pelo uso desse corpo com marcação de raça e etnia específica por uma mulher entendida como humana (embora ciborgue) e branca (contextualizada como ausente da mesma marcação de raça).

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Como o mangá e anime, o filme manteve o cenário e as influências estéticas e culturais da Ásia, mas o protagonismo é de pessoas brancas. Como uma androide com o corpo completamente construído, Major poderia representar qualquer etnia, mas é apresentada como ocidental. O problema, no final das contas, não é o papel ser delegado para Scarlett Johansson especificamente, já que a ficção científica abre margem para essa possibilidade, mas todo o conjunto de representações, contextos e subtextos presentes na obra, que resultam em uma clara percepção de whitewashing. Os entendimentos a respeito de humanidade acabam sendo apresentados de maneira intrinsecamente relacionada a raça e etnia, complexificando involuntariamente a questão principal do filme com a possibilidade de uma leitura racista.

Scarlett Johansson plays The Major in Ghost in the Shell from Paramount Pictures and DreamWorks Pictures in theaters March 31, 2017.

Vestida, ou seja, coberta do que nos é artificial, Major se apresenta, em contraste, como humana. Despida, livre da construção que é o vestuário, com o que parece um corpo nu, mas na verdade coberto por um collant composto de placas que lhe permite camuflagem térmica, ela se aproxima de outras formas humanoides não-humanas. Se por vezes humanizamos as coisas, em outras coisificamos ou objetificamos pessoas. A noção de pessoa e de coisa e as imagens que elas produzem (sejam as que estão sendo captadas nas filmagens, sejam as que são o resultado final da película) são indissociáveis.

 Torna-se assim possível imaginar uma corporalidade que nada tem a ver com as cisões entre interior e exterior, mas sim com estado alternativo de experiência produzido por acoplamentos entre complexidades. Compatibilidade e não-compatibilidade, portanto, seria o desafio em questão; a constituição de um corpo conectivo como modo de afetação entre configurações de mundo distintas e suas distintas produções de sentido (CESARINO, 2017, p.12).

Dessa maneira, A Vigilante do Amanhã não extirpa de todo as questões apresentadas no anime O Fantasma do Futuro, questionando as categorias de humano e não-humano, cujos limites são borrados pela ciborguização, e a relação destas com a corporalidade de seus personagens.

Referências:

CESARINO, Pedro. Conflitos Entre Pressupostos na Antropologia da Arte: Relações entre pessoas, coisas e imagens. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 32 n. 93, fev. 2017.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue- Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; HARI, Kunzru; TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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Olhar de Cinema: A Cidade Escondida

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Por Gabriel Papaléo

O preço visual da cidade.

Todo o arco narrativo, não-clássico e que convida aos experimentos imagéticos, se foca na jornada do ambiente abstrato a se tornar palpável diante dos olhos. O primeiro plano do filme já apresenta essa disposição, ao mostrar o céu estrelado que aos poucos se revela um chão molhado, de esgoto. Os operários que ali trabalham andam com lanternas nos capacetes, revelando o ambiente à medida que avançam, e o som cuidadoso do filme aqui só privilegia a respiração desses trabalhadores. Parece uma cena das ficções-científicas que conciliam o horror e a curiosidade pelo desconhecido, como Alien, e o diretor Victor Moreno abraça essa atmosfera no trato estético das tubulações e subterrâneos que filma.

O horror com o desconhecido parece ser a liga que mantém os vinte minutos iniciais, um trato de luzes e sombras misteriosas que aos poucos revelam suas origens. A partir dali, quando reconhecemos o metrô e suas distâncias com a cidade, a narrativa se desvela a partir de como tudo ali debaixo da terra funciona como uma base de estrutura que não encontra uma linguagem comum à sociedade, a cidade à margem que possui imagens deslocadas de contexto, abstratas à seu modo, mas ainda responsáveis pela maquinaria invisível da cidade.

Nessa aproximação entre público e privado, entre os mecanismos do subsolo e o funcionamento civil do solo, existe também encontro das pessoas com o que não está no controle delas. A presença de confronto mais forte que o diretor encontra são os animais do esgoto, hostis e vistos sob os filtros da lente noturna e da baixa resolução, o que aumenta a hostilidade diante deles, e revela trabalhadores sempre tateando aos poucos o terreno deles, como se fosse um território que estamos invadindo enquanto espécie. No debate após a sessão, Moreno disse que entre as inspirações para suas aspirações estéticas estavam os escritos de Asimov, e é notável a disposição de criar atrito ficcional entre os documentos visuais do que está abaixo da terra, e portanto é alienígena como um corpo espacial.

Esse potencial de ficção-científica na forma que aquelas imagens despertam tanto perigo quanto curiosidade, e aos poucos é localizada espacialmente até virar cidade de fato. Não por acaso o interesse em imagens microscópicas no epílogo do filme; é uma narrativa que se desafia a encontrar contos a cada desconhecido, nem sempre bem sucedida nessas aproximações, mas com pique para deixar o movimento de fricção entre mundos respirar na tela.

Por mais que perca um tanto de fôlego no final, quando o jogo de encenação se torna reiterativo, retém a força da mediação e diálogo entre o urbano e o visual rústico do esgoto que constroi a base social que nos parece tão banal. O que mantém a cidade em movimento, a força aparentemente invisível do que rege a civilidade acima, tem desses espaços que contém galáxias encontradas num chão aparentemente banal, por onde passa os dejetos urbanos.

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A Rosa Azul de Novalis (Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro)

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Por Gabriel Papaléo

Em dado momento de A Rosa Azul de Novalis, o protagonista Marcelo diz que o poeta Novalis tinha como grande objetivo de vida achar a tal rosa azul, que era uma busca impossível mas não por isso menos incessante. Para quem entra na projeção se perguntando o porquê do título o filme trata logo de explicá-lo, e ao longo de 71 minutos também se concentra em tentar achar o que move o protagonista, para descobrir a rosa azul, a Rosebud de Marcelo. Sabemos ali que é um homem que gosta de interpretar as próprias palavras, de oferecer uma leitura direta sobre os objetos que mais o interessam: as suas falas. A performance é central aqui, no contexto de que a performance parece central em qualquer filme brasileiro que se propõe observacional nessa década. Como então se oferece algo desse registro da performance?

As imagens que abrem o filme meio que o resumem: um close de um cu piscando, que então revela o corpo contorcido de Marcelo lendo um livro. É a descrição do que se diz banal, um cu, em contraste com algo supostamente não banal, a literatura ali declamada. O teor “revolucionário” do corpo e da existência, e todos os reducionismos que vêm com isso. E Marcelo, um homem com complexidades, as quais raramente acessamos além da capa da referência e da domesticação do corpo.

No encadeamento de cenas, entre entrevistas e observações cotidianas, o interessante narcisismo do personagem perante a imagem que performa fica latente. Esse é bem mais interessante quando mediado pela fala dele mesmo do que quando Vinagre e Carneiro tentam ensaiar uma encenação mais marcada, como o enterro do irmão. A estrutura do filme já abraça esse conceito de que os traumas se reconfiguram em fetiches, é algo afirmado verbalmente pelo protagonista, mas existe uma polidez na encenação que passa longe do sentimento evocado pela fala de Marcelo. É uma encenação marcada que se configura kitsch, exagerada, mas como se sentisse acima do exagero, quase cínica diante daquela formação estética que finge abraçar.

A relação de fetiche com os traumas, exposta especialmente nas cenas mais estilizadas (como a transa simbólica com o carro), coloca a capa de estereótipo homossexual a Marcelo, algo que ele mesmo abraça: quando diz que algum familiar o colocou em algum clichê gay, ele faz questão de abraçar esse clichê, como uma forma de afronte. Na cena em que fala que gostaria de enviar uma sextape para o pai, fica claro a relação traumática que Marcelo tem com sua infância, com sua família, com seu irmão. A oralidade desses contos, mesmo que registrados numa câmera na mão evasiva que geralmente ignora a imagem, cria um panorama emocional e físico do protagonista que é perspicaz muito pela disposição de Marcelo em interpretar a própria imagem que emana o tempo inteiro.

Essa hiperinterpretação de Marcelo por si mesmo fecha as leituras ao filme com recorrência, sempre didático demais no trato do personagem, mas ainda passa suas complexidades com mais afinco que a encenação de Vinagre e Carneiro. As perguntas diretas demais dos diretores acabam por tentar colocar o pensamento de Marcelo em categorias que ele mesmo recusa; quando sugere que ele poderia fazer algo com seu conhecimento acadêmico pouco depois do mesmo afirmar que tudo o que importa é inútil, e não queria seu conhecimento instrumentalizado. E ao longo do filme é o que mais vemos acontecer. Se esse choque causasse alguma fricção criativa entre entrevistador e entrevistado, poderia gerar debate, alguma relação dialética que sangrasse no filme, mas não parece existir um interesse além da superfície, do que Marcelo parece representar para Vinagre com suas referências plásticas e estéticas a Bataille e Hilda Hirst.

Todo a glamurização dessas referências combinadas com as tentativas de choque tão domesticadas limam a complexidade do personagem. Na última cena, com Marcelo com um plug na bunda virada para o espectador, a câmera faz literalmente o movimento de um pau tentando entrar ali, e errando o caminho (fico me perguntando até quando um pau simulando um poder fálico vai soar transgressor para alguém). Até que consegue, e o filme se encerra com a contemplação do vazio dentro do orifício que vimos no início. Parece que o choque basta, parece que o banal basta, a hiperinterpretação diegética de um corpo que não parece feliz em ser reduzido com tal digressão, transformado num confronto inexistente através da violência imagética que também inexiste, a serviço da domesticação que chocaria apenas a família tradicional brasileira que não verá jamais esse filme. Caso se assumisse como a vaidade que é, talvez chegasse a provocar alguma coisa. Do jeito que chega, me passa batido.

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Olhar de Cinema: Família da Madrugada (Luke Lorentzen)

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Gabriel Papaléo

Na Cidade do México, apenas 45 ambulâncias são de fato dos serviços governamentais. Em sua vasta maioria dos casos, o governo contrata ambulâncias terceirizadas para levar os feridos aos hospitais. Família da Madrugada conta a historia da rotina de uma dessas ambulâncias, comandada pela família Uchoa, que vara as madrugadas na rua atendendo e socorrendo desde vítimas de acidente de trânsito até uma mulher agredida pelo namorado. Já por essa contextualização da capital do México se percebe um retrato de mundo cão, por acaso ou não dirigido por um americano, e aqui a cidade está longe da estilização de algo como o Chamas da Vingança de Tony Scott, mas encara aquele espaço sob o mesmo desamparo causado pelo sistema falido.

A escolha do diretor Luke Lorentzen em filmar tudo como um filme de ação, se concentrando nas ações rápidas e localizadas dos homens da família, cria a cidade com luzes múltiplas, muito movimento, palco apropriado para o caos. Essa disposição no entanto por vezes estiliza demais aquele lugar, um encantamento com o potencial visual do dispositivo que não parece comentar algo além do exercício do gênero – o que certamente não é suficiente quando temas delicados vão surgindo na tela e sendo evitados. A interação da família em volta do dinheiro é um desses tópicos, filmado em detalhes por Lorentzen, comenta diretamente cenas como a bizarra corrida na qual ambulâncias disputam adoidadas pelas ruas para saber quem chega primeiro na vítima para faturar o dinheiro. A ética é importante diante da ação, e as consequências aqui nunca são sentidas; as vítimas soam como rotina, os perrengues financeiros também, e o que sobrevive é a ação carente de impacto.

O filho Uchoa é central nesse ínterim. Suas características de liderança e proatividade são vistas com simpatia pela câmera, e colocadas sob um ponto de vista mais frágil apenas quando Lorentzen usa do dispositivo das ligações no celular do filho mais velho, uma forma de exposição de seus sentimentos sobre as situações de estresse nas quais trabalha que fica repetitiva com o tempo, algo estruturado demais para criar mais camadas naquele personagem. O fato do personagem ser o com mais intimidade diante da câmera o deixa mais exposto e sensível a um arco emocional, mas Lorentzen parece mais interessado numa cobertura visual linear das ações, ao invés de coloca-las em alguma perspectiva opinativa.

Isso se reflete também no registro caótico dos pacientes. A preocupação formal em evitar rostos para não expor demais é louvável, mas mesmo com esse cuidado volta e meia o teor gráfico dos relatos soa exploratório, porque não muito é suscitado a partir dessas ações além de um lamento, de um desespero com a falta de trato urbano – crítica unidimensional que parece satisfeita demais consigo mesma. Os dilemas morais da família, que sempre atende os pacientes sem saber se receberá o dinheiro ou não (e por vezes não recebe mesmo), conduz bem a motivação daquelas pessoas nos primeiros minutos de filme, mas logo fica reiterativa.

Caso algo fosse feito com essa dubiedade, especialmente ao relacionar com as contradições nas quais a família tem que lidar ao perpetuar esse estranho sistema predatório de saúde, o filme sugeriria mais leituras do que de fato propõe. Como exercício de gênero diante do filme denúncia de realismo selvagem, se contenta com a força às vezes insuficiente da observação, sendo assim um curioso caso do filme que tem sua câmera à todo tempo perto dos personagens e da ação, mas sempre parece distanciado do que fala.

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Olhar de Cinema: Enquanto Estamos Aqui (Clarissa Campolina e Luiz Pretti)

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Por Gabriel Papaléo

Em uma das retrospectivas do Olhar de Cinema, os diálogos à época do exílio entre quem foi deslocado de sua pátria se desdobram nos filmes mais diversos de resistência, algo caro à reação às ditaduras latinoamericanas das décadas de 60 e 70. Como no mundo contemporâneo, globalizado, a ideia de algo próximo ao exílio é estabelecida? Um dos grandes truques do capitalismo é justamente o uso do consumo para atrair os então terceiromundistas ao chamado Primeiro Mundo, e essa imigração mais sutil e reconfigurada para uma contemporaneidade menos direta em suas opressões através de regimes políticos é uma dos temas trabalhados em Enquanto estamos aqui, filme de Clarissa Campolina e Luiz Pretti sobre a vida de ambos em trânsito fora do Brasil natal.

A chegada em Nova York, com a narração em libanês da protagonista feminina do filme, já traz toda uma estrutura à News from Home para construir o cinediário: imagens cotidianas, fragmentos de pessoas comuns à espera no metrô, nas ruas, em movimento constante. No entanto, as intenções narrativas de Campolina e Pretti são menos nos recortes diretos desse cotidiano, como nos filmes de Jem Cohen ou mesmo no filme antes citado de Chantal Akerman; o interesse maior é aproveitar a tapeçaria de imagens diárias para estruturar uma tentativa de ficção mais pesada, um filme de desencontros no qual as pessoas são à parte do quadro, no qual a encenação se mune de imagens típicas de filmes-ensaio.

Os encontros entre a libanesa Lamis e o brasileira Wilson, ela recém-chegada, ele há anos nos Estados Unidos ilegalmente, atravessam as memórias deles na cidade, e como lidar com a distância da família. É nesse fluxo narrado com a solenidade da voz de Grace Passô que percebemos o mundo contemporâneo que aproxima as migrações, a voz libanesa com a Estátua da Liberdade, as questões políticas brasileiras na mesa de bar que em quadro são meras ruas vazias.

Como o excelente A última vez que fui a Macau, que João Pedro Rodrigues fez na China a partir também de suas imagens de viagem, a ficção escorre pelas bordas do quadro, desafiando o ambiente ao redor a contar a historia dos personagens apresentados em off comentando os sentimentos deles, suas angústias e amores diante da cidade, e o que eles como estrangeiros podem comentar algo. Se no filme do português Rodrigues uma reflexão acerca da culpa colonialista estava presente diante da cidade chinesa colonizada pelo seu povo, aqui em Enquanto estamos aqui o palco novaiorquino é focado do ponto de vista dos acossados, das duas pessoas que se aproximaram num lugar que não os quer ali, apesar da capa de metrópole mundial da inclusão e dos sonhos.

Existe um balanço entre os afetos e as contradições que dá ao filme um coração no lugar, com seus personagens profundos apesar de quase nunca visíveis, porque a confiança no que o ambiente tem a dizer é suficiente para abraçar essa historia de conexões em lugares hostis, que apesar da falta de riscos consegue passar sua melancolia do trânsito irrefreável de quem largou sua cidade natal pra trás.

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Olhar de Cinema: Uma Noite de Inverno (Jang Woo-jin)

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Por Gabriel Papaléo

O som do táxi é das primeiras coisas que ouvimos, um casal dentro dele, e o marido conversa com o motorista. A esposa perdeu o celular e por isso pede um desvio na rota, tira a conversa do lugar comum, e o carro dá meia volta. Essa situação se repetirá no filme, mas muito antes disso várias outras circularidades são mostradas na estrutura de Uma Noite de Inverno, um realismo fantástico contido, sobre as formas que tomam os relacionamentos amorosos com o tempo, com o contexto, com o lugar no qual eles se inserem.

Os ambientes aqui contam do isolamento desses personagens, dos silêncios, especialmente na figura da pousada na qual os personagens vagueiam. Ao longo dessa noite, visitam os lugares novamente com alguma constância, sempre com cenas pacientes, para entender que o drama daquelas pessoas pode ter ocorrido diversas vezes naqueles mesmos lugares, como se acessando a arquitetura dali, seja dos humanos ou da natureza, algumas respostas poderiam aparecer.

O uso das cores e luzes é importante na assimilação dessa dimensão quase fantástica dessa noite branca. Lembra o cineasta chinês Bi Gan no tratar da locação como um espaço dotado de memórias a ser conjuradas através do tempo, num jogo de cenas longas para reforçar o papel da natureza no quadro, a passagem das coisas comentando diretamente a encenação – mas enquanto Bi se concentra nas especificidades da região na qual filma, sua cidade natal, aqui o diretor Jang Woo-jin abraça ideais mais universais, que ao retirarem contexto do lugar conferem a ele um teor menos realista, mais alegórico, mas não menos dotado de memórias e momentos guardados.

Esse peso da neve e o que esconde é evidenciado no legado da relações com a mulher de branco e o soldado, quase uma versão mais jovem do casal protagonista. Através deles muito da juventude dos mais velhos é intuída e comentada, até em cenas mais didáticas como o diálogo das duas mulheres, perto do final. E assim se ensaia o que despertou a paixão entre aquelas duas pessoas, e a passagem do tempo que as levou à distância que vemos nesse presente. O confronto então é retratado numa cena mais pacata, com a luz vermelha em movimento por conta de um ventilador, um lembrete visual, mesmo que dos menos sutis, de que o tempo sempre está acontecendo e se modificando, e nas relações em crise é preciso pensar nele com carinho e cuidado para o dia amanhã nascer.

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Olhar de Cinema: No Salão Jolie (Rosine Mbakam)

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Por Gabriel Papaléo

Pouco antes do título surgir na tela, alguém passa na frente da câmera e bota as mãos na lente com agressividade, e pede para não ser filmado. Logo depois, a cabeleireira Sabine pede a Rosine, diretora do filme, que entre com a câmera porque “filmar ai fora vai dar problema”. A câmera então entra, pra não sair mais. Em No Salão Jolie o dispositivo observacional é muito claro e é o que conduzirá o filme pelos seus 70 minutos, mas a disposição da diretora Rosine Mbakam em desafiar essa observação teoricamente passiva é estabelecida desde esse início. Os quadros escolhidos por Mbakam, diante dos apenas 8m2 do salão, são surpreendente variados na construção e organização daquele espaço, seja através dos rostos que filma, seja através dos espelhos que ali dilatam.

Nesse contexto dado, a interação entre as mulheres dali gira em torno de assuntos cotidianos ao longo das muitas e muitas horas de trabalho, que revelam pontualmente dados importantes como os detalhes do processo de imigração e a rede de auxílio mantida pelas mulheres dali para pessoas que querem também emigrar. Existe um panorama da relação entre Camarões e Bélgica tratado aqui com afinco, mas através da luta diária de Sabine e suas amigas e funcionárias, representada sutilmente, um dia-a-dia que inevitavelmente sugere lutas diversas. O contexto emocional das consequências desses entraves sociais se dá na atenção de Mbakam também para as pequenas histórias, como a da filha que perde a mãe e enfrenta a burocracia do país, questões elementares no mapear da geopolítica ali discutida.

O lidar com os brancos de Bruxelas que passam pelo salão encarando, com olhos curiosos ou inquisidores (às vezes os dois), estabelece boa parte da tensão racial que parece ficar sempre do lado de fora do salão, o microcosmo que acaba por exemplificar um bastião da sociedade segregada dos imigrantes negros da cidade. Ali os brancos agem como turistas, corroborando o preconceito com atitudes passivo-agressivas sempre à distância, com historias similares sendo apresentadas no cotidiano da porta pra fora – como a da mulher negra cheia de sacolas no metrô, encarada pelos brancos com medo irracional. São contos falados pelas mulheres do salão com naturalidade, certo deboche com os belgas até.

Os relatos passam por exemplos objetificação feminina (é um filme que relata estéticas das mais diversas, afinal), e ao falar da opressão das mulheres negras em outros países, chegam no caso das que procuram (e acham) homens brancos no Canadá, e são sexualizadas sob a promessa de ascensão social. Sabine então fala: “elas queriam achar homens brancos, elas acharam homens brancos”. A violência é a primeira impressão no confronto racial, mesmo – e talvez por causa disso – quando envolve gênero.

Contextualizando por esses tópicos até parece que No Salão Jolie trata com rigor sociológico acadêmico seus temas, mas é um filme de encenação marcada e simples, de cotidiano, de ações repetidas e bom humor, de quem sabe que o contexto será afirmado com o passar do tempo, através da voz de quem luta silenciosamente. Todo esse pano de fundo político se torna palpável de fato no medo da polícia de imigração bater ali, toda a construção da tensão final em volta da correria pontual das fugas discretas de Sabine e as outras ilegais. É nesse final que todo o lastro de combate político é visível, antes tão escondido sob a capa da civilidade europeia, e nos lembramos então que mesmo a rotina trivial comunica bastante sobre nossos tempos.

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Olhar de Cinema: Vaga Carne (Ricardo Alves Jr. e Grace Passô)

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Por Gabriel Papaléo

No circuito de festivais, se tornou constante o uso do cinema como via de resistência diante do momento político de total instabilidade pro audiovisual. Muito dessa resistência se dá de forma direta, sem meias palavras, geralmente pela via do documentário como forma de representar visualmente corpos não-hegemônicos. Por conta desse contexto é muito interessante ver um filme como Vaga Carne, que após ser exibido em Tiradentes agora passa em Curitiba. É um retrato diferenciado porque parte de uma ficção altamente abstrata para organizar um jogo de textura de rostos e luzes que ocultam o entorno pra criar alegorias, presenças intuídas.

A ferramenta de uma suposta voz que toma corpos por possessão é o foco do filme baseado na peça de Grace Passô, e esse conceito pouco corpóreo toma vias palpáveis à medida que a atriz passa a demonstrar os efeitos dessa voz diante do corpo, como uma tomada de consciência de identidade diante do estranho. A violência na qual a voz percebe se deparar ao demonstrar que não consegue lidar com a forma humana de ver seu corpo mantém a urgência durante toda a metragem, num crescendo de percepção das origens dessa violência para desvelar o problema social entranhado nessa dialética.

Quando o filme lida com rumos mais clássicos narrativos em estrutura, organiza seu clímax numa tentativa do expurgo pela fala não alcançado, frustração traduzida no corpo furioso de Passô, explorando a violência do sequestro discursivo através apenas do corpo reagindo à máquina ao redor – alegoria visual explorada justamente para sintetizar figuras cotidianas de opressão que a encenação do filme evita mostrar. Toda a mediação com os rostos espectadores, herança provavelmente da peça de teatro, tenta localizar esse confronto com o sistema social de opressão pela alteridade, como se intuísse que aqueles rostos são afetados diretamente pelo que as abstrações de Passô falam sobre.

É um filme de microcosmo, portanto, em suas escolhas espaciais limitadas ao palco, mas assume essa dimensão política com propriedade e raramente cai na armadilha do simbolismo óbvio. A encenação mínima de Grace Passô e Ricardo Alves Jr, focada especialmente em closes para transfigurar a peça que originou o filme em um estudo de expressões e conflitos de olhares, calcados nas nuances múltiplas do rosto de Passô, orquestra tudo para traduzir o desespero do vozerio ali sendo acostumado e depois abarrotado do corpo – e parece bastar para as articulações viscerais propostas pelo texto. Não há tempo a se perder em Vaga Carne, filme de verdades diretas e luz e sombra elementares, e seu recado ao acender das luzes é claro.

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Olhar de Cinema: Diz a Ela que me Viu Chorar (Maíra Buhler)

uma corrente selvagemPor Gabriel Papaléo

Na abertura do filme, a cineasta Maíra Buhler falou sobre o desmonte atual dos centros públicos de apoio psiquiátrico no país. Ontem, dia da sessão, foi aprovada uma lei que tira a liberdade de escolha de um dependente químico à internação. O indivíduo mesmo em estado vulnerável perde sua vontade diante da máquina bruta do exercício de poder. A potência de Diz a ela que me viu chorar reverbera desde o primeiro plano, e o retrato de drogas aqui é escasso porque a urgência de um retrato habitacional que busca os contornos do confronto dos abandonados pelo Estado ao mesmo tempo é também o investir de tempo na observação das trocas entre os moradores, o cotidiano formador que humaniza.

O observacional novamente é o formato do dispositivo escolhido, de uma não-interferência que virou regra no documentário contemporâneo brasileiro, e é através da forma que Buhler mapeia o condomínio que o filme tenta se distanciar da distância que marca esses filmes. Nesse apreço pelo geográfico do local, se diz muito sobre a ideia de civilidade que Buhler tenta atribuir àquelas pessoas, dando forma ao lugar para contextualizar com mais responsabilidade os atos que verá.

A força dos personagens transborda na câmera atenciosa aos detalhes, e seus instantes de vulnerabilidades falam sobre desencontros, amores quebrados, problemas de família e a tentativa de lidar com o passado; dilemas quase sempre retratados à margem da dependência química, sem descartar o problema que ela causa mas trazendo motivos mais emocionais, num escopo maior da simples condenação das drogas. Buhler sabe que a humanização reside no cotidiano, nos problemas triviais do dia-a-dia, e não por acaso é tão raro que apareçam personagens consumindo crack.

É nos momentos da câmera como intrusa que o filme enfrenta os dilemas éticos que são comuns ao subgênero do doc observacional, não apenas no princípio de criar uma narrativa de disparidades sociais (entre equipe do filme e personagens filmados, uma diferença irreconciliável na sua base) mas também na dialética com os moradores, nas indisposições que escapam na câmera. No plano que um dos personagens grita com a mulher que ama no telefone, sua explosão emocional revela uma vulnerabilidade desconfortável, às vezes ambígua, suscitando a dúvida se ele está mesmo ciente do alcance dessa filmagem. É uma cena forte e tem seu valor na estrutura de Buhler em estabelecer humanização nos dilemas amorosos de certos personagens, mas até que ponta não expõe demais aquela pessoa. Algo similar acontece quando a câmera no tripé ocupa um grande espaço no elevador. Uma mulher, que o filme não acompanha com frequência, olha para a câmera e a equipe e reclama de ser filmada ali; “vocês não tem educação não?”, ela pergunta. E o plano continua, continua, continua. Soa uma provocação de Buhler diante do próprio dispositivo, como se fosse importante expor que houve resistência diante da filmagem, mas que ao mesmo tempo não obedece o pedido da moradora para parar de gravar naquela hora.

A forma que Buhler constroi atmosfera de um condomínio caótico esquecido no meio de São Paulo, a cidade motor que aqui é uma miragem distante vista de cima e sentida e ouvida apenas pelos trens que passam, cria de forma sucinta a distância que existe entre a cidade vista como civilizada e o condomínio visto como excluído. A cidade funciona assim como reminiscência de passados que não acessamos dos moradores, o que potencializa esse abandono social. É o retrato fílmico como dever cívico de representação, e nisso a ambiguidade da ética do relato aqui visto é colocada novamente.

A força do retrato de algo denso e ambíguo assim dá a relevância e dignidade ao filme, mesmo quando se questiona o que essas imagens de cidadãos vulneráveis e expostos às minúcias pode provocar no público homogêneo de sempre que costuma frequentar os festivais. A distância entre o Hotel São Pedro em São Paulo e a sala 3 do Itaú aqui em Curitiba permanece enorme.

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Olhar de Cinema: MS Slavic 7

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Por Gabriel Papaléo

No momento que a luz do projetor liga, a protagonista de MS Slavic 7, vivida por Deragh Campbell segura a carta da avó com cuidado. A câmera então se foca no manuseio do papel e nos olhos de Campbell examinando a carta enquanto a luz do projetor apontada pra câmera ilumina seu rosto. Esse é o jogo formal assumido por MS Slavic 7, filme de Sofia Bohdanowicz sobre a troca de cartas de sua avó Zofia com o poeta polonês Josef Wittlin, desde o princípio. O estudo das cartas como forma de entender origens, de um passado remoto para alguém que não encontra lastro no caos da cidade e nem na beleza do campo que naquelas cartas são descritos.

Na festa familiar, o que se intui ser o motivo da viagem da protagonista, a burocracia da família aparece nos pequenos detalhes, nos olhares desapaixonados da mulher que dentro da biblioteca soa atenta. Essa falência na estrutura da biblioteca, na curiosa cena de confronto entre o funcionário e ela, encontra reflexo direto na briga com a tia quando ela diz que “todos querem ser curadores”, à medida que a pesquisa da personagem avança. A crítica à metodologia falha versus os procedimentos de observação empírica aparece como o arco mais próximo de amadurecimento da protagonista, como se fosse preciso tomar as rédeas da memória familiar para crescer como pessoa.

Enquanto imagina os encontros, interpreta as palavras pela força do relato, a protagonista testemunha um vislumbre no presente do que seria a passagem do tempo desses amantes distantes das cartas na cena do aniversário de casamento. Aquele ideal, o suposto amor entre eles (como a própria personagem aponta), parece ali transfigurado numa possibilidade do que seria se Zofia e Josef tivessem se encontrado e ficado juntos. A historia familiar portanto funciona apenas como uma subjetividade distante e que estimula interpretações racionais e principalmente emocionais, mas como cotidiano fruto do tempo presente é um tanto frustrante com suas cerimônias distantes e distanciadas do afeto.

O exame cuidadoso do objeto, do documento que revela o passado, do processo pessoal que é refletido diretamente nas cartas, surge como antídoto disso. A atenção ao detalhe, apenas à observação, sugere passados nunca acessados para a protagonista, e esse apego ao manuseio surge como o contato mais próximo dela com o palpável.

Nesse apuro visual baseado na síntese de cores e locações, a ambientação básica do quarto de hotel comenta diretamente a solidão de Josef na cidade, sim, mas também ilustra com economia a ambiguidade da relação da protagonista com seu nome, com suas raízes. Em determinado momento, ela diz para o tradutor das cartas que “só sabe inglês”, e pede uma tradução de estrutura gramática, não de interpretação diretamente. Sua relação distante com a família, cuja briga pelo espólio parece um sinal de subjetividade cultural roubada, envolve a encenação de festa protocolar e tão insípida – e apenas nas cartas, na subjetividade, encontra algum alento no nome que carrega. É uma busca por identidade se confundindo com obsessão de investigação, tudo sutil pela narrativa de cenas calmas e de ações dilatadas, de alguém que admira o esforço de dois fantasmas em transformar tudo em linguagem.

Talvez seja por não falar o idioma natal da família que já exista a distância espacial tão clara entre a protagonista e sua famílias nos relatos cotidianos de autodescoberta sem possibilidade de conclusões em MS Slavic 7.

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A POÉTICA DA FABULAÇÃO

pássaro azul

Editorial – A poética da fabulação
Camila Vieira

Fabulações críticas em curta-metragens negros brasileiros
Kênia Freitas

O Zumbi da História – ecos de Calibã e A Bruxa em George Romero
Bernardo Moraes Chacur

Crimes e orixás – O Amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos
João Pedro Faro

India Matri Bhumi: fábulas indianas narradas em documentário
Carla Oliveira

A fábula do autor-animal: Alex Cox e a trilogia do ridículo
Pedro Tavares

O sabre de madeira, o pássaro azul, o espelho fragmentado e a luz que parte
Diogo Serafim

Fantasmagorias do presente
Bernardo Oliveira

A perda da inocência e do encanto: os contos de Perrault por Breillat
Camila Vieira

Homens têm segredos, mas não mistérios
Felipe Leal

Valeria e sua semana de deslumbramentos: para se perder em uma fábula
Chico Torres

Fantasmas e reminiscências – as formas de diálogo entre tempos nas Hong Kongs de Stanley Kwan e Wong Kar-Wai
Gabriel Papaléo

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O sabre de madeira, o pássaro azul, o espelho fragmentado e a luz que parte

Por Diogo Serafim

Se ha llenado de luces
Mi corazón de seda,
De campanas perdidas,
De lirios y de abejas,
Y yo me iré muy lejos,
Más allá de esas sierras,
Más allá de los mares
Cerca de las estrellas,
Para pedirle a Cristo
Señor que me devuelva
Mi alma antigua de niño,
Madura de leyendas,
Con el gorro de plumas
Y el sable de madera.¹

Federico García Lorca, Balada de la Placeta

                Não há filme mais belo na história do cinema que a adaptação de Maurice Tourneur do teatro de Maeterlinck. Avez-vous ici l’herbe qui chante ou l’oiseau qui est bleu?² Eu não tenho conhecimento da grama que canta, mas creio que seja suficiente que encontremos o pássaro azul para a minha filha doente. Sabendo ser perigoso crer e não crer, o filme de Tourneur exige de nós um retorno, mesmo que inconsciente, para uma condição primordial da experiência, essencialmente um salto de fé, olhar no rosto misterioso dos abismos e perceber ali a natureza mítica de tudo que é.

                Como é da natureza de todas as fabulações que iniciam com uma súplica de “quem dera assim fosse!”, a fábula termina por se tratar de um veículo que trabalha mais em uma instância delirante de onirismo velado que propriamente em um plano associativo da realidade. Assim, o filme de Tourneur é um filme infantil no sentido lato do termo, mais filme dos sonhos que filme de realidades sociais, mais experiência visual que palestra motivacional, mais deleite espiritual que laboração mental. É a materialização da nossa constituição fundamental, nosso ímpeto basilar rumo à felicidade, nossas inquietações mais inocentes, nossos sinos roucos e nossos pássaros aleijados que não permitimos sair à luz do dia ou sequer florescer internamente quando afastados de nossos solilóquios noturnos.

pássaro azul

                O filme de Tourneur apresenta claramente um apuramento visual que funciona em duas instâncias. Primeiramente em um nível puramente estético, composições que trabalham a priori em uma lógica vertical, mas que possui tantos picos nessa organização que aparenta ser homogeneamente horizontalizada no seu virtuosismo, forte uso de silhuetas, sombras e véus, adornos e artifícios excessivos, tudo que há de mais impactante e grandioso visualmente, mas que encontra nos seus mais simples e singelos gestos toda a sua potência. Em segundo plano, o filme possui um cuidadoso uso de frases perfeitamente incrustadas na matéria poética do filme, não só pelo seu lirismo espontâneo, mas também pela forma como elas parecem brotar com uma simplicidade e uma claridade poucas vezes encontrada no cinema. É um filme de uma tonalidade fabular essencialmente anti-esopiana, longe de chegar em uma conclusão moral reveladora, Tourneur trabalha com uma abordagem dialeticamente anterior que aparenta tentar florescer por si própria, uma certa resignação retórica que parece encontrar na sua passividade, no seu onirismo anunciado, toda a beleza da vida.

                Há no filme um anacronismo dialético que faz da natureza epistemológica humana não uma instância que necessariamente acumula em uma lógica construtiva, mas uma que se confunde, que se perde nesse sistema; pretensa epistemologia que alcança o estado final no empírico imediato, o fim da dialética platônica está na sua gênese, a essência de todas as coisas materiais é de faculdade inata. A alma dos elementos é de natureza conflitante, e esse mundo heraclitiano é retrato desse conflito constante, desse embate perene entre todas as entidades impulsivas por essência.

pássaro azul

                Encontramos o pássaro azul. Est-ce qu’il est assez bleu?³ Não sei dizer, mas o compartilho com quem precisa mais que eu – talvez aí repouse a felicidade, no compartilhamento da experiência, passando o nosso pássaro azul para o vizinho doente. Enquanto indagamos se é aquilo mesmo o que buscamos, a nossa conquista material foge do nosso alcance, seja por desleixo, por soberba, ou até mesmo pela erosão dos anos. O filme termina com uma perda mas também com um último grito de esperança – mas será que isso basta? Pasolini em uma de suas entrevistas certa vez desabafou: “e o que eu quero com a esperança? De que ela me serve?”. Ela pode servir como força motriz das nossas vidas e desejos, mas também como desilusão e condescendência inerte. Não se pode viver apenas de sonhos.

pássaro azul

                Ainda que Sócrates e Fedro suplicassem aos deuses por auxílio na busca pela beleza interior e ainda que eles fossem capazes de harmonizar o exterior com essa beleza espiritual, nós ainda precisamos de pães e bolos para nos mantermos em pé. Imaginá-los às vezes não basta – enquanto os anos passam e vou envelhecendo, meu corpo decadente me recorda inclemente o fardo daquele meu espelho, aquele espelho que continua sendo o mesmo ponto de inflexão lacaniano entre a minha consciência e o Outro. E mesmo que a reminiscência me ludibrie com os resquícios do que um dia foi sentido, imbuído da satisfação delirante dos sonhos daquilo que não o foi, meu corpo ainda anseia por aquele átimo fugaz, lacônico e sintético na sua transcendência, no qual a fabulação se reconcilia com o físico. Nossa memória é porosa para o esquecimento, inerte na sua dinâmica. Nosso corpo é desmoronamento, dinâmico na sua inércia. Se há o senso de realidade, e ninguém duvida da sua justificada existência, o que me resta é o de possibilidade, e a ardência pungente que acompanha cada instância de contentamento, cada quimera claudique que me provoca um sorriso segmentário, cada pássaro azul que me faz cantar e me lembra de quando dançamos sob a luz daquelas estrelas com as quais sonhávamos. Estamos sempre no aguardo mudo para nascer de novo.

By a departing light
We see acuter, quite,
Than by a wick that stays.
There’s something in the flight
That clarifies the sight
And decks the rays.4

Emily Dickinson, By a Departing Light

  1. Meu coração de seda
    Está cheio de luzes,
    Com sinos perdidos,
    Com lírios e abelhas.
    Irei bem longe,
    Mais longe que aquelas colinas,
    Mais longe que os mares,
    Para perto das estrelas,
    Para pedir ao Cristo nosso Senhor
    Que me devolva a alma que tinha
    Antigamente, quando era criança,
    Amadurecida com lendas,
    Com um boné emplumado
    E uma espada de madeira.
  1. Você tem aqui a grama que canta ou o pássaro da cor azul?
  2. Seria ele suficientemente azul?
  3. À uma luz evanescente
    Vemos mais agudamente
    Que à da candeia que fica.
    Algo há na fuga silente
    Que aclara a vista da gente
    E aos raios afia.

 

 

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