Por João Pedro Faro
Do cemitério só voltam os vivos. Eles são as sombras que cruzam o primeiro plano de Vitalina Varela, arrastando os pés pelo chão de rocha, para logo irem assombrar a casa da viúva. Ela, que veio de longe, fazendo o caminho inverso do colono e retornando de Cabo Verde para Portugal, chegou atrasada para o funeral do marido. Sua casa não é sua, os camaradas do marido morto não param de tocar à porta. Ficam no limite das portas, como vultos; sussurram entre si, pelos cômodos, histórias dessa vida passada que ali já não mora mais. São espectros de uma inabitação, verdadeiros assombros que à nova moradora recordam a origem das manchas nas paredes e das rachaduras no telhado. Não há fantasma de morto algum, o que existe é a presença, marcada por todo o barraco, de um prévio habitante que não permite uma mudança tão simples, que incita, por todos os rastros que deixou em vida, a expulsão de um intruso . Vitalina decide permanecer.
Seu nome surge duas vezes escrito na tela, primeiro como título e depois, ao final, como atriz. Vitalina Varela é uma personagem em excesso, do tipo que parece circundada por tantos caminhos de criação, que fica difícil aproximar-se com uma leitura sem a sensação de estarmos deixando de lado muitas outras possibilidades. Falemos do que se vê: seu rosto nos incita, num primeiro momento, a concentrarmo-nos em seus olhos. É justo, são olhos difíceis de evitar, enchem a interpretação de perigo nos momentos mais instáveis (sempre que o barraco parece estar à beira de cair, ou quando mais um sujeito se infiltra em sua residência sem pedir para entrar) e nivelam a altura da câmera quando a personagem precisa estabelecer sua presença (a perceber como eles se fixam no escuro durante os monólogos com o marido que não está lá). A compreensão sobre esses olhos pode ser resumida ao notarmos que, em vez de Vanda Duarte como um tipo Miriam Hopkins, Vitalina está bem mais próxima de Joan Crawford.
Por outro caminho, parece ainda mais impressionante sua capacidade de permanecer rígida em cena. Não se trata da mesma rigidez dos que firmam seus pés nas marcações dos quadros, como os vizinhos da favela ou as visitas indesejadas. Vitalina se estabelece ante a lente, por toda a extensão de sua figura, com a placidez de um concreto. Como no quadro iluminado pela luz do sol em um dos seus primeiros dias no barraco, em que se contorce à beira da cama a ponto de encaixar nos quatro cantos da tela, ou nas imagens que a centralizam violentamente (no banheiro, na cama, na sala), quando ela se torna o tronco de todas as ramificações de sombras e luzes que justificam o enquadramento. Que um filme que leva no título o nome de sua principal intérprete ocupe a maior parte de seu tempo procurando diferentes maneiras de encaixá-la no quadro, não se trata de nenhum espanto; mas sua execução certamente precede um conjunto de composições difíceis de equivalerem a outra atriz tão concêntrica quanto Vitalina.
Em conjunto, sua voz tonaliza toda a criação da personagem. Ela é suficiente para, com apenas um mando de livramento, expulsar o conglomerado do barraco; e para convencer, com determinadas pausas e determinadas entonações, um padre sem fé a rezar uma missa. A língua crioula, tão essencial ao som do filme quanto as misturas do extracampo da favela, fornece duas importantes cimentações: a da distância, da vinda de um outro lugar que recusa a osmose completa ao plano presente, e a da insistência, de uma decisão de imutabilidade que torna Vitalina a transformadora de todo o resto, e não o contrário.
A contraparte de sua interpretação vem de Ventura, o tal padre em desespero com o plano terreno — culpa de um céu escurecido. Ventura, um ator mais do que calejado, é o oposto da rigidez e da firmação de Vitalina, é um personagem trêmulo, indisposto, desistente, quebrado. Diferente de quando interpretava uma mitificação mais particular de sua imagem, em Vitalina Varela sua desolação não é pela vida que ainda precisa viver, e sim pelas vidas que se foram. Igualmente, sua crise não é política ou habitacional, é precisamente espiritual. Nessa nova jornada de desespero, enquadrá-lo parece um ato comum ao realizador, e mesmo que lhe sejam entregues alguns dos mais definidores planos do filme (pensemos naquela única panorâmica que conecta dois becos estreitos, ou naquela grade desgastada que lhe serve de auréola), é fácil perceber que o seu papel é o de moldar, ao lado de todos os outros intérpretes, o ambiente a ser conquistado por Vitalina.
É justamente na pouca sutileza (ou quase grosseria) de um personagem como o de Ventura que o filme demonstra o alcance da sua encenação, plástica e método. Para além de trabalhos anteriores, as Odisseias de Ventura inclusas, Vitalina Varela configura uma transparência aterradora de criações com os sujeitos (passos, movimentos, respirações, olhares) e os cenários (as luzes quadradas, as imagens nas paredes, as curvas dos becos), que demonstram vivacidade pela via do falsário, da construção, dentro de uma trilha inevitavelmente dramática. Não só isso, como ainda não teme banalidades e explicitações (antes mesmo do título aparecer, já temos sangue e lágrimas em tela), apresentando seus personagens como disposições dessas idiossincrasias. Ou seja, trata-se de uma dramaturgia altamente cenográfica. Chamá-lo de melodrama seria uma canalhice, mas é difícil dizer que o filme não invoca sentimentos desestabilizantes bastante objetivos pela formação de um mundo calculado pelas sensações.
O que é preciso ser lembrado sobre as formulações das ruínas e habitações da favela, além da igreja, do cemitério e do bosque que dão palco ao filme, é que nunca se trata de um cinema feito por locações. O propósito é transformar esses lugares em verdadeiros estúdios cinematográficos, erguimentos feitos especialmente para serem resguardados pelo quadro. É assim que o fundo das imagens pode, por vezes, se abster por completo de iluminação, mergulhando os intérpretes no escuro total e apagando os limites da janela reduzida, experimentando com a forma quadrada que acaba por transformar-se em janelas circulares (o túnel, a grade) ou até verticais (com a câmera escondida por trás das paredes das vielas). Também pode redesenhar toda a paisagem, até que ela não se pareça com nada real, como acontece, em mais de uma ocasião, com o céu (a sequência da tempestade no telhado não estaria fora do lugar, se presente em qualquer uma daquelas produções de outrora, que faziam suas paisagens com tinta na parede ).
Mas esse ambiente de criações não está a serviço apenas do campo estético. O que está em jogo é a possibilidade narrativa de cada plano de Vitalina Varela, onde nunca se abriga um corte sem que nele se encerre um gesto ulterior. A narrativa dos planos geralmente é a da travessia, personagens que cruzam a tela de um canto a outro ou percorrem seu centro, se esgueiram pelas beiradas, se arrastam do escuro para a luz, etc. Quando filma diálogos, a narrativa do plano se atém a movimentações macroscopicamente dramáticas. O melhor exemplo deve ser o da personagem que, após acender um cigarro com uma vela ao falecido, aparece no plano seguinte iluminada por um círculo de luz na porta. Ao abandonar a tentativa de conversa com o seu noivo, que logo invade o canto do plano, ela transita para o escuro, deixando a luz pendurada na porta solitária. E o plano só vai cortar quando Vitalina fecha a porta de casa, deixando os problemas conjugais dos outros para fora do barraco (ou seja, para fora do enquadramento).
A estrutura que permite com que cada plano tenha sua narrativa é também uma estrutura de tensão. Depois de um tempo começa a ficar claro que a imagem não vai cortar antes que o personagem encerre um gesto, parte do que torna a experiência constantemente engajada com cada ação em cena. Sendo Vitalina Varela circundado pela necessidade de expurgo de sua intérprete, é condizente que o estado das coisas seja o da apreensão. Como explica o Padre, em um de seus breves momentos de ciência, “o medo também leva ao céu
Vitalina, apesar de não estar em busca de salvação, utiliza-se do medo como uma forma de exorcismo do barraco do marido morto. Que outra forma de enfrentar um espaço que se decidiu assaltar, senão pela exposição de todos os sentimentos que a perpassam dentro daqueles assombrosos limites? Ela esclarece às paredes que não perdoa o morto, ao mesmo tempo em que resguarda suas memórias e compreende suas mentiras. Também teme a queda do telhado enquanto deixa que os tijolos lhe caiam na cabeça, não aceita falar o português enquanto lê as tiras de jornal coladas pela cozinha. Por estar a par de suas contradições e feiuras, por insistir ser parte de sua insalubridade e reconhecer esse lugar que não lhe pertence como terreno de conquistas, Vitalina vence o barraco para si. Uma colonização individual que carrega toda a violência da palavra.
É um processo que não se encerra por completo e deve continuar dependendo de sua insistência e de suas aberturas ao concreto falho, por sua rigidez contra a instabilidade de uma habitação inabitável e inabitada. As memórias de sua antiga casa em Cabo Verde, que construiu com o morto, penetram o presente como mais uma firmação indesejada no barraco, mais um exorcismo. O domínio de um espaço nunca é permanente, isso filmes anteriores já estabeleceram; o que Vitalina consegue é tornar aquelas ruínas como sendo suas, pela intimidade que assalta dos mofos, das infiltrações e das rachaduras. Não é que a casa esteja livre de espíritos, ela só está abarcando novas assombrações.