O pêndulo, a fugitiva

Por Felipe Leal

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Quando um esquema distinto de narrativa nos entrincheira numa zona temporal em que um vértice projetado no futuro é eleito como ponto de retorno de todos os esforços também futuros, criando caracóis diegéticos, é comum que saltemos, também nós, no tempo. Saindo da cronologia cuja direção é “à frente”, desarticulando, em conjunto, para as outras coisas (“coisas” como os sentimentos) o novelo dentro do qual elas são consideradas, semelhantemente, pela durabilidade, ou mesmo pela eternidade, o que essa deformidade temporal que o cinema propicia transfere para as experiências é que, aquelas capazes de “conversão”, duplamente próximas da sensação de “origem”, é a elas que o memorialista de sua própria história deve se dirigir se quiser viver um tempo à guisa de imagens libertas.

Que Pulp Fiction (1994) estoure em surf music após um assalto em chamas interrompidas, dando início ao “verdadeiro” início, só para em seguida devolver Vincent Vega e Jules Winnfield a mais uma odisseia semirreligiosa de retórica e tática, não quer dizer que todos os filmes pós-Tarantino envolvidos com dobraduras temporais são dele devedores explícitos, nem, por um outro lado, que seus antecessores eram gérmens menos elaborados. Compreendidos enquanto máquinas de suas próprias necessidades narrato-lógicas, os filmes passam a ser organismos cujos ciframentos e significações funcionam, aliás, precisamente para evitar o comportamento compulsivo de virar tudo às claras, aproximando a obra do reconhecimento sintético. Isto não porque, desde seus “pós-guerras”, os cinemas tenham se dirigido menos para encadeamentos e mais para desencadeamentos imobilizantes, mas uma vez que tudo aquilo que concerne à memória deve explicitar de que memória está falando – e há memórias que edificam tanto quanto há memórias que, afetuosamente, passam à frente para a edificação de outras.

O que acarreta, então, que no início deste O Sul (1983) uma jovem entenda, receba como que por uma faculdade diferente dos ouvidos uma certeza derradeira e antecipada, tanto em relação a nós, que ainda não conhecemos ninguém, quanto em relação a seus familiares, que desde ali “não ouvem como ela escuta”, sendo talvez esta a primeira “informação” implícita do filme, ao filme? Que ela ouça daquele desaparecimento de seu pai entre latidos, gritos e pássaros, todos os sons refletindo ou buscando aquele mesmo nome, todos os sons sendo signos deste nome ausentado, o desaparecimento definitivo, distinto dos outros, quando também havia o grito, o latido e o pássaro? Ora, dado um caracol, a resposta está no caracol: a chave de seu passado está escondida no pai, e o pai está escondido, está se escondendo, ele sempre se escondeu em seu passado. Jogo artificioso de memória. Jogo, para o “maestro da Espanha” Victor Erice, é a pureza do dispositivo de disputas onde a memória é sempre mais uma natureza de memória.

No que parece ser o mesmo cômodo onde ela “hoje” acorda para receber a anunciação do precipício vibratório de onde o pai não vai retornar, jaz também uma lembrança pré-natal: a postura de um pêndulo acima da barriga da mãe grávida teria determinado seu sexo, fazendo da filha um fruto biológico, mas também dos poderes divinatórios do pai, de quem vai insistir, mesmo que silenciosamente, para “receber” uma iniciação. Estaríamos relembrando o tempo inteiro desse aspecto da memória que a torna uma ilha de edição propriamente cinematográfica. Nada, afinal, aconteceu, para ninguém, de uma forma que possa ser resgatada, nem em totalidade, nem em veracidade. O real, neste caso, é o impossível inventado. E o ponto de vista, um deslumbramento que golpeia as posições, mais do que as filiações ou os nomes, com uma outra impossibilidade, esta a ser tomada quase como sacra: que ela edite e assuma sua invenção do pai, que o memorável seja uma espécie de eterno retorno do preenchimento, nós já entendemos. O que assombra, aqui, é que ela acredite numa transferência extra-física que, devendo ser provada, terá de se lançar em direção ao lado sombreado da memória, o que está sempre em vias de vir e, nunca vindo de todo, não cessa de enviar seus sinais.

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A crença, antes de ser delírio, n’O Sul, é uma postura diante da sobrevivência de uma memória que seja razão-de-memória, que a recorde, assim como a nós, de estar certa, pelo menos, do que não foi aquele que foi. E o pai não podendo morrer inacessível, a menina tentará reproduzir dele os momentos de nudez, transmutando o espectador, como o fizeram Murnau, Bergman, Dreyer, mas também Akerman, Hitchcock e Reichardt, mais num confessionário do que num confessor. Os segredos estando visíveis na medida em que escapam para o território da invisibilização, não podemos testemunhar sobre eles senão dizendo que algo que efetivamente não pôde tomar carne em lugar algum, ali está, denso, maciço como o que tem peso. Semelhante ao efeito de eternidade que detém uma obra como A Felicidade Não se Compra (1946), encontra-se aqui um esforço afetuoso de entregar à vida insustentável uma segunda chance de se fazer no tempo, num cristal, e partir das imagens deste outro. É por isso que o filme de Erice se entrelaça como devidamente tendem a se entrelaçar as memórias nos interiores dos países, lugares de costumes: pelos acontecimentos que os ritos preservam.

Como uma narradora numa idade e num estágio de relação com aqueles indivíduos em que só interessa o “isto-foi”, contando-nos da infância e da juventude o mais contaminada possível com suas brechas, e portanto, criticamente falando, o mais distante de “uma só” identidade que se pode estar, toda ritualística marcadamente feminina de Estrella, se incrustando numa película cujo elemento químico de referência é o nível de entrega do pai àquilo que lhe diziam as mulheres ser “um acontecimento único”, atesta-se nos momentos de maior comunhão ou de maior afastamento com ele. Momentos que serão transbordamentos significadores de uma independência que só separando-se dali, mais do que dele, ela poderia alcançar. Na celebração da sua Primeira Eucaristia, parecendo uma noiva de acordo com as tias, a câmera retorna ao véu, pendurado isoladamente numa cadeira que a tradição aliás ordena ser ocupada pelo pater, depois de deslizar na dança oficial de sacramento com ele. O momento de júbilo da garota, o de ter conquistado o maior sopro de ânimo e dedicação de uma figura dominada pelos estados lacônicos, fica grafado como mais significativo do que qualquer contrato feito postumamente, dentro ou fora da igreja, com outro homem.

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À sua maneira, a fúria que ela esperaria da mãe, outra suposta, senão a maior vítima daquele marido mais dedicado às estrelas de cinema, é frustrada ao ver que essa mulher, preferindo não tocar nas lacunas “da traição” de forma alguma, perde os direitos de participação e de reivindicação de todas as formas. Tudo se desenrola, ou melhor, não se desenrola, como se a mais adulta das duas se satisfizesse com o imaginário sulista dos cartões postais, restringindo o marido a um rolo de caprichos dos quais ela só tem uma imagem distante, enquanto a criança, que é quem os coleciona, ao contrário, persistisse em encontrar o signo além deles. Aquela mãe desenovela um miolo de linhas rubras atiradas ao chão pela filha, como se, incapaz de ser honesta ao menos sobre a existência de alguma mágoa, participasse de um trabalho tolo de sublimação cujos significantes são também demasiado fúteis, e quando a chance de repreender Estrella por ter sumido durante um dia inteiro mais lhe cai nos ombros, o que poderia ter sido uma libertação dos fantasmas da casa acaba invertendo os papéis de vez. Na cena mais emblemática da obra inteira, o coração daquele homem pendurado bate da única forma que soube fazer-se ouvido. A estratégia de comunicação dos emudecidos fica à altura do que ele nunca pôde lhes dizer diretamente. A criança recebe um comunicado via som; a outra, no entanto, o estranha. O cosmos está espatifado.

A superação das lembranças puras em imagens-lembrança, como pouco menos de um século antes teria arranjado Henri Bergson, desencadeia uma mudança tamanha de “estações”, de sazonalidade, para aquela menina e para sua forma-biografia, que os ritos naturalizantes das profecias de amadurecimento feminino não conseguem contemplar, se seguidas ao pé da letra. Em nome de uma “mudança de tom do registro” digna de um diário que se pode cindir, a posteriori, entre duas formas de discurso extremamente distintas, uma coletora, outra unificadora, a radicalidade com que ela passa a ver o pai, sob aquele ponto de mirada cuja inexpressividade aberrante é pura comunicação de um sofrimento de fato superior, fazem dela alguém para quem o gesto mais afetuoso é tomar distância para mapear, quantas vezes for preciso, o melhor jeito de abordar de novo. A pureza de uma ficção, e não é tão diferente assim o que acontece na primeira explosão proposta pela psicanálise, se desmancha num brinco antigo mas muito querido que é preciso fazer “vivo”, justificado mesmo que deslocado no tempo. Para crescer, ela precisa crescer o peso do baixo volume do pai.

Pois assim o é aquele homem, que teme mais os vivos que as figuras da grande tela; ele é alguém que se dá perdido no tempo, que se dá aos poucos. Muito pouco. Só simbolicamente. Alguém que, pouco “dizendo”, dirá melhor de si nos menores registros de som. E preparada para escutar a frequência menor, ela também se mune o suficiente para dar equivalências até onde ele aguentar ser “o” ouvido, até onde se perceber, como seu rito de existência comanda, na persona do culpado. Mas quem é o culpado? Ou melhor: quem é este que cumpre a função, a imagem do culpado? Aquele que tem de se terminar em respostas.

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O porquê de ouvirmos antecipadamente, desde onde está o início-do-filme que ela julga justo, e junto com ela, que nos empresta supra-ouvidos, de um homem que nunca mais voltará, coincide com o preparo, travestido de onisciência, daqueles narradores que sabem que, dentro das possibilidades de um afastamento total da vida como vontade, é preciso embalar e cuidar para que aquele de quem a coisa será separada conviva antecipadamente com outras formas de ausência, como o não-entendimento, como a negação das vontades. Estrella e espectador são, enfim, testemunhas. Em outras palavras: o que a mãe da garotinha não faz, ela materna sozinha, fá-lo confessar sozinha. Quando a tradição não nos é passada, tomamos nós as rédeas do que as coisas estarão vindo a dizer.

 Vendo cada vez mais aumentar o vácuo da figura paterna em direção a um tipo humano que, separado do seu berço sulista por uma briga com o pai (avô que ela não conhece), só pode dever existências seguras às imagens e pessoas do sul da Espanha, a tradição simbólica que o arraiga, essa alteridade do pai (aquele outro que, sendo mistério, lá ficou), toma do campo semântico das manifestações ocultas e divinas o funcionamento de seu maquinário. Estrella une imagens de outras culturas e meios visuais às técnicas também variadas de memorizar, enquanto criança, e com isso reserva para sua primeira figuração dele um tipo heroico, sublime, importante e sobrenatural, mas separado da realidade de seu alcance tanto quanto está esse “deus” de que lhe falam. Seu pai é, então, uma caixa mágica de conteúdos cifrados.

Agora, quando as mudanças auditivas (da última conversa, do pêndulo, dos gritos da mãe e dos criados) lhe inauguram, naquele início de filme que é princípio dos fins de uma individualidade, como que a detenção de uma câmera, o que sua assunção de uma trajetória adulta afirma da vontade de independência alojada na re-articulação de nossas imagens é que “escrever a si mesmo” é rasurar tudo aquilo pelo que somos acusados de “início”: as imagens de outrem. Através de Estrella, assim como através da criança Ana e do Frankenstein “real” d’O Espírito da Colmeia (1973), Erice entrega às crianças e às quimeras incompreensíveis algumas das rebeldias mais tocantes que o cinema se presta a homenagear: a daqueles que inventaram uma língua para dar conta do extremo onde não temos fim, onde somos emperrados, onde somos o signo da vítima. Mas ser refém num limite, ser invadido pelo campo dos grandes outros, a isso se responde inventando um melhor lugar para todos os “si”s.

Ainda que o efeito do corte “inicial” seja o de suspender também nossa consciência de caso, sendo preciso fingir sobre esse não-sumiço para lhe dar sempre boas-vindas, muitos dos episódios da passagem da personagem dentro da vida adulta torcerão a um grau máximo a receptividade a partir da qual “o lado de lá do pai”, o que estaria mais próximo do seu ponto de vista, vira um exercício de perseguição de lacunas que só se realiza aproximando a distância, quão grande ela seja, disso que o cinema mesmo ainda não se desimpediu de fazer: produzir outras cosmologias só visíveis quando o próprio pensamento do cinema se transfere para suportes distintos. No caso em questão, necessitado da pretensa amplitude sociológica das imagens encadeadas menos para ser “verdadeiro” ou “falso”, e mais para esticar os centros de dúvida de onde recomeçam e recomeçam os apegos, as impressões e as pistas de uma profundidade nuclear, o dispositivo de Estrella perceberá o outro núcleo, a outra vida do pai, à “luz” dessa espécie de verve documentarista capaz de violar todas as leis para buscar em seu objeto os últimos resquícios de uma forma-memória.

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No que será uma das conversas cabais entre ambos, ela lhe questionará sobre seu pouco interesse no departamento dos namoros. Ela é, afinal, uma filha autogestada; quer saber por que ele, ao menos, nem que fosse uma só vez, não fingiu querer saber. Ao que ele é capaz de responder: “e eu tenho a culpa, certo?”. Sendo, portanto, a verdadeira resposta uma pergunta desviada: “por quanto tempo serei [só o] culpado, eu que certamente não poderia lhe retribuir senão com culpa, no jogo dos porquês?”. Entendemos, enfim, a primeira imagem, a imagem que só deve configurar nosso “primeiro” estágio: ela nos escapa, e exige que escapemos constantemente de algo um “si mesmo”. Impedida de buscar suas próprias figuras, ameaçada de viver à imagem d’Ele, Estrella escapa então, das imagens colocadas sob sua posse. Vaga até onde não possui nada além de começos. Vai ao Sul. Ser ninguém?

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