por Gabriel Papaléo
“A não ser pelo fato de o dia aproximar-se do fim, o tempo não se manifesta, como se fosse algo proibido – nem mesmo um presente real parece existir, porque cada gesto executado com a mão já é passado, e cada um dos que se seguem, futuro. Todos ali estão do lado de fora da história, que, em seu recato, não admite presente nenhum. Planta-se, colhe-se e planta-se de novo o arroz. Reinos se desvanecem na névoa. Silêncio. Na mudez de eternidades, de repente ressoam tiros. Os camponeses fogem.”
Werner Herzog, O Crepúsculo do Mundo.
A hipótese de uma câmera que aponta para a natureza pode soar contraditória numa arte cinética como o cinema, e não são poucos os escritos sobre a indissociação do cinema com a cidade e as metrópoles modernas, visto que o movimento das máquinas e do ritmo urbano tanto surgiram como também foram traduzidos pelo cinema desde sua origem. A natureza como ideia de proporção e espaço, como uma entidade cujo tempo próprio não necessariamente obedece às vontades narrativas de um tempo controlado, no entanto é matéria-prima de cinemas tão diversos e expressivos, de tantas escolas e países diferentes, que motivou toda a fundação dessa edição. Quando essa natureza revela a dimensão dos atos de homens e mulheres que trabalham num senso de coletividade que parece a única forma de lidar com os acasos naturais, temos quatro filmes italianos. Para esse texto, vejamos a natureza em quatro superfícies diferentes: a rocha, o mar, o solo e o subsolo. Comecemos com uma janela: o 2.35, o cinemascope.
Em 1954 e 1955, o cineasta italiano Vittorio de Seta rodou cinco documentários na região da Sicília, e nos anos seguintes rodou mais cinco curtas entre a Sardenha, Cosenza, e a própria Sicília novamente, totalizando seus dez filmes do período. Desses dez filmes, cinco deles foram rodados em 2.35, essa janela mais horizontalizada, mais afeita às paisagens vastas, mais aberta a registrar grupos em formação, aqui registradas sob as cores do ferraniacolor. Esses escritos serão a partir de quatro deles, excluindo Pasqua in Sicilia, pela sua atenção maior ao ritual e menor à natureza.
Em Isole di Fuoco, a rocha esquenta no vulcão. de Seta abre com um tilt sobre o mar, que ao fundo revela um navio. Nesse minutos iniciais ficamos com esse navio, sua chegada, o sacolejar do mar, os marinheiros à espera. Ali perto, um pequeno barco chega perto com seus tripulantes, e em pouco tempo uma descarga é feita, liberando o barco para seguir viagem. Na chegada à terra, os marinheiros começam a trabalhar para aportar direito, puxando cordas, recolher suas cargas, e a população local não demora a se juntar para também carrega-los. É uma imagem recorrente nos documentários do italiano um coletivo de trabalhadores reunindo suas forças numa atividade extenuante, sempre digna, sempre esforçada, para retratar a rotina desse povo camponês e pescador cujas raízes ancestrais no solo do país perdem-se de vista. Aqui, os procedimentos de trabalho estão reféns da natureza: o vulcão Stromboli, em erupção durante as filmagens em dezembro de 1954, aos poucos dá os primeiros sinais que vai cuspir seu fogo.
De imediato, o céu escurece, a terra começa a sentir os efeitos do vulcão, o rumor do que está por vir. A água do mar treme turva pairando na areia, a relva reage ao vento, as mãos das mulheres recolhem as roupas das cordas, os filhos no colo em direção ao abrigo, os rostos estanques dos homens contemplam o céu e se apressam para se resguardar do aviso da natureza. Nessas pequenas ações, os procedimentos de trabalho e sociedade daquelas pessoas aparecem detalhados tanto de forma realista, pela precisão dos gestos, quanto épica, pelas cores fortes e a dimensão mitológica que a câmera confere ao esforço do trabalho. Um elogio à ação nunca individual, sempre coletiva, sempre derivada do trabalho, valorização mais afinada com a práxis de Lukács a partir de Marx [1] que com uma eventual romantização do esforço liberal numa terra que sequer parece guardar vestígio algum da maior invenção capitalista, a cidade.
O foco no assentamento, no trabalho da chegada na ilha, nos homens ao mar, termina com a chegada do último barquinho, enfrentando os primeiros sinais concretos da erupção. A chegada pelo mar, o horizonte vasto e o movimento constante das águas, ganhando urgência ao chegar no solo, até que o céu se escurece de vez, e o alto contraste da fotografia de de Seta deixa o filme exposto para o Sol e o céu, imponentes diante da terra, até as chamas do vulcão se intensificarem de vez. Os riscos vermelhos diante da escuridão, a lava que impregna o solo riscando a tela, as chamas que pulam em fúria para se espalhar pelo solo; no abrigo, crianças dormem.
O vulcão explode enquanto assistimos o rosto de todos esperando dentro de casa, respeitando suas regras dentro do esquema de harmonia. Rostos italianos de histórias outras, fantasmas, de um volume de rastros que o cinema é tão precioso e proeminente a evocar; diferente, mas também em diálogo, com o rosto de Ingrid Bergman registrada por Roberto Rossellini diante da catarse desse mesmo vulcão que dá título ao seu Stromboli, realizado quatro anos antes. Fora da casa, enquanto observamos esses rostos à espera, o vento que carrega a fumaça ofusca o Sol exatamente como no solo dividido pelo casal de Viagem à Itália – para ficarmos novamente em Rossellini. Ambos dividem a ideia e a paisagem de um país ancestral ainda vivo, gravado e mediado por seus monumentos naturais.
No dia seguinte, é hora do retorno ao trabalho, em mais um dia que se passa. O Sol se põe deixando o vulcão adormecer, e o movimento da vida continua, mais um dia comum numa ilha apresentada como ambiente quase à beira da destruição, povoada por pessoas que entendem a ética de viver num espaço cujo deus volta e meia se revolta, como nas grandes narrativas impossíveis, na forma que o cinema as imortaliza como paisagens imutáveis.
Em Contadini del Mare, o mar espera o cardume se reunir. A cartela de início já deixa claro que de Seta encara nessa pescaria uma representação de algo maior, da luta metafísica entre vida e morte, representada num processo coletivo de trabalho. Os agricultores do mar, como no título, se lançam no mar ainda no amanhecer, nas sombras do céu entre o azul e o acinzentado, e se reúnem diante da armadilha dos peixes como pistoleiros de vigília em um faroeste de tocaia. Sob o sol que nasce e já pune com o calor, visto pela câmera em todo sua força suando as testas dos trabalhadores, os pescadores conversam, dormem, preparam as redes, esperam.
Até que os peixes chegam. A pesca do atum, já anunciada desde os créditos, não antecipa o tamanho majestoso do animal encurralado pelas redes; quando os primeiros peixes se agitam na armadilha, as águas entram em fúria, espirram para todos os lados, numa agressividade que antecipa quase como um monstro místico saindo da sua toca, algo egresso da literatura pulp, dos peplum, os sandália-e-espada italianos, do Hércules de Cottafavi e Bava; da aventura, em suma. Diferente de suas contrapartes mitológicas, ficcionais, os algozes da besta aqui não são um indivíduo apenas, mas um grupo em atividade, admirados justamente pela força de seu trabalho. Os braços de dezenas de homens se tensionam, músculos firmes puxando as redes, tentando alçar da água aquilo que ainda não vemos. E quando o primeiro atum é alçado da água, vemos seu tamanho, vemos o porquê daquele esforço, a escala da tarefa. E a derrota começa a se tornar clara quando os homens começam a pinçar suas presas com o ferro, e depois com os braços que tentam sustentar o peso absurdo, os puxando para o barco onde os atuns vão se debater até morrer.
Não é uma vitória heróica. Aos poucos, as vozes dos homens ficam mais intensas, nunca discerníveis, em meio às águas em revolta e os peixes que lutam por instinto. É quando a água vai se tornando vermelha, e mais e mais vermelha, até ser tingida por inteiro pelo sangue dos peixes mortos. A câmera de de Seta filma todos esses detalhes, sobretudo como uma conquista espacial, rigorosa, que termina ainda como um trabalho a ser contemplado, é claro, mas sob o signo de um mero alimento que se torna quase um cadáver de guerra pela forma que é registrado. Não é uma sequência tão distante da cena da caça de A Regra do Jogo, e Renoir também entendia como de Seta que esses dados civilizacionais revelam algumas das particularidades mais violentas que temos tanto no palácio de influências e teatro social do francês quanto nas batalhas maiores que a vida do homem contra a grande natureza no italiano. Mais um dia de trabalho termina, e os homens voltam em seus barcos no pôr do sol, avermelhado, vasto, para relembrar que essas imagens espetaculares de natureza e esforço são o que os habitantes daquela ilha têm por cotidiano.
Em Parabola D’Oro, o solo está aberto à colheita. Os homens e mulheres carregando suas mulas e mexendo na terra estão em primeiro plano, quase que refletindo a cor do solo que pisam; se em Isole di Fuoco e Contadini del Mare o céu varia entre um azul acinzentado, mais escuro, e o avermelhado que corta esse céu mais profundo, aqui em Parabola D’Oro temos o céu típico de um meio dia, de um azul claro absoluto, sem nuvens, quase que pensado por um pintor para contrastar com o dourado que esquenta seus habitantes. A janela horizontalizada é explorada novamente por de Seta à sua disposição para vastidão, o horizonte natural ao fundo, por vezes sem colinas por perto, infinito. Quando as colinas surgem mais imponentes, estão sempre distantes, compondo a geografia da terra, como se intocadas. Aqui ao perto, humanos trabalham.
Nos planos gerais fica ainda mais claro o quanto esse é o filme do diretor que mais se assemelha a um faroeste; é como se estivéssemos assistindo à obra-prima O Homem que Luta Só (1959, dir. Budd Boetticher), caso os Estados Unidos tivessem uma noção menos individual, mais coletiva, de ideais de trabalho. Visto de longe, assistimos a lenta jornada e o assentamento de trabalho como comunidade, o trabalho dos homens e mulheres diante da terra e da colheita. Nos letreiros, de Seta como sempre ressalta a importância e a dificuldade do trabalho, e novamente essa jornada vai aos poucos ganhando seus contornos particulares, do reconhecimento do solo, passando pelo olhar mais atento, pela separação do trigo, pela manipulação do arado que levanta a poeira da terra, e pela peneira dos grãos que vai render a parábola de ouro. Se de Seta é “um antropólogo que fala com a voz de um poeta” [2], como disse Martin Scorsese à propósito da restauração dos filmes do diretor, aqui é onde seu movimento fica, para mim, mais claro: o movimento do trabalho é registrado, o descanso em meio ao trabalho é registrado, e o que é a conclusão do dia com os grãos sendo separados vira um gesto místico, a solenidade do ritual sem esquecer da brutalidade das relações sociais trabalhistas. Vittorio de Seta sabe ser o cineasta do épico e do suor sem discerni-los.
Em Surfarara, o subsolo se prepara para ser explorado. Rodado em 55 em uma mina, tudo começa também no amanhecer, na jornada dos homens ao trabalho. A cartela anuncia que nas perigosas minas de enxofre, cuja canção dá título ao filme, os homens trabalham e desafiam a morte, na “tragédia invisível” que o cineasta já anuncia nessa cartela, enquanto estamos vendo a base do solo da mina na escuridão quase completa. O primeiro movimento para que testemunhemos em detalhes esse trabalho e essa promessa de destino está na própria limitação técnica e espacial autoimposta: suas imagens e sons foram captados ao vivo, em microfones diretos, quinhentos metros abaixo da terra. Entendemos os procedimentos e a forma na qual eles se propagam pelo espaço, como os homens chegam até lá, como se comunicam, e qual som as minas de enxofre emitem em resposta.
Novamente o amanhecer, novamente o caminho ao trabalho, até a descida dentro da escuridão total. A baixa iluminação dentro da caverna cria uma disposição ao chiaroscuro, nos tons terrosos contrastados pela luz direta nos rostos e braços dos mineiros, na própria dificuldade de mobilidade da proposta do filme. Sentimos essa geometria de clausura pela câmera numa mesma janela horizontalizada, antes tão disposta às vastidões e paisagens, agora povoada pela escuridão e pelos recortes de corpos, pelos rostos ocasionais cercados pela ausência de luz e contexto, embalados pelo som das picaretas e das rochas enormes, pesadas. O diretor tem um movimento muito perspicaz de isolar a ação dos mineiros por breves minutos no meio do filme, ao enfocar o trabalho coletivo das mulheres em casa, cuidando do funcionamento do vilarejo, das roupas a lavar nos tanques e a secar nos varais, das mesas enormes e cheias de uma comunidade que não para enquanto seus homens vão para a obrigação distante, pontuando bem que para o diretor essas ideias de trabalho são extremamente complementares, distintas em escopo mas idênticas em importância, uma montagem dialética sem soar ilustrativa em demasia.
E quando voltamos à mina, voltamos a uma tragédia anunciada. O som das máquinas se intensifica, as pedras rolam para os carrinhos, os homens falam mais alto, uma cacofonia enervante no peso daquela ação que se torna mais e mais complicada. A imagem acompanha essa dificuldade: apresentados todos os mineiros em suas respectivas posições no espaço, definidos com precisão pelo diretor, vemos a trajetória de cada um dos grupos separados, um na máquina perfurante, o outro no ferro, o outro nas pedras no carrinho, o outro na escada – e por aí acelera, e acelera, e acelera o processo. A montagem começa a ficar frenética, algo nada característico desses filmes, cortes cada vez mais rápidos, ações mais e mais fragmentadas, até que vemos alguns planos por pouquíssimos frames. São eles: homens que empurram um carrinho, pedras que caem, o rosto de um homem que olha para a câmera, um homem que sai do quadro, homens que tentam segurar um carrinho, o rosto preocupado de um mineiro que parece cair, vozes falando para o abismo pouco iluminado, e um poço vazio cheio de poeira. Todos esses oito planos, em conjunto, duram menos de três segundos.
E então tudo para. Vemos planos agora pacientes do rosto dos mineiros. Vários, em sequência, todos em silêncio. O espaço se torna quieto, o trabalho para, as máquinas param. Os homens naquele momento só velam o morto sem rosto. Sem rosto porque de Seta não mostra um corpo: se o trabalho é coletivo, se o esforço é de grupo, então a vítima não é individual. Uma imagem sugestiva, sem ao menos mostrar a morte, que consegue ser tão violenta quanto o atum abatido de Contadini del Mare.
No retorno para casa, numa estupenda fusão da caverna da morte para o campo vasto banhado pelo Sol que vai embora, há o caminho pelas paisagens, o mesmo pôr do sol, mas um silêncio sepulcral. Retornamos ao vilarejo e vemos o céu avermelhado, as casas escurecidas, em sombras quase absolutas, num dia atravessado pelo desastre cotidiano, num ritual de respeito aos mortos – porque nesses filmes de de Seta estamos falando sempre de coletivos.
O alcance histórico desse registro e suas formas estéticas encontra rastros no que o cinema italiano tem de mais contemporâneo: de Seta filma uma mina diante do trabalho como Joana Torgal e Rodrigo Pimenta em Wolfram – A Saliva do Lobo, e realiza uma captação de imagem com som direto nas profundezas como Michelangelo Frammartino em Il Buco. Em Wolfram, a mina vai sendo aos poucos descontextualizada, se tornando abstrata, filmada como máquina que se despedaça e se recompõe numa sideração impressionista, menos humana, mas ainda numa ideia de ciclo dos componentes terrenos que obedecem a alguma lei natural. Em Il Buco, as cavernas vão guardando sons perdidos, a cada momento mais descoberta, com a propagação de elementos naturais cuja origem não registramos com precisão pela imagem, mas intuímos pela espacialidade do som direto – enquanto a montagem de Frammartino compara essas descobertas e esses espaços a outras paisagens, naturais na solo italiano ao redor, humanas dos corpos que ali nascem, morrem, se transformam. São filmes que repensam de Seta da forma como repensam um monumento natural, uma paisagem que se transformou mais ainda guarda seus rastros.
Poucos anos depois de de Seta filmar seus curtas, Robert Drew tornava-se um expoente do cinema direto nos Estados Unidos, escola estética continuada e expandida por Frederick Wiseman e os irmãos Maysles com Charlotte Zwerin, de um cinema preocupado em registrar momentos de intimidade no calor do momento, de instituições, políticos, cidadãos, munidos com câmeras menores de 16mm rodados em preto-e-branco, trazendo filmes brutos cuja matéria prima era o presente filmado sob o som direto e a câmera que se adaptava às adversidades da cena. Em 1955, mesmo ano no qual de Seta realizava Contadini del Mare e Parabola D’Oro e Surfarara, Drew largou seu emprego na revista Life e estudou por um ano na Universidade de Harvard buscando entender o porquê de, obviamente na sua visão, “documentários serem tão bobos” [3], e o que fazer para deixá-los mais interessantes. Lá, enquanto estudava sobre história americana, entrou em contato com a literatura, e entendeu que acharia seus filmes em um “teatro sem atores; seriam peças sem dramaturgos; seria como noticiar sem um sumário ou opinião; seria a habilidade de olhar para as vidas das pessoas em momentos cruciais nos quais você poderia deduzir certas coisas, e ver uma forma de verdade que só se poderia conseguir diante da experiência pessoal.” [4]
Nesse contato com a literatura, podemos observar a mesma disposição para um realismo que puxa para a individualidade da experiência e as descrições minuciosas de um ambiente que o mesmo realismo como movimento fazia na literatura através de escritores como Flaubert e Stendhal, como abordou Auerbach em seu Mimesis [5]. A descrição contextualiza os espaços, e a jornada desses protagonistas era diretamente influenciada por eles, e não poderia ocorrer senão naquela época – um esforço parecido com o qual Drew e seus colaboradores filmam John F. Kennedy às vésperas das eleições de seu partido em Primárias (1960). Nessa busca, Drew estava à procura de um filme “verdade”, de uma experiência fidedigna com o que acontecia no real, algo sintetizado pelo ensaísta Jean-Claude Bringuier, citado por Silvio Da-Rin, sobre a câmera do fotógrafo Richard Leacock, cinegrafista de Drew: “O ideal, como se vê, é o desaparecimento mesmo da câmera, do olhar, sua ausência. (…) Eu acredito que o sonho de Leacock e daqueles que trabalham como ele é um cinema sem cinema, um puro olhar sem suporte.” [6] Se isso é completamente fidedigno aos dizeres e imagens de Drew e Leacock (eu mesmo discordo em partes), não vem ao caso; partimos da ideia que Drew e seu cinema direto filmam a realidade sem rodeios, com mínima intervenção na ação.
O que escapa a Drew, no entanto, é justamente o cinema de Seta; concomitantes à esse estudo e descobertas do cineasta americano, o italiano rodava seus dez documentários, que vieram a ser conhecidos em conjunto como O Mundo Perdido, um título apropriado para um retrato de práticas que pouco depois das filmagens foram modificadas – ou totalmente extintas, como no caso da pesca de peixes-espada. São filmes que ficam numa dimensão muito palpável do retrato realista de costumes, hábitos, geografias e espaços de uma terra muito específica e muito cara para seu realizador, mas que não guardam semelhanças ao iconográfico e às experiências formais do cinema direto, mesmo que seus métodos de produção sejam similares na ideia de documentar através de som direto, de gestos, de comportamento, sem narração, sem ênfases verbais. Filmando ele mesmo, com luzes naturais, trabalhando com paisagens sonoras do próprio ambiente, de Seta cria um céu sobrenatural no gradiente entre azul e vermelho, o cinzento dos campos em fúria, o sepiado dourado da colheita; povoando esses lugares, homens e mulheres que trabalham a terra, que puxam seus barcos, que guardam as roupas do varal, que esperam. Lá fora, o vulcão grita, o mar se revolta, a mina estremece, o campo é agitado. Todo esse realismo guarda em igual medida a aventura.
Inspirações e diferentes realismos à parte, na literatura Flaubert retratou Emma Bovary alienada de seu contexto como alguém que procurava aventura e encontrou monotonia, enganada pelo romantismo; o escritor francês lamentava que a aventura havia se perdido e se tornado realista na matéria-prima do mundo, e que apenas o estilo poderia o redimir. Nesses filmes de Vittorio de Seta, essa aventura sob métodos realistas retorna como num ritual, já que sempre esteve por aqui. Basta olhar para um grupo que se lança ao mar com sonhos de retorno, um vulcão em erupção para avisar de seus limites, e saber que quando a câmera aponta para a natureza e para um coletivo, há paisagens e mistérios suficientes para toda curiosidade do mundo.
Referências:
[1] “É através da práxis, apenas, que os homens adquirem interesse uns para os outros e se tornam dignos de ser tomados como objeto da representação literária.” LUKÁCS, Gyorgy, Ensaios sobre Literatura – cap. 2, Narrar ou Descrever.
[2] SCORSESE, Martin – Film Notes – https://festival.ilcinemaritrovato.it/en/film/parabola-doro/
[3] https://vimeo.com/84270680
[4] idem
[5] AUERBACH, Erich, Mimesis – cap. 18, Na Mansão de La Mole.
[6] BRINGUIER, Jean-Claude – citado por DA-RIN, Sílvio, em: Espelho Partido – cap. 7, Uma Testemunha Discreta