Por Pedro Tavares
Enquanto lia Akira Mizuta Lippit divagar sobre o aparato de memória a partir do cinematógrafo, me chamou atenção a máxima “cinema como mnemosyne” citada pelo autor e professor, ou seja, a prática de coletar e recoletar impressões da vida via cinema e psique. Atrelada aos belos argumentos de Lippit[1] à questão do jogo de memórias, a reflexão me levou a Aby Warburg e como as imagens de seu Atlas[2] costuravam um labirinto de referências da memória num jogo de coletagem de informações, conhecimento e o prazer da observação em imagens que não dialogam entre si. Foi assim que cheguei num tema que reside em outro extremo, mas que, de diversas maneiras, dialoga com o conceito de Mnemosyne de Warburg.
Em 2000, um projeto liderado pelos diretores Jeff Tremaine, Spike Jonze e o ator Johnny Knoxville foi criado após Tremaine descobrir Knoxville e seus comparsas (Chris Pontius, Steve-O e Dave England) em um vídeo da revista Big Brother testando equipamentos de defesa em si mesmos. O projeto ganhou o nome de Jackass – em livre tradução, algo semelhante a “idiota” ou “burro”. O programa usou por anos conceitos semelhantes aos apresentados aqui anteriormente, em especial o prazer da observação e da memória como associação de quadros em justaposição não dialógica. Deste ponto, ligo Jackass ao tema desta edição: o uso do corpo para representações diversas do erotismo, pornografia e voyeurismo, o conflito direto com o puritanismo americano, a destituição de valores pré-concebidos na sociedade e trazer para o horário nobre assuntos espinhosos para uma nação majoritariamente conservadora. A subversão de um conceito popular como um conjunto de gags que em nada dialogavam entre si aumentava a potência da proposta de Tremaine e cia. Jackass foi exibido em uma emissora que carrega seu valor justamente pela memória e como ela influencia até hoje o mundo da cultura popular, sobretudo o da música e da linguagem dos clipes: a MTV. O programa se constituía de um conjunto de gags entre amigos – e construía, assim, um universo de associações e subversões à linguagem televisiva, pois a única linha, na superfície, é a de gerar caos e risadas.
Desta maneira, o programa, que logo ganhou as telas de cinema com o mesmo formato, colocava em primeiro plano o que estava no obscurantismo que realizadores americanos usavam com certa tendência sensacionalista no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Knoxville, Bam Margera e sua trupe extrapolavam os limites justamente por não ter uma linha narrativa. A destruição dos meios e valores era a “atração”. Com isso, as margens para o diálogo com o que é erótico e pornográfico são extensas e muito interessantes. A julgar, em primeiro lugar, como o exibicionismo e a tortura faziam parte frequentemente do programa. O personagem Party Boy, vivido por Chris Pontius, era uma representação muito inocente e funcional de como a nudez incomoda além de um choque inicial. Ao longo dos anos, a nudez em Jackass foi impregnada, em confirmação de que não há qualquer necessidade de justificativa, apenas o prazer; gesto que, de certa maneira, se alinha com a proposta geral de Jackass. Steve-O e Pontius seguiam nus para seus quadros, enquanto Wee Man, skatista e dublê que é portador de nanismo, junto ao perfomer Preston Lacy, com frequência usavam seus corpos para algum tipo de tortura e, por seus corpos estarem desnudos, lidam diretamente com o fetichismo. É importante notar que, em boa parte dos quadros em que homens desnudos atuam, os outros integrantes da trupe estão lá, em geral semi-nus, com o prazer perverso da observação. O torture porn, ou seja, o que liga o prazer ao perverso segundo Frederico Feitosa[3], naturalmente dá estética ao gozo. Mas, no caso de Jackass, além de eliminar qualquer narrativa – a lembrar que os filmes pornográficos possuem, em geral, uma introdução, uma linha narrativa mambembe para chegar à sua real atração – e transformar o seu senso estético na perversidade em si. É o grupo de amigos desnudos a rir incontrolavelmente do sofrimento de outro amigo nu, vez ou outra de pênis ereto, ou em posições que emulam o ato sexual, mas sem o prazer da dor. O gozo é exclusivo de quem assiste neste caso.
Wee Man e Preston Lacy em 69 simbólico.
Steve-O e Chris Pontius
O que chamamos de broderagem atualmente, algo que engloba o companheirismo, confiança e cumplicidade entre homens heterossexuais que pode ou não ter envolvimento sexual, é latente nos quadros de Jackass. Os quadros que envolvem genitálias e orifícios possuem uma dança de proximidade e distância entre os integrantes muito curiosa. Há o acordo silencioso que não há limites para o toque ou para a visão, mas não veremos uma troca de fluídos propriamente dita nem mesmo sob a justificativa de um quadro. Quando a proximidade é latente, geralmente vem em forma de uma pegadinha – como a emblemática barba feita dos pelos pubianos de todos os integrantes colada no rosto de Danger Ehren -, ou com o auxílio de um terceiro – como o quadro do primeiro longa-metragem da série, em que Ryan Dunn insere carrinhos de brinquedo no cu e precisa de auxílio médico para resgatá-los.
Ehren e sua barba de pelos pubianos.
Jackass se consolidou como um sortido conjunto de ações caóticas a fim de questionar a física, os valores, o conservadorismo e sobretudo a linguagem televisiva/cinematográfica sem austeridade. Sua relação com a memória está ligada também ao seu legado, que permitiu diversas adaptações e releituras em diversos países, incluindo o Brasil. O que difere Jackass de todos os outros – incluindo Wild Boyz, série protagonizada por Steve-O e Chris Pontius que, em seu episódio mais marcante, masturbam um bichano marítimo que para se defender expele um líquido branco – é como a série se destituía do pudor. Porém, ao usar seus corpos, optavam pela tensão sexual com o auxílio de um tapume criado pelo humor.
Após dois filmes que são como uma versão prolongada do programa, o terceiro filme tem o auxílio do uso do 3D. O lado escatológico é aflorado com a oportunidade de jogar na cara do público excrementos, mas também aproveitam para usar a tecnologia para colocar pênis voadores com o aval de ninguém menos que John Waters – com quem Knoxville trabalhou em A Dirty Shame (2004), e que participou do segundo filme da série em 2006. Este é o filme mais interessante da série já que, na liberdade que o programa vive, absolutamente qualquer adereço cênico pode ganhar destaque na imagem 3D. Curiosamente, o filme também parece ser o mais sóbrio no sentido artístico, com uso de coreografias e números musicais, algo entre um filme de Buster Keaton e um musical kitsch. Poderia ser um novo caminho para a série, mas o projeto entrou em hiato, retornando para um gran finale em Jackass Forever (2022) que volta ao formato de episódio prolongado.
Preston Lacy e Steve-O: ligados por orifícios e escatologia
A grosso modo Jackass pode ser uma grande estripulia feita por homens se passando por adolescentes com dinheiro e aval para isso. Pegar um bugre e, enquanto o veículo quica sem parar, ganhar uma tatuagem que parece um grande borrão, lutar com um boxeador profissional em uma loja de departamentos ou usar um carrinho de rolimã para jogar o corpo em uma porção de cactos, além da questão exibicionista, mostra certa devoção ao ritual de colocar o corpo sempre em risco e também ao prazer da dor para uma plateia sempre sedenta. Aqui que se engloba o lado erótico e pornográfico da série. Da tortura à escatologia, da nudez e da intimidade que se dá na troca de olhares, risadas e toques ao voyeurismo, a grande proeza do grupo de Tremaine é de levar homens indo ao limite justamente no horário nobre da TV e para as grandes cadeias de cinema do mundo inteiro. Pautar, através do choque e da graça, temas intocáveis àquela época e ainda delicados até os dias de hoje.
[1] Disponíveis em Ex-Cinema: From a theory of experimental film and vídeo, UCPress. 2008.
[2] Foi o projeto mais ambicioso de Warburg, inacabado, que pretendia estabelecer “cadeias de transporte de imagens”, linhas de transmissão de características visuais através dos tempos, que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no nascimento da civilização ocidental, nessas imagens. (Wikipedia).
[3] Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/icone/article/view/230176