Por Geo Abreu
Longa-documentário, vencedor da Competitiva do 55º Festival de Brasília, acompanha expedição da Funai e o reencontro entre parentes Korubo separados por disputas com etnia vizinha.
O filme começa com informações em cartelas, salientando a presença no comando da expedição, realizada em 2019, do indigenista Bruno Pereira, especialista em populações indígenas que vivem em isolamento, na época ainda técnico ligado à FUNAI. Em junho de 2022 Bruno acompanhava o jornalista norte-americano Dom Phillips numa viagem pelo Vale do Javari quando ambos foram assassinados.
Apesar desse fundo trágico, na qual a morte de Bruno se confunde com a própria política indigenista brasileira, em eterno conflito com os interesses do agronegócio, o documentário se ocupa da existência dos personagens Korubo em relação com a equipe com a qual dividem a jornada registrada pelo filme.
Estabelecendo logo de início a escolha por planos fechados em detrimento de planos abertos, geralmente usados quando se filma na Amazônia, Bruno Jorge aposta numa fotografia de detalhe, bem aproximada. Assim estabelece diferenças entre corpos brancos/corpos indígenas e também salienta costumes: cortes de cabelo, adereços, pinturas.
Já no momento do encontro com a equipe a língua se impõe como outro marcador de diferença. Um dos técnicos da Funai é responsável por traduzir o que dizem os Kurubo, o que acompanhamos via legendas. Em meio a brincadeiras muito masculinas, de zombaria sobre a troca de irmãs ou de bravatas sobre disputas mano a mano, a embarcação segue levando a equipe em busca dos parentes arredios de Xuxu e Takvan.
Interessante notar que a equipe da Funai não seja formada apenas por homens brancos, mas também por indígenas de diferentes etnias e pelos quais o documentário pouco se interessa. Sem eles seria quase impossível transitar pelos rios ou estabelecer acampamentos com a agilidade empregada pelo grupo. E eles seguem ali, o filme inteiro em segundo plano, enquanto a câmera se ocupa, quase sem pudor, dos Kurubo, estabelecendo uma relação de proximidade que não vemos ser negociada em momento algum, talvez porque eles sim representem a diferença ou, ao contrário, a semelhança de uma imagem idealizada de indígenas selvagens e ingênuos.
Entre encenações de batalhas, da apresentação de usos e também da arte das bordunas carregadas pelos Korubo – conhecidos vulgarmente como “índios caceteiros” por suas habilidades na fabricação e manejo de bordunas – o filme preenche o tempo de espera pelo reencontro entre parentes com imagens de caça e trato de animais selvagens, como macacos e preguiças, com o objetivo de alimentar o grupo. Cru e cozido e relações de predação como ontologia vem à mente quando estes mesmos animais reaparecem na história, agora em relações amistosas, quase amorosas, fazendo parte das famílias.
O privilégio de observar estilos de vida tão diversos e organizar racionalmente a coexistência desses modos de relação com o mundo é o que nos ganha emocionalmente na relação com o filme dirigido por Bruno Jorge. As sequências do reencontro entre as famílias e seus irmãos perdidos são tão afetuosas, barulhentas e humanas quanto a presença avassaladora de mosquitos, insetos, aves e demais existências que compõem a floresta amazônica. É instintivo apalpar o corpo para espantar as carapanãs ou cair num misto de choro e sorriso dentro da sala de cinema.
Essa imersão sensorial no filme também se deve ao trabalho de edição de som realizado por Bruno Palazzo. Conseguir dar um corpo audível aos diálogos captados em trajetos de lancha em rios caudalosos ou no meio da mata fechada e extremamente povoada de vida (e barulhos) deu ao filme e ao técnico o prêmio de melhor edição de som do Festival. A quem se interesse por som de cinema documental, sugiro ouvir Palazzo falando a respeito do trabalho com esse material.
A escolha por filtrar alguns trechos com o uso do slow motion – com a intenção de estender o tempo de algumas sequências, segundo o próprio diretor – parece alcançar o oposto, estabelecendo uma quebra no fluxo quase hipnótico de estar no mato experimentando relações com seres mais que humanos, sendo tragados pela grandiosidade de tudo ao redor, sentimento que talvez se perca no filme também, já que são poucos os planos abertos, dados ao respiro diante de tanta intensidade.
Ainda no quesito sensorial, há muito apelo ao que se come, ao que se diz com naturalidade sobre sexualidade, genitálias e demais traços materiais das relações com os outros e com o mundo ao redor, dando a impressão de uma intimidade tão conquistada quanto dada por certa, que quase nos esquecemos do exercício de imaginar o que pensariam os Korubos se estivessem em nossa companhia na sala de cinema, vendo a si mesmos e nos assistindo reagir ao que é exibido na tela. Que experiência seria? Compartilharíamos pupunhas cozidas e discordaríamos a plenos pulmões, estendendo a sessão por muito mais que duas horas e meia? Quero acreditar que sim.