Por Pedro Tavares
No final dos anos 70, enquanto retornava aos projetos pessoais, Chris Marker fez uma série de viagens pelo mundo e a partir delas captou alguns signos da existência além de puras imagens. Sem Sol (1983) é uma espécie de mapeamento em via dupla – som e imagem – sobre a humanidade. E com esta via, um filme que se ouve para tomar um rumo e que se vê, para tomar o outro. É um jogo profundo e inerentemente político entre a natureza desta arte e seus aspectos técnicos.
Como um filme seminal que embaça fronteiras entre o filme-ensaio, documentário e ficção, Sem Sol é uma intensa colagem de sintomas. Colagem esta que levanta questões semelhantes aos efeitos do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, ao tirarmos ou colocarmos uma imagem – ou as mudarmos de lugar. Enquanto constrói ideias acerca de um futuro distópico com imagens que registram ou emulam o ordinário através do cotidiano no Japão, Cabo Verde, Estados Unidos, Guiné-Bissau e Islândia, os comentários-carteados feitos por Sandor Krasna tomam corpo pela voz de Florence Delay. Krasna, no entanto, não existe. É um personagem para representar as emoções de Marker.
É através dela que o filme dá passos para trás, como um respiro necessário para acompanhar as imagens e com novos códigos, dar um novo significado, como uma readaptação ao pensamento de Farocki que não precisamos usar novas imagens e sim dar novos significados às existentes. Há uma conjuntura aqui, pois Marker utiliza de imagens de terceiros e sente-se livre para citar e ressignificar filmes e diretores como Hitchcock, Tarkovski, Vincent Minnelli e a si mesmo, mas também coloca questões sobre o jogo de poder envolvendo a câmera e o personagem e a ética no gesto da captura e na reprodução de qualquer imagem.
Esta elaboração entre imagem e palavra e seus caminhos divergentes coloca em xeque até mesmo o valor de cada natureza. Enquanto exibe um produtor de games como um inerente comentário sobre o futuro, Marker salienta que só o eletrônico pode tratar o sentimento, a memória e a imaginação, desta vez com a voz da narradora. Estes embates que trazem diferentes valores entre fundamentos cinematográficos reforçam a ideia de uma construção de coerência entre ambos como um idealismo, um pensamento não anacrônico enquanto cada ponta segue para o desencontro.
Quando Deleuze pensa em Foucault e simboliza seus encontros com o professor por “rachar coisas e palavras” e, num compêndio acidental com o filme Marker, também usa uma carta para se comunicar com o crítico Serge Daney, o filósofo e teórico francês a batiza de “Otimismo, pessimismo e viagem”. Deleuze fala de uma nova função da imagem, a da pedagogia da percepção e da espiritualização da natureza; a natureza da imagem, portanto. É interessante pensar nestas rachaduras e na pedagogia da percepção aplicadas ao filme de Marker e como o diretor levanta questões sobre a “ética do dispositivo” enquanto o mundo encontra um norte nebuloso. Marker faz das cartas, das palavras, um diário-manifesto oral e com a força que se ouve o êxtase sobre o campo social, uma decodificação poderosa sobre a existência e anula a possibilidade de castração deste panorama com o sistema de fluxo tirânico de imagens complementando o agenciamento de expressão.
Sem Sol, portanto, é um filme que exige acompanhamento bifurcado, de certas revisitas a como se lê e relê uma frase em um livro. A voz que se ouve na leitura é a voz de Delay, Krasna, Marker e também a nossa como uma simples convergência entre vida e filme. E é de Deleuze, em entrevista a Claire Parnet, novamente falando sobre Foucault, um resumo acidental de Sem Sol: “(…) É preciso que as forças do homem (ter um entendimento, uma vontade, uma imaginação, etc.) se combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta combinação, mas tudo depende da natureza dessas forças com as quais do homem se associam”. Como a concepção de memória, que cria sua própria ficção dentro das lacunas a fim de complementar a noção de mundo e vivência, Sem Sol é um filme que configura seus próprios espaços na diferença de percepção. Nos diferentes códigos de compreensão do real e sentidos, Marker faz dois filmes distintos: duas narrativas, dois olhares, duas histórias a ouvir.