O que deve o cinema marroquino da década de 1970 filmar?

Por Geo Abreu 

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Um balcão de bar com pelo menos três homens envolvidos numa clássica conversa bêbada, em que alguém recusa um trago e provoca grande desfeita, indo do registro de uma conversa entre amigos à inimizade fortíssima ainda na apresentação do filme. Todo esse movimento filmado à distância, com planos compostos e muito aproximados, envoltos numa névoa de vapor alcoólico e cigarros que compõem também uma escolha formal: um entendimento não muito claro sobre quanto da ação do filme é representação ou cinema verité; convivendo com essa dúvida até que ela deixe de fazer sentido, seguimos  até o final do filme, carregados pela trilha sonora e a construção desse tecido fino que impede uma visão clara dos limites entre verdade e encenação.

Foram pelo menos seis visualizações em dois meses e uma obsessão por About Some Meaningless Events (1974), de Moustafa Derkaoui, que espero exorcizar nesse texto. Ao redor de alguns eventos aparentemente sem sentido, avoluma-se uma série de pequenos conflitos: desde a falta de recursos para o pagamento dos atores até o exercício do flerte entre as poucas mulheres no bar e a equipe de filmagem, que sai às ruas para perguntar que filmes o público marroquino gostaria de ver no cinema.

Moustafa Derkaoui termina o curso de cinema em Lodz, Polônia, e na volta para casa junta uma equipe – que inclui seu irmão – para sair às ruas de Casablanca e investigar o estado geral das coisas. A pergunta sobre que cinema querem os marroquinos parece pura desculpa para a aproximação de tipos interessantes, homens mais velhos com cara de sábios, bêbados, mulheres bonitas. No final das contas, das respostas mais simples às mais elaboradas, o que os interlocutores de Darkaoui querem ver no cinema são episódios da vida dos homens comuns; “filmes históricos que contem a história do nosso país”.

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Escrevo esse texto na semana em que Mangue Bangue, de Neville D’Almeida, e Memórias de um estrangulador de loiras, de Júlio Bressane, ambos feitos no mesmo ano de 1971 e impedidos de circular durante a ditadura militar brasileira, voltam a público num dos mais importantes repositórios de filmes nacionais a disposição do público comum, o site/comunidade Making Off[1]. Na mesma década, no Marrocos, uma equipe de cinema tem seu filme exibido publicamente uma única vez antes de o ver impedido de circular em seu país. Corta para quarenta e cinco anos depois: o filme marroquino volta à público a partir do encontro entre ele e uma pesquisadora num acervo catalão, circula em festivais e mostras especiais e motiva textos surpresos com a força do discurso sobre um cinema nacional, vivo e sagaz, que se põe em relação com a vivência popular da cidade, num contexto de imagens colonizadoras às quais aquele público se via rodeado.

A intenção em pontuar a coincidência no reaparecimento de alguns filmes da mesma década, impedidos de serem exibidos por motivos políticos, é a dimensão de como operam esses regimes de silenciamento de discursos críticos e de uma classe artística que se distancia das representações vinculadas a esse tipo de poder: o impedimento na existência de algumas obras acompanha o desaparecimento físico de centenas (em alguns casos milhares) de pessoas.

Voltando ao filme em si,  a trilha jazzística, elegantemente potente em modular a temperatura das sequências, muitas vezes soa como mais uma camada das conversas que se sobrepõem no ambiente do bar e da rua, compondo uma textura sonora envolvente que nos prepara para a tensão, em especial na cena do assassinato, belamente coreografada e exposta a um ritmo mais lento que lembra muito um prender fôlego diante de algo assustador que se presencia. Depois da apresentação dos personagens e ambientes, a ação se concentra na construção desse conflito entre o estivador e seu chefe, chegando ao ápice da tensão nessa bela cena de luta/dança que muda os caminhos do filme.

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Aqui sai o tom de reencontro com a cidade, seus personagens e ambientes, para um enclave meta referente. A equipe se reune para discutir o caminho do material que tem em mãos: imagens do assassinato de um homem. Quais as implicações em manter aquele episódio na versão final do filme? Uma informação chega até eles: aquela morte tinha um fundo político. Como processar essas imagens diante da complexificação do registro? A sequência dessa discussão me parece tão didática quanto deve ser comum na realidade de produção de filmes em territórios em disputa, cenário próximo de muitas realizadoras brasileiras. Vale a escuta cuidadosa do embate de ideias nesse momento do filme.

Nos aproximamos do final e da sequência da entrevista na cadeia, que eu colaria na parede se pudesse. O que me perturbou ao assistir About Some Meaningless Events foi a construção de um terreno aparentemente leve de abordagem de personagens populares, que reivindicam presença nos filmes de seu tempo e de seu país, e cuja força arrasta esta equipe cinematográfica, jovem e curiosa, até o fundo de questões políticas de natureza muito comum em todos os estratos sociais, a corrupção. As violências explicitadas pelo estivador, que também é artista, nos provoca e convida a rever as próprias escolhas estéticas (ou, pelo menos, deveria). Apesar de toda a auto importância que os cineastas se dão enquanto profissionais capazes de encapsular as memórias do tempo presente, filmar coisas que nunca teremos coragem de fazer, senão em termos fictícios, é o mais alto grau dessa prática?

O que mais pode a equipe de cinema realizar? Todos os filmes são em alguma medida políticos? É possível imprimir leveza na construção de um discurso crítico de base popular em confronto com a violência do cotidiano?

Com muito cuidado e alguma desconfiança no uso da palavra acredito que Darkaoui e sua equipe tenham conseguido realizar um filme popular sobre a classe trabalhadora de Casablanca na década de 1970. Pena que a maioria de seus personagens não o puderam ver na sala de cinema.

[1] Agradeço ao Samuel Lobo pela contextualização e atualização das notícias sobre as raridades do cinema nacional que caem na rede vez por outra e a equipe do Making Off pela inestimada contribuição ao acesso.

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