Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mães de Verdade

Por Camila Vieira

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Há algo nos planos de Mães de Verdade (Asa Ga Kuru, 2020), de Naomi Kawase, que traz na própria materialidade indícios do estilo da cineasta japonesa: alguns takes com movimentos suaves a filmar os corpos dos personagens; outros em que a luz estourada do sol invade os espaços; ou mesmo aqueles em que o vento balança os galhos das árvores. Fazer do invisível uma força tátil é um dos elementos que marcam a filmografia de Kawase dentro da constelação do cinema contemporâneo.

No entanto, o modo como a narrativa engendra sucessivos encadeamentos esquemáticos parece a todo custo diluir a pujança da construção das imagens e dos sons de Mães de VerdadeDepois do plano inicial do mar junto ao som da mãe que chora amalgamado ao grito do bebê que nasce, acompanhamos uma cena de bela intimidade entre mãe Satoko Kurihara e seu filho Asato. A partir daí, o que vem na sequência desaba todo o esforço de contiguidade sensorial até então conquistado em prol da amarração da trama: Asato supostamente empurrou um colega na escola e, após todo o rebuliço da mãe do menino machucado, instaura-se em Satoko a desconfiança de que seu filho possa ter realmente cometido tal ato.

Como posso duvidar do meu menino?” – a pergunta de Satoko já introduz uma suposta hesitação dentro do seu papel de mãe, que prende o filme à necessidade de jogar um flashback em que ela aparece com o marido Kiyokazu a conversar sobre a vontade de ter um filho. Desejo impossível a princípio, já que a azoospermia de Kiyokazu impede de ter filhos biológicos. O marido se desespera, lança a possibilidade do divórcio e – que milagre do acaso! – aparece um infomercial de uma agência de adoção na televisão que só falta colocar em letras garrafais que nada está perdido para o pobre casal.

Não é para pais encontrarem os filhos. É para os filhos encontrarem os pais” – eis o slogan da agência Baby Baton que convence Kiyokazu a decidir pela adoção. O casal mora no 30o andar de seu confortável e intocável prédio, enquanto é muito óbvio que Hikari, a mãe biológica de Asato, deve ser construída como a mãe jovem, que será rejeitada pela família tradicional japonesa, que se tornará uma mulher a sobreviver de trabalhos precarizados, que levará uma vida carregada de culpa e sem conforto algum.

Na medida em que o esquematismo do roteiro impõe esse imediato contraste entre mães – pasmem! -, descobrimos que Asato não empurrou seu coleguinha na escola e – ufa! – família Kurihara pode voltar para seu conforto, porque aquele suposto acidente foi só uma desculpa para forçar uma dúvida e logo depois lançar a certeza de que o menino é adotado. É necessário ainda prosseguir com as amarrações frouxas e os subterfúgios dramáticos, como trazer Hikari de volta para reivindicar o garoto e introduzir um flashback sobre a trajetória dela de sofrimento até chegar ali.

No meio desta platitude de previsibilidades, talvez seja possível encontrar algum respiro breve de suspensão em uma sequência: aquela em que Maho, uma das adolescentes grávidas da Baby Baton, celebra seu aniversário em um churrasco com a vizinhança e as amigas da ilha. Os planos voltam a ficar instáveis, escutamos uma voz off feminina a interpelar aquelas personagens em closes e vemos a sombra de uma mulher que filma com uma câmera na mão. Seria a mesma Kawase em cena a reconstituir aquele plano de sua sombra em Caracol (Katatsumori, 1999)? Mas logo o plano se dissipa e Mães de Verdade volta a ser um filme de apaziguamento do já esperado. Se em Caracol, a diretora abraça o mistério na relação com sua avó para tratar de maternidade, já não  espaço para qualquer opacidade em Mães de Verdade, porque agora o que interessa é decodificar as imagens ao bom entendimento e deixar de lado o enigma que é a própria vida. 

Visto na 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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