Por Camila Vieira
Há algo nas imagens de 17 Quadras (17 Blocks, 2019) que altera a relação de poder de quem filma em relação a quem está sendo filmado. Em um primeiro momento, o documentarista estadunidense Davy Rothbart se sentiu interessado em registrar com sua câmera o cotidiano da família dos irmãos ainda pequenos Emmanuel e Smurf que ele conheceu a partir de um jogo de basquete, em 1999. Com o pacto de aproximação estabelecido, todos os integrantes da família passam também a filmar a si mesmos, construindo e materializando suas próprias encenações. Não se trata mais apenas do olhar de alguém de fora, mas de quem vive intensamente aquela realidade por dentro daquela casa em Washington a 17 quadras do Capitólio.
Registradas ao longo de 20 anos, boa parte das imagens do documentário se colocam sob o risco do real, tal como pensa Jean-Louis Comolli, em que a auto mise-en-scène permite implodir qualquer gesto programado de representação de si. Há algo de espontâneo no modo como a câmera se movimenta, na forma como cada um fala e interage com os outros em cena, que deixa escorrer uma dinâmica de desejo muito particular de quem está sendo filmado por conta própria. Por mais que as escolhas da montadora Jennifer Tiexiera sejam marcadores externos que optam pela contiguidade narrativa das temporalidades distintas dos acontecimentos, ainda assim as imagens por si só produzem fissuras a romper com uma ordenação cristalizada da cena, já que a própria alteridade também se impõe como co-criadora.
Por acompanhar um longo período de tempo, os vínculos afetivos entre a mãe solo Cheryl e seus três filhos, Emmanuel, Denice e Smurf, são dimensionados em suas complexidades. O bairro é cercado por violência, que não é explicitada, mas situada em extracampo: ouvimos o barulho das sirenes dos carros de polícia; Smurf é traficante de drogas, mas não vemos ele negociar diretamente; e mesmo o evento mais trágico só é possível de ser reconstituído pelas memórias dos outros. “Você tem que usar seus punhos como armas”, diz Emmanuel, em um trecho em que relata quantas vezes seu irmão levou tiros nas ruas.
Se o ponto frágil de 17 Quadras é o uso persistente dos acordes indies melancólicos da trilha musical de Nick Urata com supervisão de Dan Wilcox, a força do filme pode ser resgatada com as próprias falas dos personagens, em especial Cheryl, que diz ser necessário se curar e ter esperança. O documentário poderia ser mais um de tantos que são seduzidos pela espetacularização midiática de famílias com vidas precarizadas, mas ele está mais interessado em respeitar essas pessoas e acompanhar como elas sobrevivem apesar da violência.
Visto durante a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2020