Por Pedro Tavares
Junho, 2020. Pouco mais de dez anos do prêmio dado para Estrada Para Ythaca na Mostra Aurora dentro da 13ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, tive a oportunidade de conversar com Luiz Pretti que, à época, junto de Guto Parente, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti dirigiu, produziu e escreveu o filme e compunha a Alumbramento. Muita coisa aconteceu para a Alumbramento desde então, inclusive o encerramento de suas atividades oficialmente como um coletivo, ainda que seus integrantes colaborem uns com os outros em seus respectivos filmes. Para o cinema brasileiro, na última década, o turbilhão foi ainda mais intenso. Da ascensão da produção de filmes independentes, cursos e mostras de cinema ao declínio que chega à máxima intensidade em plena pandemia. O que naturalmente serviria como um papo-celebração sobre o trabalho de um modelo-chave de produção independente nos últimos dez anos virou um diagnóstico sobre como a união e poesia trazem a mínima sensação de liberdade em tempos de revolta.
Começo pulando algumas etapas na linha do tempo falar sobre um momento muito simbólico para a carreira da Alumbramento que é a cena-motim final d’Os Monstros. A cena do free jazz, especificamente. Gostaria que você falasse um pouco sobre a criação e a sensação sugerida por ela.
Luiz: Cara, a palavra motim a princípio me remete a algum tipo de relação com uma força maior, geralmente representado pelo Estado, pelo exército. Nesse sentido específico, acho que não tem nenhum filme da Alumbramento com esse tipo de relação, talvez Com os Punhos Cerrados. Mas a ideia de unir forças para enfrentar os desafios impostos pelo capital, por exemplo, são o cerne do cinema feito pela Alumbramento. Tudo que foi feito lá, em alguma medida, era um pequeno levante frente à certas regras impostas pelo mainstream do cinema, como ele é financiado, etc. Todos os filmes ali têm a sua parcela e sua forma particular de fazer esse levante. Agora, sobre essa cena d’Os Monstros, é uma cena que eu tenho um carinho especial. Acho que a música de improviso, pra mim com certeza, foi uma referência muito forte sobre o que poderia ser esse coletivo. Na música a gente via uma forma de co-existir, com vozes vindas de diferentes culturas, com visões de mundo diferentes e que se encontram através da música e conseguem formar esse coletivo provisório de uma força incrível.
E o free jazz faz parte do seu processo de criação? Pois acredito que ele incita algum tipo de ordem numa segunda camada.
Luiz: Sempre conversamos muito sobre como traduzir o improviso livre musical (que é misto de espontaneidade e composição) para o cinema. Não acho que conseguimos, mas a cena final d’Os Monstros é debitaria das inúmeras ideias e tentativas. E mesmo hoje é um desafio que continua me interessando.
A Alumbramento começou em 2006, certo? Se me recordo vocês fizeram um longa-metragem filmado no Leblon…
Luiz: Sim, mas isso foi antes de irmos para Fortaleza. Ainda não existia a Alumbramento. Foi bem antes, na verdade, e se chamava A Estética da Solidão e só foi exibido na Mostra do Filme Livre em 2000. A gente conseguiu uma mini-DV emprestada com um amigo e testamos algumas coisas. É um filme muito mais de exercício, de rascunho do que exatamente um filme…
Um detalhe que lembrei agora e que acho importante mencionar, é que o site da Alumbramento, que também é um gesto de preocupação com a memória, disponibilizou os filmes do coletivo e também de realizadores do mesmo círculo. Agora com o fim do coletivo, como vocês pretendem manter a memória viva? Existe essa intenção?
Luiz: Existe, demais. O site infelizmente não está no seu melhor, precisamos atualizar alguns links antigos. O site é dividido em três seções: os filmes, os textos e uma parte de memórias, com fotos de making of, fotos da galera. O site foi criado justamente pra resguardar a memória da Alumbramento. Lá tem um link que leva para três textos diferentes, um de 2006 que escrevi para simbolizar o início do coletivo e falar sobre nossas motivações naquele momento. Um segundo texto que eu escrevi quando o coletivo passou por uma transformação com a saída de algumas pessoas e a entrada de outras, diminuindo o seu tamanho. Tentei colocar ali quais seriam as motivações dessa segundo fase da Alumbramento. E tem um terceiro texto escrito pelo Ricardo uns dois anos após o fim da Alumbramento e se esforça em fechar os trabalhos relembrando pontos chaves na história do coletivo. Os textos nunca vão dar conta do que foi a Alumbramento, mas é um desejo de guardar uma parcela dessa memória, mesmo sabendo que parte de pontos de vista específicos que não necessariamente representam os vários outros pontos de vista. Dentro do coletivo cada qual tem sua história pra contar. Eu adoraria ver essas histórias contadas, compartilhadas e preservadas.
Já que falamos de memória…há um filme inicial oficial da Alumbramento?
Luiz: A gente considera que o primeiro filme da Alumbramento é o Sábado à Noite do Ivo Lopes Araújo, lançado em 2007. Sem dúvida alguma é o ponto de partida do que veio a ser a Alumbramento. Todas as pessoas que trabalham nele fizeram parte do coletivo diretamente ou eram muito próximas, envolvidas. Sábado à noite é muito importante, pois uniu pessoas em torno de um projeto cinematográfico que buscava uma relação intensa com a cidade de Fortaleza, que era uma das questões primordiais do coletivo. Perguntas como: a gente como artista consegue intervir na cidade, criar relações entre o que a gente faz e as pessoas que habitam a cidade? Outros filmes nossos partiram desse interesse, como o Praia do Futuro…são filmes que desejavam se colocar em relação ou em conflito com a cidade. Geralmente exibíamos os filmes no São Luiz, um cinema da região central da cidade. Teve uma sessão histórica do Sábado à noite, com pessoas que embarcaram no filme, outras que detestaram, mas tinham pessoas de todos os cantos da cidade, do entorno, que entraram lá pra assistir.
Outro ponto importante é o Estrada Para Ythaca. Já havia uma movimentação para um “novo cinema” com a criação da Mostra Aurora, a sessão do Novíssimo cinema brasileiro que posteriormente virou a Semana dos Realizadores no Rio, mas o Estrada para Ythaca passou do circuito dos festivais e chegou ao circuito. É um marco muito importante.
Luiz: Sim, ele foi lançado na Sessão Vitrine. Só para não perder o fio, os primeiros quatro anos da Alumbramento foram essenciais para que o Estrada Para Ythaca pudesse existir. Foi o momento que começamos a realizar um cinema que conseguia quebrar com certas estruturas opressoras, que geralmente aceitamos de cabeça baixa, que determinam as regras para ser um cineasta…
O cinema da retomada.
Luiz: A retomada não retomou porra nenhuma. O cinema brasileiro continuou muito restrito a uma elite que já estava segurando o dinheiro, era detentora do poder em relação ao cinema brasileiro. Não foi nada democrática essa retomada. Em 2006 começa uma reação a isso, com o entendimento que o Brasil é algo muito maior que Rio de Janeiro e São Paulo. O que parece hoje óbvio, não era nada óbvio. Quando eu e Ricardo decidimos sair do Rio para ir para Fortaleza, nós éramos ridicularizados. O preconceito que existia…e eu tô falando de gente do cinema, progressista. Tinha muito preconceito mesmo. Esse movimento que a gente fez teve muita reação de piada. Bem, a gente era visto como uma piada. E falavam que a gente ia sair do Rio, onde acontece tudo…não acontece porra nenhuma! No Rio, só se você trabalhar na Globo ou na Conspiração. E eu não queria entrar no esquemão. Eu não julgo ninguém que trabalha para lá, mas acho estranho considerarem isso um grande acontecimento, um plano de vida. Eu tive sorte de ir para Fortaleza na época do governo Lula, pois permitiu que o Brasil como um todo entendesse que o país é maior que o sudeste. Em Fortaleza a gente começou a realizar filmes independentes, da nossa maneira e quebrando a lógica estabelecida. Começamos a ter alguma atenção, tinha algum desejo de conhecer o cinema fora do eixo Rio-São Paulo. E eles começaram a serem vistos nos festivais. Quando a gente lançou parecia que as pessoas se perguntavam o que tinha acontecido em Fortaleza, de repente, e achavam que o Estrada Para Ythaca era o início da Alumbramento, mas não é.
E isso ficou com claro com o interesse pelo cinema mineiro, especificamente, e pelo diálogo de vocês com os autores mineiros.
Luiz: Sim, total. A [produtora] Teia era uma referência pra gente, uma galera de BH. Isso começou com o Ivo [Lopes Araújo], o primeiro filme que ele fez por lá acho que foi O Céu Sobre os Ombros do Sérgio Borges. Depois ele fez A Falta que Me Faz da Marília Rocha, Girimunho da Clarissa Campolina…ele ficou muito empolgado com o pessoal de BH, mostrou os filmes da galera pra gente, do Dellani [Lima].
E vocês já mensuraram o tamanho dessa ação que de certa forma é contrária ao cinema da retomada?
Luiz: Pra mim é um pouco difícil mensurar. Uma coisa que o Estrada Para Ythaca fez que eu acho muito importante, mais que conquistar circuito, foi abrir a porta do “podemos fazer filmes”. Sem precisar fazer no sistema tradicional. Acho que a nossa geração e a seguinte foi muito influenciada por esse gesto. O Ythaca, em alguma medida, empolgou a galera a fazer cinema, fazer bons filmes, sem precisar passar por todo o processo habitual. Ao invés de esperar dez anos pra fazer seu primeiro longa, essa geração esperou dois, três anos. E em muitos dos casos feito com espírito coletivo, com orçamento de curta, ou nenhum orçamento. Isso é uma quebra de paradigma. Mas não chegamos a um circuito maior, estamos num nicho. O circuito de cinema é dominado pelo mainstream e furar isso é muito difícil, ainda mais com esse cinema que fazemos.
E nos tempos de streaming a internet é um bom lugar para distribuição? Como falamos, o site de vocês sempre disponibilizou por tempo limitado os filmes…
Luiz: A gente sempre quis abrir pra internet. É um campo fértil para alcançar as pessoas. Agora tão na moda, em tempos de pandemia, mas sempre fizemos sessões virtuais. Em 2012 fizemos com os curtas. A ideia de um curta-metragem ficar preso aos festivais é muito estranha. A gente deixava por uma semana porque o tempo limitado faz as pessoas não perderem os filmes no oceano de informações. Colocamos o Não Estamos Sonhando, Dizem que os cães veem coisas, Retratos de uma paisagem. Aí notamos que seria legal ter filmes de outros realizadores com dificuldade de distribuição. Aí nós exibimos filmes do Ricardo Miranda, da Helena Ignez, Luis Alberto Rocha Melo, Paula Gaitán, Flora Dias…foi um momento ótimo. E também convidamos pessoas para escreverem sobre os filmes, tipo o Hernani Heffner escreveu sobre o filme da Flora Dias. É a ideia de criar uma cultura ao redor desses filmes. E recentemente colocamos o Estrada Para Ythaca online. O Guto me mandou uma crítica de um usuário do Letterboxd sobre o filme que é super sincera e direta, e esse tipo de retorno é o mais legal. Digo isso sem demagogia. É mais importante que o reconhecimento do festival X ou Y. No fundo o que dá sentido ao que fazemos é a troca com as pessoas, seja em pequena escala ou grande.
Sobre isso, lembro-me da primeira vez que vi o filme na mostra dedicada à primeira década dos anos 2000 curada pelo Eduardo Valente. Preciso revisitá-lo, mas lembro de referências claras ao Glauber ali.
Luiz: Sim, tem a cena do Glauber no Vento do Leste. A gente faz uma citação a essa cena.
E depois do Ythaca como foi o fluxo de produção de vocês? Havia algum tipo de planejamento “de carreira” para os longas? Visto que todos eles de alguma forma rodaram em festivais e foram lançados no circuito.
Luiz: Não, isso não era planejado. A gente nem sabia da possibilidade de carreira pra filmes. Depois do Estrada Para Ythaca a gente começou a entender que haviam espaços pra passar os filmes. A gente mandou o Ythaca pra Tiradentes meio que rezando pra passar, já preparados pra levar um não. Como depois o filme teve alguma reverberação, a gente começou a conhecer alguns festivais, outras pessoas tiveram interesse em assistir os nossos filmes, tanto aqui quanto lá fora…
E como foi essa chance de intercâmbio com o público e realizadores internacionais?
Luiz: Uma sessão muito legal foi no BAFICI. Marcou a gente na época, abriu uma possibilidade de diálogo com o pessoal da América Latina. A gente não tem muito ainda, é uma pena. Depois da exibição a gente teve uma conversa longa, fomos pro bar com uma galera jovem, todos realizadores. E abriu-se ali uma possibilidade de intercâmbio, ideias de fazer filmes. Acabou que não rolou nada, mas no ano seguinte quando voltamos com Os Monstros, o pessoal também estava lá exibindo um filme novo chamado Hoje eu não tive Medo, que era claramente um gesto de libertação e que dialogava com Ythaca. O diretor desse filme já havia até passado um filme em Cannes. Ele se chama Ivan Fund.
E com os festivais de fora, havia um trabalho concentrado nas burocracias de inscrições?
Luiz: Na verdade ninguém queria fazer nada disso! O Guto tinha mais paciência, chegou a fazer uma planilha com uma lista de festivais que nós exibimos os filmes, pra facilitar. Mas na hora de mandar era sempre uma bagunça…Aí gente tentou fazer da Alumbramento uma produtora respeitável, contratamos uma estagiária, a Amanda Pontes (que hoje é ótima produtora e diretora e continua trabalhando com Carol e Pedro), e ela fazia esse trabalho de organizar melhor os festivais e contatos.
E depois da Alumbramento, cada um foi fazer o seu projeto solo. O Ricardo fez um filme para a trilogia Sonia Silk com o Bruno [Safadi], o Guto fez o Doce Amianto, você se concentrou no trabalho de montador…
Luiz: É, eu sou montador. O Bruno fez o Uivo da Gaita, o Ricardo fez O Rio Nos Pertence e tem o Fim de uma Era, que é dirigido pelos. E é isso, o Guto fez o Doce Amianto com o Uirá [dos Reis] e A Misteriosa Morte de Pérola com a Tici [Ticiana Augusto Lima], fez o Inferninho com o Pedrinho [Pedro Diógenes] e com o grupo de teatro Bagaceira. Você falou em projeto solo, mas é curioso porque a maior parte dos filmes depois da Alumbramento foi feita em parceria com alguém. O Guto fez sozinho O Curioso Caso de Ezequiel e o Clube dos Canibais, o Ricardo fez O Rio nos Pertence sozinho também, eu fiz o Enquanto Estamos Aqui com a Clarissa [Campolina], fizemos O Porto, eu, Ricardo [Pretti], Júlia [de Simone] e Clarissa. Tem um tanto de filmes…eu tenho prazer nessa troca. É um desejo de continuar fazendo filmes onde minhas ideias podem ser confrontadas com as ideias do outro. As ideias fundadoras do filme, sabe?
E houve um fator decisivo para esse distanciamento de vocês como um coletivo?
Luiz: Acho que um fator foi a intensidade que a gente se jogou nessa parceria. Não há relação que aguente. É muita intensidade. O Guto foi o primeiro a sacar que as ideias que ele tinha não ia…ia ser demais. Ele tinha um desejo de pesquisa de cinema que dentro do nosso coletivo não tinha espaço e naturalmente foi encontrando o seu lugar para realizar sua pesquisa. A gente fez cinco longas em conjunto e vários curtas-metragens em que participávamos como equipe, mas chegou a um certo esgotamento. Ia implodir. Precisávamos extravasar para outros lados.
Há um caso interessante nessa trajetória que é o de Com os Punhos Cerrados, considerado como um comentário imediato sobre as manifestações de 2013…
Luiz: Acho que é um filme que a cada dia que passa fica mais como um reflexo do nosso tempo. Eu gostaria de aproveitar para tentar consertar certos equívocos. As pessoas acham que é uma reação às jornadas de junho e na verdade não é. A gente filmou aquilo antes, mas ele foi exibido depois. Estreou em agosto de 2013 em Locarno e a reação em torno dele foi instantânea: um filme que respondendo à 2013. Mas ele foi concebido em 2012, em dezembro. Acho interessante que a gente fez esse filme antes de tudo ficar uma merda. Quando a gente lançou o filme ainda não tinha o golpe, mas sabíamos que as manifestações não tinham dado certo. Já se via a ascensão de figuras como o Marco Feliciano, essa galera que tomou o poder aos poucos…e quanto mais eles apareciam, mais absurdo o Brasil parecia. E com isso mais sentido o filme fazia. Uma das críticas que o filme teve é que ele era muito caricato. Porque a figura do vilão, ele ficava de costas com um discurso reacionário exagerado…e logo depois disso apareceu esse pessoal com discursos semelhantes, à la tradição família propriedade. Nesse momento, o filme parecia uma reprodução fiel do que a gente vivia no Brasil. E ainda vive. Esse embate dos discursos da extrema direita aos discursos anarquistas do filme é o nosso dia-a-dia, de certa forma. Seja no jornal, nas mídias sociais…e no filme a gente dizia que a batalha estava perdida. Ao mesmo tempo insistíamos na ideia de movimento, de continuar se movimentando, como forma de continuar vivo. Eu gostaria de revê-lo para saber como ele bate hoje em dia. Acho que isso está na cena final d’Os Monstros que você comentou. A gente entendeu por via do anarquismo que a primeira transformação é a do eu. Acredito que assa transformação possa se dar pela poesia, no sentido amplo, como uma experiência poética de vida, que qualquer ser humano pode ter, uma experiência de transformação, maior…que acabar por transformar a sociedade.
Então temos um certo complemento ao comentário inicial dessa cena.
Luiz: Sim, e acho que o Estrada Para Ythaca também tem um pouco disso. É uma coisa muito forte que a gente tinha nessa época. É conseguir ver a arte num lugar cotidiano. Não fazer uma diferenciação da expressão artística com a vida cotidiana. Quebrar essas barreiras e é por isso que eu falo “poética” e com isso, por exemplo, viver o tempo de uma forma particular. Por exemplo, no Ythaca, viver o tempo pleno do luto. Não deixar que a máquina do capital atropele o tempo do luto. O Ythaca é basicamente sobre isso e no filme tem uma fusão entre vida e arte nesse sentido.
Como o poder da música pra sintetizar tudo isso também.
Luiz: O caso da música sempre traz isso pra mim também. Ela tem o poder…é uma coisa que eu gostaria de estudar um pouco mais. A relação entre a música de improviso negra vinda dos anos 60 e 70 e o ativismo político da mesma época. Vejo nessa música uma forma de ação direta. É pra mim entrar em contato direto com isso que eu chamo de vida poética. Acho que não dá pra desassociar o que Malcom-X e Martin Luther King faziam na luta política daquilo que John Coltrane estava fazendo na música. E acho que isso ainda pode ser uma chave de entendimento para nós, de como podemos agir no mundo atual. Perder um pouco o sentimento de impotência. Na sessão de curtas da Sarah Maldoror, a Janaína Oliveira fez uma associação da obra da Sarah com a do o Zózimo Bulbul e ela relacionou o Art Ensemble of Chicago na obra da Maldoror com o Coltrane no filme do Zózimo [Alma no Olho, 1974]. Ela percebe um ponto de conexão entre esses filmes, realizados por dois cineastas da diáspora africana, através da música. Acho isso muito bonito. A música como um elo, como aproximação das diferentes lutas.
Isso me remete ao movimento No Wave de Nova York, que tinha ligação direta com a música de improviso e o cinema de improviso. Os filmes do Amos Poe, da Beth B…filmes sem orçamento e músicos que tinham carreiras baseadas no underground.
Luiz: Essa cultura do do it yourself conecta com certeza. O movimento punk, o movimento free jazz, o reggae na Jamaica, o funk no Brasil…
E sobre o tempo de produção/filmagem/montagem? Geralmente quando duas ou mais pessoas estão na direção a diferença de ritmo cria algumas dificuldades…
No caso do Com Punhos Cerrados, a pré, ou uma espécie de pré, foi em dezembro de 2012 e já tinha uma espécie de equipe formada. As filmagens foram no final de dezembro e começo de janeiro. Os Monstros passamos três semanas filmando. O Ivo fotografou uma parte e o Vitinho de Melo fotografou outra parte. O No Lugar Errado foi super rápido porque o grupo tinha uma janela de uma semana de ensaio da peça e a gente foi lá e filmou nessa semana. O que a gente conseguiu filmar virou o filme. O Estrada Para Ythaca foi uma semana também, uma semana na estrada, filmando direto. À noite a gente decupava, de dia a gente filmava, foi um trabalho insano. A gente editava tudo junto…passamos um tempo montando, tivemos duas ou três etapas de montagem. A gente tinha treze horas de material bruto. A primeira cena, a do bar, foi a mais difícil pra montar. A gente voltou várias vezes nessa cena. Já Os Monstros foi ao contrário, a gente montou em uma semana, pois tinha uma narrativa simples e trabalhamos com planos-sequência. Foi bem rápido.
E nessa época você começou a montar mais filmes, inclusive de outras pessoas…
Luiz: Por mim poderia ser de mais pessoas até. Eu adoro montar filmes, tenho um prazer enorme. Adoro entrar e participar de universos novos e sinto que contribuo bastante.
E aquela pergunta cliché de quarentena: conseguiu produzir alguma coisa nesse tempo?
Luiz: Sim, eu estou finalizando um curta novo chamado Jogo de Sete Lances (Perdido No Fabuloso Universo Dos Fragmentos). Eu comecei em pré-quarentena, ainda estou mexendo um pouco na imagem e no som. É um filme que fiz a partir de arquivos pessoais, dos últimos sete, seis anos. Ele tem uns vinte minutos.