Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa (Cathy Yan, 2020)

Por Pedro Tavares

birds of prey

Suprir representações de padrões sociais é um código bastante utilizado em narrativas fantásticas e, no universo particular de Gotham City – ou melhor, Nova Iorque -, há um exercício de projeção muito claro, principalmente nos vilões – que agora ganham atenção dos grandes estúdios. Pela lógica, este reflexo catapultou o Coringa de Todd Philips para o sucesso por um tipo de condecoração emocional generalizada. Para Aves de Rapina, a lógica é a mesma: a performance ideológica a seguir o fio obrigatório do produto, da obediência às normas comerciais e de um lugar seguro para estar.

No início dos anos 90 há um capítulo muito claro na ação de convergência entre ideologia e produto na cultura americana: enquanto o movimento Riot Grrl crescia na costa leste, oriundo da cena punk underground, composto basicamente por reuniões semanais entre garotas, shows, zines e convenções, a mídia rapidamente o transformou numa tendência. Se as garotas usavam códigos de reconhecimento como corações e estrelas desenhadas nas mãos, logo a revista Spin tratou de transformar em artigo de moda, por exemplo. Para encurtar a história, este empenho de releitura de um movimento feminista desembocou em estranhos elementos da cultura pop dos anos 90 como as Spice Girls e as Meninas Super Poderosas a julgar o seu ponto de partida.

Susan Marcus, que narrou os anos das Riot Grrls no livro Garotas à Frente, complementa sobre a ideia de produto: “Artistas do Top 40 não são movimentos culturais; são projeções holográficas ultra-homogeneizadas e extremamente comercializadas, aspectos de cultura que são ampliados em telões eletrônicos e levados para o ID por um cateter central. Cultura de massa sempre contém variações limpas e fotogênicas do underground, incorporando apenas o suficiente da parte “provocadora” para manter a própria relevância”.

Nesta declaração, há o lugar de habitação de Aves de Rapina. Uma variação limpa e fotogênica do underground – mesmo que ela seja a repetição ensolarada da Gotham de Christopher Nolan e de um jogo de alegorias que Arlequina por si já se encontra: uma sequência que a protagonista entra numa delegacia e dispara balas e sinalizadores coloridos, o mundo composto, o microcosmo, é tão límpido quanto um código de reconhecimento que fora transformado em elemento visual, pura e simplesmente. A destreza de subsistir num mundo sinistro e repleto de ambientes regidos por homens cede espaço para um tipo de narração infantilizada, “esperta” e pronta para subestimar a persona de Arlequina e suas asseclas em nome de algo maior e intangível. A emancipação da protagonista, à priori jogada para uma segunda camada, está mais para uma escada humorística do que um assunto a ser pautado em algum momento do filme.

Cathy Yan, em sua primeira inserção no mercado americano, opta pela provocação visual: são nas sequências de ação que toda referência à trilogia John Wick dada pela própria Yan é lembrada e sem a intensidade de Chad Stahelski. Se há alguma sugestão de sujeira e flerte com algum extremo, logo são lavados, no qual a provocação é sempre dominada por uma obrigação obscura; Se Kick-Ass – Quebrando Tudo de Matthew Vaughn, para nos atermos ao mundo dos heróis e HQ’s, já desconstruía a figura do narrador e Scott Pilgrim Contra o Mundo de Edgar Wright compôs um mundo estético capaz de unir organicidade ao postiço, o filme de Yan está mais para a aproximação mais mastigada de um discurso moldado pela a noção de produto: se nos anos 90, foram de Bikini Kill às Meninas Superpoderosas, Aves de Rapina é o ponto final desta descida.

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