Por Camila Vieira
Uma sensação de letargia sobrevoa a atmosfera azulada de Crash – Estranhos Prazeres (Crash, 1996), de David Cronenberg. Personagens com olhares vagos e vozes sussurrantes habitam a cidade, à espreita de algo que lhes arranque do estado de suspensão. A primeira sequência do filme é uma panorâmica aérea de um hangar de aviões particulares. No hospital, a esposa de Ballard constata que “não há muita ação” naquele lugar. As demais camas da enfermaria estão vazias. Uma espécie de vagueza paira sobre os ambientes, mas o que reposiciona tais personagens face à inércia é o contato físico com outras superfícies (a pele, o couro sintético, o ferro) e o choque com a máquina (os acidentes).
James Ballard (James Spader) está distraído quando acontecem os primeiros acidentes automobilísticos. Há o olhar para objetos: o script de um filme, a luva da dra. Helen Remington (Helen Hunt). O impacto da colisão no trânsito amplifica o despertar do prazer no produtor de cinema, que lida com a criação de imagens. Crash é também um filme em torno da atração por imagens do espetáculo, pelos grandes acidentes fatais com celebridades do cinema (James Dean, Jayne Mansfield). A reconstituição destes acidentes por Vaughan (Elias Koteas) produz uma vizinhança com o que Hal Foster chama de realismo traumático, em “O retorno do real”, ao tratar do interesse da pop art de Andy Warhol pela reprodução de imagens de acidente e de mortes trágicas de ícones do cinema.
Subjetividades em choque se produzem na repetição dos eventos traumáticos, seja pela reconstituição do acidente – Vaughan também é seduzido pela fidelidade aos detalhes noticiados – seja pela reprodução técnica da televisão (os vídeos de simulação de colisões de automóveis) e da máquina fotográfica (as imagens de carros destroçados e corpos suturados). Foster entende que a obsessão pela imagem do trauma não reivindica controle sobre ele, mas sua explicação psicanalítica de base lacaniana acaba sendo limitadora, pois coloca a repetição do traumático sob uma sombra protetora. Não há tentativas de proteção aos corpos de Crash. Eles se permitem ao risco do acidente – basta lembrar a sequência em que Ballard tira o cinto de segurança, como se estivesse sufocado pelo dispositivo; ou quando Vaughan enfatiza para a plateia que não vai usar capacete, nem cinto, nem qualquer artefato de segurança no momento em que tenta reviver o acidente de James Dean.
Vaughan é o personagem que mais provoca as colisões, por enxergar nelas a produção de acontecimentos que não são destrutivos, mas catalisadores de novas formas de prazer. Ele é o profeta do acidente e do momento. Sua intencionalidade é permeada pela proliferação de metanarrativas, que mudam a cada encontro. Seu projeto é um work in progress que vislumbra o futuro: de início, fala do interesse pela reformulação do corpo humano pela tecnologia moderna; em seguida, da busca de potenciais parceiros em psicopatologia dispostos a experimentar diferentes intensidades. Vaughan é o corpo que se infiltra nos lugares, multiplicando funções: ele entra no hospital vestido de médico para fotografar corpos necrosados, forja ser especialista em sistemas internacionais de tráfego, torna-se o apresentador das reconstituições dos acidentes.
Os demais personagens orbitam em torno de Vaughan, como um companheiro de jornada, sem ter a certeza do que virá, mas apostando na força da colisão. Suas peles são marcadas por cicatrizes. Alguns corpos são acoplados a próteses. A cicatriz é o vestígio da lesão, do corte e da recomposição da carne. A junção com a prótese opera outra configuração do corpo humano, ainda que, na narrativa do filme, o acoplamento com a máquina seja no limite do externo e do visível – a simbiose entre o orgânico e o maquínico ganha contornos mais complexos no contemporâneo, com integrações internas e quase imperceptíveis, como as nanotecnologias, que multiplicam as capacidades expressivas e de afecção do corpo.
Há um paralelo entre o aumento do fluxo de carros nas avenidas e as zonas de intensidade dos encontros que se sucedem. Ao mesmo tempo em que a colisão e o toque excitam, é incessante o jogo com a escopofilia: em alguns momentos, o olhar para o prazer do outro; em outros, o olhar para o desfigurado e para a morte (os carros com aço retorcido e vidros estilhaçados; as imagens dos cadáveres nos acidentes históricos). Diferentes gozos colocam em movimento subjetividades heterogêneas, que se permitem viver em rotas que se cruzam e se chocam.