Por Kênia Freitas
I
No enquadramento o olhar de Dorothy. Olhar frontal para a câmera, mas não endereçado ao espectador. Dorothy olha com intensidade para além da câmera, que o contraplano logo nos revela como os detalhes de um pôster. Na imagem observada a mulher angolana que segura o filho em um braço e a arma com o outro. Indo de um lado para o outro do cômodo e colocando-se na frente da imagem, Dorothy parece querer desvendá-la – e, pela frontalidade do olhar da guerrilheira, ser simultaneamente desvendada.
Na montagem do filme de Haile Gerima plano e contraplano, no entanto, não se equivalem. Dorothy não quer ser fixada. A agência do transe e da identificação é sua. Depois do plano fechado no olhar fixo, a câmera se afasta para o plano americano que situa Dorothy em sua casa e na sua possibilidade de questionar a imagem andando de um lado para o outro. Mais do que um contraplano, a câmera torna-se uma subjetiva da personagem. A imagem colada na parede é então mais uma vez recortada pela investigação de Dorothy: da lágrima nos olhos para a arma e de volta aos olhos.
Close nos olhos fixos de Dorothy. Ao lado, detalhes do pôster.
A investigação da imagem é interrompida por sons que vem de fora do apartamento. Dorothy corre então para observar pela janela o que se passa na rua. A câmera assume mais uma vez o olhar subjetivo de Dorothy para a cena: um homem negro algemado é conduzido por um policial branco que o empurra. O homem grita para que o policial pare, enquanto tenta afastar-se do policial. Sem hesitação, o policial atira e mata o homem algemado. Dorothy fecha os olhos em desespero e chora.
A montagem mais uma vez joga com uma falsa equivalência entre Dorothy, que observa, e a cena observada. Mas dessa vez, Dorothy quem não terá agência diante do testemunho da violência policial.
II
Além da mãe guerrilheira angolana (a Bush Mama que intitula o filme), outro pôster está colado na parede do apartamento. As imagens foram levadas por Angi, a adolescente que frequenta as manifestações do movimento negro e amiga de Luann (filha de Dorothy). O outro cartaz é de um homem negro morto pela polícia de Los Angeles alvejado com 25 tiros. Ao mostrar o pôster para Luann, Angi conta as marcas de tiro no cadáver. A contagem, o pôster e a violência sofrida pela comunidade negra e pobre de Los Angeles oscilam entre o insuportável e o natural no tratamento do filme.
Pôster do homem assassinado com 25 tiros pela polícia de Los Angeles.
Não há gratuidade na violência representada e construída por Gerima. Da não linearidade da narrativa ao papel fundamental do som sobre as imagens (reiterando essa não linearidade pela repetição e sobreposição de vozes, ruídos urbanos e a trilha sonora), passando pelas elipses entre os acontecimentos, o filme não se esquiva da representação da violência sistêmica sobre a carne negra.
II.A
Frank B. Wilderson III defende uma diferença entre carne (flesh) e corpo (body) ao falar do tratamento da violência em Bush Mama. O corpo diz respeito apenas aos policiais brancos, a carne às pessoas negras. O primeiro ocupa uma posição de sujeito e o segundo de objeto. Considerando a experiência negra diaspórica pós-escravização a partir do prisma de uma morte social (Orlando Patterson), a posicionalidade negra em sociedades de supremacia branca e de racismo estrutural é a da não humanidade – a de objeto.
Isso não significa que a carne (os personagens negros) não possam ter eventualmente agência da violência no filme. A sequência final de Dorothy assassinando o policial branco após encontrá-lo estuprando Luann, representaria uma ação da carne sobre o corpo. O que a diferença dos termos coloca é uma assimetria irreparável (dentro e fora da representação) entre carne e corpo no domínio da violência.
O filme de Gerima aponta para essa impossibilidade de simetria ao inverter a sequência dos acontecimentos finais. Vemos primeiro Dorothy presa, apanhando brutalmente ao não assinar a confissão deturpada do assassinato do policial. O sangue no chão denuncia que o aborto tão reivindicado pelo estado via assistência social, foi concretizado pela violência policial. E, só depois, veremos o momento em que Dorothy chega no apartamento para encontrar Luann sendo atacada, reagindo furiosa contra o policial e o matando no local. A desordem importa.
III
Além da não linearidade entre as sequências, opera na montagem do filme as elipses entre os acontecimentos. Isso reforça a assimetria e também quebra o efeito imediato entre causa e consequência da ações das carnes e dos corpos.
O momento mais emblemático dessa descontinuidade acontece quando TC, o companheiro de Dorothy, arranja um emprego. Em uma cena acompanhamos Dorothy e Luann orgulhosas na janela o observando partir para o trabalho. Na próxima, vemos TC sendo conduzido por um guarda dentro de uma penitenciária até a sua cela.
Dorothy e Luann observam TC pela janela. TC é conduzido pelo guarda na penitenciária.
Neste momento não trata-se mais de uma assimetria de agência entre Dorothy e o que ela vê (como na sequência do pôster da Bush Mama). Mas de uma inequivalência entre o que ela teria visto e a continuidade do filme. E em um filme que não se esquiva das imagens traumáticas, essa elipse desmonta uma expectativa na narratividade e na representação como reorganizadoras das assimetrias (dos olhares, da carne e dos corpos, da distribuição da violência).
IV
Essa estratégia de montagem (não linear e fragmentada) alinha-se com uma recusa de Gerima de construir o filme como espetáculo ou como uma narratividade ilusionista. O filme pode então falar diretamente para a câmera e interpelar os espectadores.
Um desses momentos é a leitura da carta enviada por TC para Dorothy de dentro do presídio. A carta começa a ser lida em voz alta por Angi dentro do apartamento de Dorothy. Logo o filme se desloca da casa para a penitenciária, da voz de Angi para a do próprio TC, que fala encarando a câmera. A câmera no entanto logo inicia um travelling lateral percorrendo as selas de outros homens negros presos ao lado dele, enquanto continuamos a ouvir a sua voz em off falando pela carta.
TC atrás das grades fala pela carta com Dorothy. Ao lado, os vizinhos de cela.
Nessa cena a centralidade da violência do encarceramento sobre a carne de TC é reconfigurada. O seu discurso militante sobre a tomada de consciência sublinha uma ideia de coletividade imageticamente construída pelo travelling entre as celas.
Essa coletividade atravessa o filme como um todo. Assim, se violência estrutural sobre todos os aspectos da vida e da carne de Dorothy (moradia, filhos nascidos e não nascidos, cabelo, emprego, relacionamento amoroso, amizades…) é um ponto focal de Bush Mama, a personagem é situada continuamente em uma coletividade não individualizante (de vizinhas, amigas, pessoas ao seu redor na fila dos atendimentos públicos).
O plano final do filme de Dorothy, não mais investigando o cartaz da mãe guerrilheira mas enquadrada ao seu lado, desfaz a assimetria construída anteriormente de plano (Dorothy) e contraplano (pôster). O que essa escolha de posicionamentos e deslocamentos da câmera constrói é uma possibilidade de aliança dos personagens negros como carne. O que não desfaz as assimetrias dadas entre carne e corpo na sociedade (fora ou dentro do filme), mas aposta em um realinhamento subversivo dos elementos.
Bush Mama e Dorothy alinhadas.