Por Pedro Tavares
Vida e gesto
Há uma característica na busca da neutralidade nos filmes de André Novais Oliveira: o desenho de um fosso imaginário entre o dispositivo e o que se filma. Ainda que este raciocínio esteja sempre atrelado à ideia de teatro, neste caso se faz uma entidade em suspensão na filmografia do realizador. Entre pequenas e grandes distâncias, esta tarefa matemática tende à naturalização do cotidiano filmado – outra base dos trabalhos de André, com intervenções fantásticas nos curtas-metragens e mais lineares nos longas-metragens.
Temporada é uma sequência natural deste pensamento. A rotina obrigatória de Juliana (Grace Passô) servirá como escoamento emocional e a ruminação do drama no fluxo do tempo, algo muito próximo do que foi feito em Ela Volta na Quinta (2015). A reserva se dá na função do corte e na elasticidade das cenas – enquanto Juliana conversa com uma familiar, a opção de levar o filme para outro caminho é nítida: a resposta “não sei o que te dizer” calcifica o que até então fora exibido como uma negação ao desabafo. A André interessa a maturidade de sua protagonista através da sobrevivência passiva, num pensamento geral – o de acordar, trabalhar e sobreviver desta forma, sempre com algo melhor em mente.
Em Temporada esta sobreposição leva um tempo para se apresentar e maturar como uma opção narrativa, ainda que o estado de incerteza seja um delírio interessante. Intuímos a vida como um gesto e o filme como um recorte. O horizonte está à vista da personagem e não do espectador. E como a noção de uma extensão está abortada, a rotina toma proporções curiosas como uma redução; o mesmo exercício de se encontrar um lugar – que está em boa parte dos filmes de André Novais Oliveira – se faz presente mais uma vez. O ambiente é o que faz o raciocínio expressivo, como se a relação com eles fosse a catapulta para a identificação e consideração de um conflito maior – o mercado municipal, o ponto de ônibus, centros comunitários, etc.
Como um filme mais monocórdico que vulcânico, Temporada se aproxima (ou se faz um exercício tributário) aos Gendai-Geki, em especial Ozu, com o raciocínio que se esta realidade é possível a todos, transformá-la em imagens também será. Nunca um exercício de neutralidade completo, portanto, já que até então os filmes de André, de certa maneira, não são simulações e sim de mudanças de formas. Aqui, estamos diante de uma situação muito familiar – como Hollis Frampton afirma: “Nostalgia não é uma emoção sofrida, ela é tolerada”. Este processo de cicatrização que resume o filme em descrição de uma rotina essencialmente proletária – muito se dá e pouco recebe, com a exceção do humanismo que a troca diária permite, com trocas de confidências e suporte emocional -, é potencializado pelo caráter observacional de André, incluindo o já citado fosso entre câmera e personagens, além dos longos planos e do dispositivo fixado, imutável e que raramente cede à tentação de ser ligado diretamente ao fílmico com movimentos e a noção de quebra do real.
De certa maneira Temporada flutua entre o discurso atual de empoderamento e calcificação da possibilidade de uma mulher viver só e gozar da plenitude. Por outro lado abraça um conceito atemporal e universal sob um olhar elementar sobre sua personagem, o que é contrário a grande parte do que se faz hoje no cinema brasileiro contemporâneo – muito mais uma ficção do espírito que um grito da carne.
Visto no 51º Festival de Brasília.