Dos autores e dos casos clínicos
Por Felipe Leal
Alguns filmes fedem a seus autores. Não se confunde um Haneke, uma Chytilová, um Linklater ou um Naruse, sejamos francos. É mais que uma marca; talvez uma questão persistente ou quem sabe um conjunto de signos totalizantes fora de nosso alcance, mas que invariavelmente se imprimem. Outros filmes, ainda, são quase que produtos de uma cissiparidade das moléculas do próprio autor: pode-se dizer que são quase ele, não fossem as diferenças de meio. Apesar da linguagem um tanto figurada, isto não é um exagero, e pelos mais variados motivos, que costumam variar da defesa ideológica ferrenha ao ensaio performativo de si, alguns indivíduos fazem da subjetividade que lhes é singular e de um fora que é a técnica mais propícia de si um poderoso dispositivo de descobertas vibráteis. Tampouco essa parcela de linguajar deve parecer abstrata: o que quer que exista na arte e que ainda não a fez se tornar toda um círculo cancerígeno de esferas ego-cêntricas separadas é o seu poder de ecoar num corpo (vibrar, desvelar), sendo a alquimia dos que “melhor” a “fazem” um enigmático estudo do si diante/para/a despeito/impreterivelmente do/o/ao outro.
Nosso caso, se mostrará, é infinitamente mais mesquinho. Um desses motivos para elencar o objeto em questão como essa colisão entre autor e seus espelhos-crias rugiu sem timidez à introdução de Abaixo a Gravidade (2018), a ocasião sendo a pré-estreia nacional do filme num pequeno palco de Belo Horizonte, ironicamente no interior do Cine Humberto Mauro, que se um dia já foi acusado de regurgitar preceitos morais sobre suas histórias, ao menos narrou diante dos deuses. Mas sobre essa anedota vivaz falaremos em breve.
Em princípio, nada surpreende ou se encrespa num relevo que agite o típico plano misto entre a dormência da câmara escura e a excitação iniciais. Já o vimos dezenas e dezenas de vezes, uma câmera rodopiar, sobreposições vistas de baixo se misturarem, vozes aludindo a um excesso prévio àquele devaneio, o personagem revira os olhos (deve olhar sempre para cima, segundo a tábula básica do transe) e, ao menos narrativamente, porque em estilística de tela nossa submotricidade responde bem, algo foi feito: se alguém aqui surta, isto que vemos deve ser um porvir. Há, então, uma queda, e é ela que acompanharemos. Curioso que exista uma outra anedota advinda do continente americano e que diz Pulp Fiction (1994) ter inaugurado o bloco inicial de uma obra como prelúdio-ruptura temporal entre futuro-presente. Mas se o assalto “any of you fucking pricks move, and I’ll execute every mother fucking last one of you”, seguido de Dick Dale and His Del-Tones, enquanto anedota, faz rir aqueles que assistem à crítica buscar origens e partidas aos eventos cinematográficos, comparado à engenhoca temporal de Edgard Navarro, segundo a qual apenas extraímos que o porvir é tosco e faz seguir um presente ainda mais incompreensível, é como colocar Federico Fellini e Miguel Falabella numa balança. Ninguém nunca ousaria supô-lo.
Everaldo Pontes, que nos seus mais de vinte e cinco títulos, não importando o grau de acompanhamento de todo o resto da obra, sempre foi uma força da natureza, torna-se aqui uma presença pura. Maravilhosamente xamânico, mas como que reduzido a um eco; uma carga reprodutora de iconicidade particular pela tensão de seu físico, mas que não deixa de produzir por outrem, em nome dele. As pistas já foram entregues, a anedota, ainda tolhida. Então, uma confusão se segue e permanece. Dividido num aparente binômio miserabilidade-epifania-sofrimento/abundância-egocentrismo-boa vida, e só “aparente” porque tudo de fato insiste em se embaralhar, Bené (Everaldo) é o asceta perfeito. É digno de destaque: ele mal precisaria abrir a boca para chafurdar num enunciado mais comercial que a bandeira de seu autor pode suportar, não fosse seu filme um certo atestado de um delírio preocupante. Em suas estantes, Osho, em sua mesa, cestos, paladar, ações, relações, tudo é melancias, leguminosas orgânicas, yoga, caridade. Mas eis que não, não basta que tudo já esteja explícito. Cai-se na própria armadilha, e com a boca arreganhada: os diálogos parecem impressos de uma pós-sessão de Reiki ou culto espírita ou evangélico – nunca se sabe bem, a suspeita é que ele de fato seja um comercial da Benetton –, ou melhor, um cartão-postal vivo de qualquer dessas manifestações espirituais. E por que não, se também a trilha sonora, uma vez compilada, bem seria o melhor tracklist da heterogeneidade brasileira para se importar ao exterior?
Quase a absoluta (do filme inteiro) plenitude de quase todas as cenas – veja bem, agora não do efeito de todo das cenas do filme, mas do interior completo, minutagem cronometrada, de cada uma destas cenas – é infestada de um arranjo musical desfilando como perfeito acompanhante do espírito da vez. Há uma embalagem clara e vital, e nos dois primeiros sentidos que a palavra pode suscitar. Se ele (sempre Bené, sempre Navarro, sempre Deus) faz um despacho, irrompem as vozes de mães-de-santo e a batucada (?) em volumes lancinantes e mixagens respiratórias, porque o falatório sagrado decorado também precisa de espaço sonoro; quando pratica técnicas asiáticas, os címbalos e cítaras tremulam até os interiores de igrejas (?). A qualquer momento um axé poderia ter rasgado o ar nas ladeiras de Salvador, e não teríamos nos surpreendido. Só que o mundo de Navarro é perfeito além disso, ele se lhe espelha numa precisão assombrosa, tanto em montagem quanto em cálculo teórico. Cortinas de um apartamento luxuoso ascendem e revelam uma imensa favela de camadas e contornos. É o apartamento de MYSELF, apelido de seu psicanalista, que por sinal fala conosco diversas vezes, “de saco cheio” e berrando improprérios (palavrões!!!) à câmera, um genioso ato de quarta parede e de irritação.. cênica? com o analisado.
MYSELF surge quase literalmente do nada, complemento desse mundo cristalino de todos os ricos que são necessariamente ególatras e dos pobres que são precisamente miseráveis, artistas inevitáveis e, claro, alvos do coração caridoso de Bené e da câmera “antropológica” de seu autor. O que une os polos desse mundo problematizado é, pasmem, o dinheiro, esse demônio que uma vez extraído do mundo nos pulverizaria de todas as moléstias (suma, McDonald’s!), mas também, pasmem, as calças e fraldas com um filete de excreção. Sim, por um fino subtexto de próstata e doença, a epifania encontra seu signo em derrières: os vovôs se sujaram. A este ponto de, digamos, projeção – perigoso não cair em duplos, logo quando eles seguem agora -, de uma narrativa que, a bem da verdade, espelha sua tese e personas de maneira simetricamente estruturada, e por isto inocente, a este ponto, se o espectador não engoliu uma porção estranha de incongruências e misturas e não introjetou para si que tudo que é dito precisa ser urgentemente mostrado, e vice-versa, ele certamente já supôs, e o fará ainda melhor diante da anedota um tanto dúplice que agora deve ser reproduzida do modo mais fiel, mesmo porque curto, ele já supôs, enfim, que Bené e todo o seu horizonte/eixo possível de ações e representações é um manifesto límpido e afetado do próprio Navarro. Não perdamos tempo, então, com o penoso maquinário chacoalhante que vem trazer qualquer manifestação dessas mesmas diversas religiões – são dignos de cosplayers de primeira exibição. Direto às provas.
Pedido a introduzir Abaixo a Gravidade defronte ao palco supracitado, ao qual compareceu expansivo e alegre juntamente com produtora executiva e montadora, o microfone em mãos mal consegue conter um peculiar êxtase aparentemente vindo dos fundos de seu ser. Só que estamos enganados, ele se diz artista, e também diz dos artistas (dele), que “captam a energia das estrelas”. Mais que isso, ele afirma, agora a si e de si mesmo: “(sou) cavalo dos Deuses, de Exu, de Oxóssi (aponta e ergue pano da camisa, ilustrativa do último)”. Descobrimos que o artista pode (decidir) ser muitas coisas. Os turbulentos ideários de artistas concebidos por Woody Allen ficariam escandalizados com tamanha expressão e expressividade. Não se surpreendam, ainda estamos falando estritamente do filme, só que o de fora. O microfone é passado à última mulher da equipe, tão responsável e autora quanto ele, mas o artista interrompe sua fala uma, duas, três vezes, em beijos, declarações. Há de ser um caso clínico, porque ele vem de assalto para dizer que vai chorar, não consegue não o dizer, “gentileza gera gentileza” estampados na camiseta de sua persona ego-trip, todos os slogans da obra, vociferados na calmaria de um “gratidão”, se entrechocam num feixe de verdadeira iluminação, aquela dos que assistem boquiabertos. Eureka! Deve ser de fato um mistério, o lugar de onde descende o emissário para nos irradiar. Deve ser assim tão típico do artista… Mas chorar por quem? Já não é mais complexo ter certezas. É, afinal, um espetáculo que se consiga incendiar tamanhos entusiasmos nessa usina de produção autorreflexa. Sintomas conjunturais?