Por Kênia Freitas
Há em geral no cinema narrativo ficcional um jogo de crença e descrença entre o filme e o espectador. Uma relação que passa pela grande autonomia das obras ficcionais em criarem os seus universos e os seus elementos de entrada e saída da narrativa, mas também pela capacidade destas obras de sustentarem estes universos (ao menos em narrativas ficcionais tradicionais). A Feiticeira Viúva é um filme extremamente dependente do engajamento do espectador nesse jogo de crença e que tenta sustentar essa relação pela construção da sua protagonista.
No filme, a crença está no cerne da trama: Er Hao após perder o seu terceiro marido e sobreviver de forma inexplicável passa a ser tratada como uma feiticeira pelos habitantes de sua pequena aldeia. De início ela recusa o rótulo, mas vê-se levada após uma série de acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos a assumir o papel. A sua descrença aos poucos transforma-se em crença que dá vazão a uma autoconfiança que transforma a sua vida e a das pessoas ao seu redor. No entanto, novos acidentes, confrontos e acontecimentos estranhos mudam novamente as relações de poder, condenando por fim o destino de Er Hao.
O filme no entanto é bastante questionável na forma em que se relaciona com a sua protagonista. Logo em seu início há uma cena de estupro de Er Hao filmada do seu ponto de vista. Simulando a visão da personagem no momento da concretização do ato, o filme nos mostra uma tela preta (como se ela estivesse de olhos fechados ou com vista obstruída). A cena é rápida e não mostra no quadro nenhum contato violento. Há ao longo de todo o filme a expectativa de que esse início resulte em algum pagamento, alguma resposta, alguma consequência na trama. No entanto, isso não acontecerá. A cena serve apenas para somar-se as desgraças que deveriam transportar o espectador para um estado de espírito abalado da personagem (efeito que também não se constrói dessa forma). Há um desencaixe enorme entre a violência psicológica e física que a cena sugere e o tom fabular despreocupado que a narrativa adota.
Um efeito semelhante acontece no final do filme, quando após uma série de desventuras Er Hao decide por se autoimolar – um desfecho recorrente para o destino de uma feiticeira. Para além do óbvio da escolha, é mais uma vez uma decisão pouco corajosa da forma de assumir a dor e o destino de sua protagonista: vemos uma cabine de madeira na qual Er Hao acabou de entrar queimar em chamas de forma lenta enquanto os créditos do filme começam, sem jamais vê-la novamente. Mais uma vez uma cena extremamente violenta é filmada de forma a não incorporar essa violência como imagem, mas apenas como efeito da trama. O filme segue limpo de qualquer sangue, mas requerendo uma cruel punição da sua protagonista como preço. Há em A Feiticeira Viúva uma descrença na sua própria narrativa, que se reflete nas imagens que o filme não tem força para sustentar ou assumir consequentemente.