Por Virgilio Souza
O Indie Festival, que passou por Belo Horizonte e segue em São Paulo até o próximo dia 30, chega ao seu 15ª ano apresentando uma seleção de filmes de diversas nacionalidades. Esta é a primeira parte de nossa cobertura, na qual comentamos filmes da Mostra Mundial. A programação completa pode ser conferida no site oficial do evento.
Eu Sou Ingrid Bergman (Jag är Ingrid, 2015), de Stig Björkman
Faz todo sentido a tendência recente do Indie de programar filmes mais convencionais sobre figuras acessíveis em suas sessões de abertura — o escolhido do ano passado foi Nick Cave: 20.000 Dias na Terra. É uma forma de trazer o público para o festival, encher salas e oferecer um convite para outras descobertas. No caso deste documentário, incomoda que Björkman se valha de um acervo quase inesgotável de material, entre fotos, vídeos caseiros, cartas e depoimentos, para produzir um longa chapa-branca, dedicado mais a justificar questões controversas da vida da atriz do que a qualquer outra coisa. Permeando o panorama de sua carreira, há uma lógica muito clara de seguir cada polêmica com um aparar de arestas explícito, sustentado no mais inofensivo (e homenageativo) dos posicionamentos — ainda que muitos desses temas sejam datados, como as relações extra-conjugais e a forma de lidar com a imprensa, e suas defesas, tão desnecessárias quanto quadradas. Os melhores momentos derivam da relação entre a biografada e a câmera. Por que ela gostava tanto de filmar e ser filmada? Em que medida as lentes representavam sua aproximação com a família? De que forma seus registros visuais se relacionam com os relatos escritos enviados pelo correio, confirmando ou alterando a percepção sobre eles? Felizmente, essas dúvidas ocupam espaço considerável no filme e, em ampla medida, evitam que essa seja apenas mais uma obra de reverência absoluta, ainda que não necessariamente desmedida.
Contando (Counting, 2015), de Jem Cohen
O mais interessante sobre a relação entre Jem Cohen e Chris Marker, aqui, é notar que o primeiro, o diretor, investe muito mais na subversão da narrativa clássica do que o segundo, sua principal inspiração e referência formal. Espécie de diário de viagens do cineasta, Contando é uma colagem de imagens coletadas ao redor do mundo que permite as mais variadas aproximações, das quais duas me parecem mais interessantes: uma dimensão essencialmente política e outra memorial.
O filme passeia de cidade em cidade ao longo de 15 curtos segmentos, e o vínculo entre eles de imediato não parece muito evidente. Pontualmente, Cohen direciona o discurso se valendo de breves vozes e trechos literários. Há também elementos recorrentes que sugerem um fio narrativo de natureza temática. O componente político se faz perceber em trechos focados nos protestos contra o racismo e a violência policial nos Estados Unidos, nos movimentos contra o governo na Turquia, nos reflexos de nova-iorquinos que são gravados pela Agência Nacional de Segurança enquanto usam seus celulares, no olhar cômico sobre os sósias de líderes russos em Moscou, entre outros.
A sensação é de que, por um lado, há grande liberdade no que diz respeito às associações possíveis entre tais eventos e, por outro, a força dos registros cria uma espécie de prisão, como se qualquer impressão estivesse necessariamente ligada àquelas imagens, mais até do que ao contexto já conhecido. A forma imprecisa como a mediação dessas imagens ocorre parece fazer o filme perder potência em prol da abstração, evitando trabalhar suas reflexões críticas de modo mais direto — uma dinâmica que Marker controlava mais firmemente, dando maior ênfase à aproximação entre estético e político, como em Le fond de l’air est rouge e na série de documentários que retratava questões dessa natureza no Chile, Brasil, República Tcheca e França.
A diferença constatada não é necessariamente negativa. É possível imaginar que o filme evita a frontalidade por tratar de coisas ainda muito vivas e instáveis, hoje mais ligadas a uma identificação individual do que a uma percepção coletiva já consolidada. Ao adentrar os protestos de negros estadunidenses que repetiam o “I Can’t Breathe” de Eric Garner, por exemplo, Contando parece refletir sobre os novos movimentos de direitos civis com uma abordagem que mais se adequa a esse tempo e circunstância, quando a informação parte de todo lugar e vozes antes silenciadas agora questionam ordens há muito incontestáveis. Em ampla medida, o que Cohen faz é uma compilação de fragmentos, não um filme-ensaio, e a forma de encarar tais pontos é mais tangencial e difusa que a de Marker ao discutir colonialismo em filmes como As estátuas também morrem, no início de carreira, se aproximando mais de narrativas mais fluidas, como Sem Sol, o que torna mais evidente a importância do deslocamento temporal e geográfico.
A câmera está sempre em trânsito, por aviões e trens, idas e vindas. Há um senso de não-pertença permeando boa parte dos capítulos, mas os retornos seguidos a Nova York dão a entender que ainda existe um lar, e é nos momentos em que o realizador volta à cidade que o filme passa a desconstruir mais do que contemplar. As demolições de prédios antigos, que ocupam um dos quinze segmentos, sintetizam uma ideia de melancolia que se faz presente dentro e fora daquilo que resiste em ser chamado de casa, e a observação parece ser a única forma de construir algum senso de identificação e memória.
O Paraíso (Le Paradis, 2014), de Alain Cavalier
Em seu mais recente trabalho, um já envelhecido Alain Cavalier retorna à infância. O Paraíso é um diário/retrato que busca contar e recontar histórias e questionar coisas que causaram inquietação ao longo de toda uma vida. A esperança é de que as respostas, se é que elas existem, estejam em algum lugar do passado. Nas mãos de um realizador que já fez filmes sobre a morte dos pais (Le Filmeur) e a esposa falecida trinta anos antes (Irène), o resultado serve para estreitar ainda mais a fronteira entre ficção e documentário ou, como ele afirma, misturar a primeira e a terceira pessoas.
Cavalier, que se define como um filmador e não um diretor ou documentarista, trabalha somente com a própria câmera. O método solitário de registrar o cotidiano talvez o tenha condenado às margens do cinema francês, embora ele não pareça se importar muito — principalmente com rótulos (“A Nouvelle Vague foram dois filmes, nada além disso”) — e a atenção crítica tenha se mantido mais ou menos constante ao longo das últimas décadas. Nesse sentido, O Paraíso se põe a refletir também sobre o próprio cinema, “essas imagens loucas” que eternizam pessoas e momentos, não mais importando o passar do tempo fora da tela. De maneira curiosa, as grandes figuras se engrandecem porque reduzidas a simples indivíduos registrados em câmeras, como o resto de nós. É de se admirar uma postura que valoriza a intimidade e não idealiza atores ou personagens, partindo de alguém que trabalhou com vários dos principais nomes da indústria em seu país, como Catherine Deneuve, Alain Delon, Romy Schneider, Jean-Louis Trintignant e, recentemente, Vincent Lindon.
Também se mostra fundamental nesse processo de filmar o comum a universalização do digital, que assegurou a ele maior independência financeira e criativa. O retrato de um cotidiano deixado para trás e a busca de referências para entender a vida (e o cinema, parte dela há tanto), invariavelmente seguem em direção a aspectos absolutamente pessoais. O procedimento, então, é de reorganizar as ideias mais básicas e transmiti-las com semelhante simplicidade. Aqui, Cavalier se vale de dois elementos principais para recriar os aspectos fundadores de sua trajetória e personalidade: a utilização de objetos domésticos e a narração em off. Um robô, um pato de brinquedo e itens de cerâmica, entre outros, servem como base para que o filme narre histórias como a crucificação de Cristo — como uma criança curiosa o faria, usando o que estivesse à mão.
A voz que se ouve, por outro lado, é questionadora e muitas vezes incisiva, porém mantém certa consciência da própria ignorância. Conta sobre o primeiro contato com uma hóstia, por exemplo, mas não se limita à breve narrativa — coloca ao lado dela um lápis e, se dirigindo ao espectador, explica querer “mostrar o tamanho para aqueles que não conhecem”. Em momentos como este, quando se unem com propósito reflexivo som e imagem, documental e ficcional, íntimo e universal, primeira e terceira pessoas, O Paraíso parece inventar uma nova gramática.
Poeta em Viagem de Negócios (Shi ren chu chai le, 2015), de Ju Anqi
É fascinante como Ju Anqi cria um road movie solitário em que a autodescoberta é mais consequência tangencial do que motivação original, em especial porque seu filme trabalha de modo muito consciente a subjetividade do protagonista, evitando cair em filosofismos. O deslocamento do rapaz pelo interior da China é matéria-prima para os dezesseis poemas que segmentam a trama. O escritor embarca em viagem de negócios não somente atrás de uma inspiração romântica e idealizada, como também em busca de experiências que, aqui, não precisam ser necessariamente emblemáticas ou significativas. A poesia por vezes deriva das vivências mais banais, segundo um entendimento de que a simplicidade também gera reflexão e beleza — “eu recebi uma joia / eu vi na joia uma luz”, nesse sentido, é um par de versos bastante impactante.
O aspecto central é que não se trata de uma narrativa de grandes eventos. Ao contrário, o que se vê é uma sequência de dias quase triviais, a despeito da distância de casa e das novas fronteiras a cruzar. Há mais atividades ordinárias do que ações propriamente ditas. O jovem poeta é registrado tomando banho, pegando carona, bebendo e contratando prostitutas, como se retornasse sempre a seus vícios e obrigações, mesmo inserido em uma jornada libertadora. A câmera o encara em espaços muito pequenos (o pequeno apartamento alugado, os bancos apertados dos ônibus, os banheiros na beira da estrada), e a janela reduzida, em 4×3, permite compreender o sentimento de confinamento do rapaz mesmo frente à vastidão daquela massa continental.
Finalmente, a nota negativa são os segmentos que sugerem alguma forma de encenação, quando a câmera é fixada e a montagem organiza espacialmente as cenas se valendo de cortes sequenciais. A dinâmica de espontaneidade parece funcionar melhor quando o olhar do cineasta mantém certo distanciamento do personagem, se aproximando somente quando o foco se volta para a poesia, seu objeto comum.
Necktie Youth (idem, 2015), de Sibs Shongwe-La Mer
Espécie de meditação juvenil sobre a geração pós-apartheid em Johannesburgo, o filme se constrói como um mosaico de impressões um tanto desconexas sobre passado, presente e futuro. É estranho que o autor busque forçar um vínculo entre seus personagens a partir de uma tragédia pessoal — um suicídio — quando o laço geracional comum é tão forte. O que transborda dos relatos com relação à cidade e a vida em uma sociedade ainda segmentada interessa mais do que os surtos agressivos e os momentos de absoluta passividade de jovens ricos e alcoolizados, filhos de quem enriqueceu sob/a partir da mesma segregação ou mesmo antes dela, registrados em um farsesco tom documental. Nesse sentido, é possível extrair algumas ideias básicas: aos vinte e poucos anos, eles são capazes de enxergar aspectos positivos mais facilmente no distante passado imperial do que no fim do regime recente, porque “há duas décadas é tudo uma merda”. Existe uma nuvem de alienação encobrindo tudo isso, que só se dissipa nos raros trechos em que a vaidade e o cinismo, próprios desse olhar pós-adolescente, dão lugar a expressões mais naturais, com um rastro de otimismo sobre os tempos que virão.