Código de Sangue (Malcolm Venville, 2009)

Por Virgilio Souza

Existem dezenas de elementos para explicar o fato de 44 Inch Chest (lançado timidamente em home video como Código de Sangue) ter sido absolutamente ignorado desde seu lançamento. Ao mesmo tempo, há uma série de razões para que a obra sobreviva, sendo possível crer na sua redescoberta por uma parcela da crítica, mesmo que pequena, mais interessada no que os responsáveis pelo roteiro do elogiado Sexy Beast podem oferecer. Também escrito por Louis Mellis e David Scinto, o filme explora o mesmo universo genérico de crime e violência, mas investe em traços que o tornam um corpo estranho, distinto e fascinante. Se no longa anterior da dupla interessava mais o olhar de Jonathan Glazer, ligado a um trabalho muito cuidadoso de composição e cores, aqui parece haver uma rejeição à estilização por parte de seu diretor, Malcolm Venville, no que configura uma decisão de incorporar o caráter direto e objetivo da trama ao seu aspecto visual. Há um entendimento de que emoções e tensões estão inscritas nos movimentos do corpo, o que direciona a atenção à linguagem corporal de uma maneira bastante crua, dada pela observação constante dos personagens, buscando os pontos de harmonia e desarmonia entre postura e fala.

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Nesse sentido, o que se vê é uma espécie de ensaio, quase teatro filmado, construído através da simplicidade da locação única e de movimentos quase invisíveis de câmera, deslocados apenas na montagem, que provoca saltos de planos abertos em direção aos rostos para explicitar os momentos de maior intensidade em seus discursos. A reunião do quinteto de sujeitos ocorre também sem desvios, estabelecida em não mais que um par de cenas: Colin (Ray Winstone) é traído pela esposa e seus amigos mais próximos decidem ajudá-lo sequestrando o amante, um garçom anos mais jovem. Mais do que promover um estudo de personagem ou das circunstâncias, o filme se dedica a explorar seus arquétipos e suas reações ao evento central e à desgraça do protagonista. Meredith (Ian McShane) e Peanut (John Hurt) divergem em postura e tom, como duas faces de uma mesma moeda. São ambos verborrágicos e descritivos, mas variam entre a serenidade e a brutalidade — o fato de serem, respectivamente, homossexual e homofóbico é um dos componentes desta dicotomia. Archie (Tom Wilkinson), um coitado que vive com a mãe, é instrumental tanto para o acesso de raiva do protagonista quanto para dimensionar sua tragédia. Finalmente, Mal (Stephen Dillane) se porta como a versão aproximada do rapaz que arruinou a vida de Colin, um homem charmoso, sedutor e que, no limite, poderia vir a ser uma ameaça.

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De certo modo, o filme se distancia de seus pares, sobretudo de Guy Ritchie e cia, por investir na urgência do texto em vez de se dedicar a uma estilização espertinha e outras pirotecnias visuais. Guardadas as devidas proporções, a forma como os cinco interagem remete a uma versão britânica e mais frontalmente agressiva de Cormac McCarthy, que indica de partida a possibilidade de explosão e passa a lidar com a agonia da espera por todo o tempo que resta. A catarse, porém, não ocorre por meio de trocas de balas ou golpes, mas também através do discurso, sempre enunciado em um tom mais elevado: Winstone e Hurt emendam dois monólogos absurdos sobre o significado e os riscos de amar uma mulher (o primeiro diz que “Love can be murder”, enquanto o segundo afirma, ao seu modo, que Sansão perdeu tudo por causa de Dalila — “all because of a woman”).

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Essa crescente em direção a um ponto alto que se estabelece aquém do grau de violência que o texto parece indicar talvez seja o maior mérito de Mellis e Scinto, pois permite pequenos instantes de grandiosidade em meio a uma estrutura bastante controlada. Venville, por sua vez, é hábil ao se valer do gesto bruto e silencioso, não necessariamente exclamativo, em um filme tão dependente do diálogo. O poder do gestual observado sem distrações e firulas de câmera cria um segundo filme, que frequentemente reforça, mas por vezes subverte, o que é dito em voz alta. Deriva daí este outro nível de análise, em que não importam somente os jogos de palavras, mas também a relação entre eles e os corpos, o que torna fundamental a movimentação, a postura e os fluxos de entrada e saída dos atores de cena — uma teatralidade explícita e muito bem construída a serviço do cinema.

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