Por Filipe Chamy
Todos percebem com imediato reconhecimento os elementos teatrais deste derradeiro longa de Alain Resnais: as entradas e saídas de cenas efetuadas pelas personagens, algo de sua movimentação (e os planos e contraplanos e como eles falam), os cenários minimalistas, as separações bastante distintas entre episódios (atos, cenas); mas, ainda que se trate de mais uma adaptação que o cineasta dirige de seu querido dramaturgo Alan Ayckbourn (após os excepcionais resultados obtidos em Smoking/No smoking e Medos privados em lugares públicos), não nos podemos deixar enganar pela superficialidade da constatação dos gêneros e dos temas de uma filmografia que, por mais que declare abertamente sua fascinação, inspiração e influência por campos como quadrinhos e teatro, é sempre cinema.
A primeira diferença: as cortinas não dão para um palco, mas para a vida. As personagens aqui encenam uma peça que em verdade tanto importa pouco a eles quanto a ensaiam menos que suas vidas. O que se esconde por trás dos panos e dos ambientes não é a falta de materialidade cênica como no teatro, mas a vibrante representação do que não há, a ausência, a lembrança e (obrigatório em Resnais) a memória.
Aí, George. A personagem que liga todas as outras e emenda os conflitos e gera ação. Não é exatamente uma nova Muriel, mas se considerarmos Vocês ainda não viram nada! como um fecho para a obra do diretor também podemos ver Amar, beber e cantar como um epílogo e portanto naturalíssima a condição de George, uma invisível força propulsora de unidade, que harmoniza tudo. É George afinal quem cria o nó e ele próprio quem permite o desenlace.
A tragédia no riso ou a total desimportância do convencional? Porque se para um marido a mulher viajar com o amigo pode ser um drama, o que resta da moralidade realista quando o amigo não se decide entre três, quatro mulheres? Isso ou diz do caráter do homem ou propõe uma nova perspectiva de análise narrativa. Os caminhos do azar, que Resnais desenvolveu em filmes gêmeos que despertam a partir da decisão de fumar ou não fumar — e não é Sandrine Kiberlain que, apanhada no flagra pela própria consciência de culpa, também tem estremecimento parecido? É George sendo um deusinho num universo que espera seu desaparecimento para ter finalmente o livre-arbítrio: decidir não ir viajar, mesmo após afirmar que sim; negar o óbvio, apenas porque se lhe parece mais adequado mentir e assim ser mais amoroso que sincero; entender as vidas que se escapam e disso extrair justamente a serenidade. Mas o aviso do anjo da morte, que é o fim de tudo, versa sobre talvez não a onisciência mas a inexorabilidade das relações.
O que se repete (a propósito: “répétition” em francês significa também ensaio) são palavras que podem ou não ser molas de interações: a dado momento, o marido indaga se a mulher atua ou está dizendo o que vai mesmo fazer; não se lembra das palavras pronunciadas, e o andar, o entoar e o pronunciar talvez não sejam tão marcadamente falsos — “o beijo não está no roteiro, mas você é a única”, quais as fronteiras entre o que se pratica e o que se declama? Não é tanto a metalinguagem da atuação, mas a metafísica das possibilidades. E onde George está doente, está mais são, pois lucidamente arquiteta as resoluções que sua doença (que independe dele) traria sem sua participação.
Diluídas em sons (a linda música de Mark Snow, recorrente parceiro do cineasta) e artificialidade (desenhos nos planos gerais, eficaz frugalidade na direção de arte), é a nobreza dos rostos em closes estranhíssimos sob fundo rabiscado e a luz das emoções sob as estações (anunciadas nos intertítulos e intuídas a cada quadro) que denotam um pouco esses disfarces que pulsam e se metamorfoseiam e oscilam entre extremos e não permitem classificação pois inclassificáveis as coisas que não possuem nome certo para rótulo.
Talvez por tudo isso Amar, beber e cantar seja pertinente. Mas não é preciso justificativa para o amor ou isso retiraria de sua própria essência a necessária irracionalidade. Alain Resnais acerta também nisso.