Rever A Cidade é uma Só?, do Adirley Queirós, a céu aberto, na Praça Tiradentes de Ouro Preto, durante a 7ª CineOP, é uma experiência particularmente fascinante. Já havia visto o filme na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro, e revê-lo não só faz a admiração crescer ainda mais, mas reforça a certeza de que é um dos filmes brasileiros mais fundamentais dos últimos anos. Tive a oportunidade de conversar com o Adirley sobre o filme e outros assuntos que surgem através dele, e reproduzo o bate-papo aqui na íntegra, com pequenos cortes de palavras, frases ou ideias repetidas e algumas correções de fala, mas preservando a totalidade da conversa.
D: A Cidade é uma Só? se constroi basicamente como um documentário de invenção, com uma criação de personagens farsescos que se chocam com a realidade. A ideia era essa desde o princípio?
A: Esse filme surgiu de um edital sobre os 50 anos de Brasília. Quando a gente o escreveu para o edital, pensávamos em um documentário tradicional, mas já com algumas intervenções para quebrar com este real. Na concepção original tinha essa pegada. Mas quando a gente foi fazer o filme notou que só aquilo que tínhamos proposto enquanto tema do documentário não daria um bom filme, então começamos a colocar intervenções com atores. Os atores, na verdade, são os caras do nosso grupo de cinema, e a partir do momento em que a gente começa a gravar e sentir que talvez o filme estava com um formato mais quadrado, chamamos duas pessoas e começamos a propor a elas situações, uma tentativa maior de intervenção.
Foi pensada então uma forma de construir uma ficção para dialogar com esta realidade que vocês queriam filmar?
É. O filme passa por uma farsa. A forma como a gente queria contar a história teria que passar por essa possibilidade de uma pessoa estar se dispondo a encenar aquilo. São personagens que são quase vilões na história. Um é um personagem que vende lotes, é um grileiro de terras, mas um grileiro de terras pobre, um cara na correria do dia-a-dia, e o outro um cara que não consegue mais estar no meio da política, esta política que está no poder. A única forma de chegarmos a estes pontos dessa forma seria inventando, ou melhor, propondo a estas pessoas que não fossem elas, mas que jogassem todas as ansiedades delas dentro do filme.
Até porque a ficção muitas vezes é uma forma ainda mais eficaz de discutir a realidade, de atingir o discurso que você propõe. Estes personagens possibilitam a você fazer alguns choques dentro do filme que me interessam bastante, como a cena final do Dildu, quando o cinema que você está inventando se encontra dum jeito impressionante com um acontecimento real. Você acha que assim consegue propor uma discussão maior do que conseguiria com o documentário?
É engraçado, porque no filme nós temos três personagens principais: dois personagens de intervenção, que são enfim atores, e uma personagem que é real. Mas esta personagem “real”, eu sinto que ela, obviamente pelas negociações feitas para o filme, porque ela sabe o que tá acontecendo no filme, mas quando ela chega para atuar a história real dela, ela acaba fazendo tudo no nível da interpretação mesmo, classicamente falando. Ela tem noção da luz, da claquete, da ação do filme. E os caras que a gente propõe para representar, talvez pela nossa amizade, porque todo mundo estava muito dentro do filme, eles estão expostos ao filme, e o sentido de interpretação vai embora. Eles acreditam que aquilo é uma história real. E isso entra numa esfera política muito rapidamente. Fazer filme em Brasília, ou melhor, fazer filme fora de Brasília, em uma cidade satélite, já é uma conquista política. À medida que a gente coloca que o espaço político de Brasília vai muito além do planejamento do plano piloto, a gente já propõe uma discussão política. A gente queria realmente que houvesse uma discussão política no filme, queria intervir politicamente.
O próprio fato de vocês criarem esses personagens com um intuito de fazer esta discussão também já é uma posição política.
Sim, estamos tomando uma posição política e histórica da cidade. A cidade que a gente vive, a Ceilândia, é uma cidade de 600 mil habitantes, que historicamente é a primeira favela de Brasília. Campanha de erradicação de invasões. Ela já nasce esquematizada como uma grande favela. Então eu cresci tendo a cidade como uma referência negativa sempre. Quando a gente constrói estes personagens, um personagem que cria um partido político e um personagem que vende lotes, já se cria um estranhamento. E o filme foi sendo pensado assim, no final, através destas situações. Aquela cena final que ele encontra a carreata do PT, toda ela foi esquematizada. A gente sabia que haveria uma passeata, conhecemos a cidade de cor e salteado. A gente sabe horário de sol, horário de limpo. Vimos mais ou menos como seria o trajeto e propusemos à equipe e ao personagem que encontrassem a carreata naquele exato momento. Com aquela luz e aquele plano aberto, porque sabíamos que ali eles chegariam como se fosse uma nave espacial, porque a campanha é assim: ela atravessa campos de futebol, atravessa as praças, passa por cima de todo mundo. E ele, no decorrer do filme, é um cara que faz uma campanha quase solitária…
Há um choque muito grande nisso, o Dildu largando o carro sem gasolina, tendo que seguir a pé, deixando santinhos pelas casas sozinho…. e de repente topa em uma esquina com aquela carreata monstruosa. É praticamente Davi x Golias.
Justamente. E eu vejo a grande questão política do filme bem nesse sentido. Os atores não sabiam daquela cena. Aquele carro é meu, aquele Santana. É o carro que eu ando no cotidiano, e aparece em todos os filmes inclusive. E ele não marca gasolina. Então eu coloquei pouca gasolina, os caras não sabiam quando iria acabar, mas estavam alertados de que em algum momento iria acabar. A equipe estava a postos para que, se acabasse, ela mantivesse a relação de mise-en-scène. Continuamos gravando. Os atores até olham para a câmera, porque quando acaba a gasolina eles ficam de fato agoniados porque acabou a gasolina, mas quando eles veem que a equipe também ainda está filmando eles percebem que é um jogo, mas eles internalizam tudo aquilo. A gente põe os personagens pra sentir o ambiente, pra sentir o estranhamento, a agonia que é estar na cidade e ter que pegar um ônibus de manhã. Aquela cena de Brasília a gente saiu 6 da manhã no carro e ficamos rodando até 2 da manhã do outro dia. A gente encheu dois tanques de gasolina e ficamos rodando em Brasília igual louco. Tomando pouca água, comendo pouca comida, pegando engarrafamento, pegando aquelas pistas grandes…E isso começou a trazer para os personagens uma agonia muito grande. Todo dia a gente convive com aquilo, mas quando a gente se propõe a fazer uma aventura pela cidade a gente sente que ela é opressora.
O filme acaba então se tornando assim um documentário sobre a sua própria realização, o caráter documental se vê principalmente ali. É criado, mas não é encenado…
Não, não tem essa de decupagem… a mise-en-scène é justamente a possibilidade de interpretação desses personagens… O que a gente propõe é assim: a partir deste momento, você é fulano. Internaliza fulano. Pesquisa fulano. Você é fulano a partir deste momento pra mim. Então o que você faz, como você faz, como você reage com a câmera, ou como você reage com as situações que a direção e a equipe propõem, é outra coisa. Eu dava pra eles os motes e eles reagiam. A agonia surgia nesse sentido. A gente propunha situações, a gente cercava as situações, mas não tinha texto pra eles falarem. Era muito livre o texto. A gente tinha uma câmera, com dois lapelas, e dentro do carro eu fazia o som, porque não tinha espaço pra duas pessoas, era eu e o cara da câmera. O cara da câmera com uma 5D, atento com tudo. Todo filme foi assim. Eles tinham muita liberdade pra puxar as coisas. Obviamente que eu intervia o tempo todo pra falar “fala sobre isso, comenta aquilo, entra aqui…”, porque eu sabia que se entrasse à direita ou à esquerda ele entraria em uma rua mais esburacada, ou uma rua mais extensa… e deixava o personagem reagir àquilo. Mas não tinha texto ensaiado.
A criação das situações então acontecia por você, pelos atores… era um processo coletivo e com liberdade.
Era coletivo mesmo. O personagem do candidato a deputado, por exemplo, tem um discurso muito ferrenho. Tem uma cena que não usamos que é uma sequência que eu quero montar um dia, porque é uma cena muito forte, é a coisa mais linda que tem. O personagem tá caminhando e a câmera caminhando com ele por uma feira da Ceilândia, chamada Feira do Rolo. É uma feira tensa, no sentido de que a polícia dá muito em cima. Mas é uma feira muito popular. E aí a gente faz um discurso, e as pessoas começam a acreditar, e aquilo vira um cortejo. Só que a gente não conseguiu montar, porque ela era muito forte e roubava o filme. Depois disso não tinha como existir mais nada. Nem no final caberia, porque o final não poderia acabar tão over assim. E nessa cena, por exemplo, havia também obviamente as pessoas que se revoltavam com o discurso dele. E as pessoas entravam pra briga. Tem uma cena que é assim, o cara querendo brigar com ele e eu entrando no meio e tudo isso sendo gravado. A gente também brigava pelo personagem, tava de fato acreditando nele. Inclusive tudo o que o Dildu fala ali eu também acredito. O corpo a corpo no filme é esse mesmo. Existia uma relação de hierarquia obviamente, por conta da direção, mas a gente mesmo dava segurança ao próprio filme. A gente tomava as dores do personagem. O personagem do Dildu é um personagem muito forte, um personagem que se expõe muito, que é muito marcante. As pessoas não chamam mais o cara (o ator) de Dilmar, chamam ele de Dildu agora. E isso também é foda pra ele, eu acho. Ele quer seguir a carreira de ator. Ele tá comigo no meu próximo projeto também.
Provavelmente por ser um documentário as pessoas acabam guardando mesmo que é ele, que é o Dildu. Foi uma incorporação tão forte que acabou se firmando o personagem na realidade…
É! Dildu é Dilmar Duraes, 77-2-23 é o ano de nascimento dele. Ano, mês e dia do nascimento dele. Ele criou uma relação de tudo que tava ao redor dele, mas não é ele, obviamente. Mas ele traz tudo pro filme. Ele sempre traz pro filme, por exemplo, a questão racial. Ele sempre traz pro filme a agonia com os poderosos, ele tem muita dificuldade de se relacionar com o poder. E tudo isso tá no filme. E eu acho que isso é um documentário, sabe. Como nossa equipe se relaciona com o poder. Como a gente pensa o poder. Isso tudo está ali.
E é um filme que aborda não apenas os temas que se discute através dos personagens, do candidato político se largando sozinho na campanha, mas também durante isso muitas questões presentes nas grandes cidades. O problema da habitação, a segregação social, essa separação entre a periferia e os grandes centros.
Justamente. O filme vai além da gente, da nossa leitura, da pretensão de dominar o filme. A gente não domina um filme. A gente solta um filme. E ele às vezes engole a gente também. Esse filme, por exemplo, sempre que eu vejo ele eu vejo um monte de símbolos que estão ali…. ele passa na Ceilândia. E as pessoas falavam coisas que eu não imaginava que elas iam falar. O X do personagem, ele andava com a camisa que tinha um X, que é relacionado com a história que a Nancy conta. Quando teve a campanha de erradicação de invasões de Brasília, era assim: os caras iam na tua casa e marcavam um X na porta. Então esse cara tinha que sair voado, se não saísse o governo derrubava. Então as casas que tinham um X eram as casas condenadas, ou, em uma outra perspectiva, tinham sido “escolhidas” para sair da cidade. Quando a gente teve um debate com pessoas mais velhas, elas se emocionavam muito com o X, porque, minha interpretação, o símbolo era muito forte ainda. Esses símbolos que tão além da gente são muito fortes no filme. Tem muitas coisas que podem passar batido pro público comum, mas pra aquele perímetro da cidade são muito fortes.
O filme se passa na Ceilândia. Vocês têm um grupo de cinema lá, é isso? Todo mundo que fez o filme é de lá. Então existe uma leitura do espaço em que vocês inserem os personagens que é muito forte. Talvez vocês até nem tenham a intenção direta disso, mas por terem vivido lá dentro, saberem o preconceito que é ser de lá e viver em Brasília. Você acha que isso dá uma amplitude fundamental ao filme?
O meu ambiente seguro é a Ceilândia. Eu sempre vivi lá e vivo lá até hoje. Eu caminho muito pela cidade. E ela é muito contraditória, é uma cidade muito grande. Tão dizendo que em 2012 ela vai ter 1 milhão de habitantes. Então a cidade cresce muito, porque é uma cidade que, apesar de ser uma cidade de quebrada, as pessoas focam muito nela, então ela tem alguns benefícios. E ela começa a ter uma contradição agora, porque ela começa a verticalizar, então ela vai virar uma grande favela, com grandes prédios, com essa coisa da expeculação imobiliária, da explosão imobiliária. Então vai criar na cidade um novo apartheid. Aquelas pessoas que construíram a cidade, que lutaram pra cidade ficasse aquilo que é, elas não conseguem mais segurar a especulação. Porque chega um cara por exemplo com 500 mil reais e compra a tua casa. Daí você vai pra outra favela, que é Águas Lindas. Então o processo continua.
A própria periferia começa a sofrer esse processo de verticalização e criar patamares de poder e segmentação dentro de si…
Na cidade agora o que é mais clássico são os condomínios fechados. Aí tu imagina, um condomínio fechado com apartamento que vale R$ 200 mil. Aí começa, na minha leitura, a criar esses guetos e a cidade começa a ficar mais tensa. Porque é os moleque doido fora dos condomínios e os condomínios com as pessoas da classe média.
É uma leitura das cidades modernas que o Fritz Lang fazia lá em 1926 ou 27 com o Metropolis, com os poderosos habitando os andares mais altos e a classe trabalhadora lá embaixo. Isso é uma consequência da própria estrutura do poder, não é?
É verdade. E como a gente queria falar sobre isso… a gente não queria falar de uma forma didática. Queria falar com isso na pretensão do cinema. Cinema é fotografia, é som, é ritmo… Então a gente queria fazer isso com muitos planos abertos, numa perspectiva quase de filme de faroeste, de filme de bang-bang, que são os filmes que estão no nosso imaginário de adolescente da cidade. Então a gente usa muito esses planos abertões e [lente] grande angular, que dá uma tensão… e a cidade sempre presente. O filme que a gente tá fazendo agora, é um documentário mas também é uma ficção científica. Estamos filmando por trás da cidade. Porque a Ceilândia é assim, a gente sempre tem uma perspectiva de frente, porque as vias só passam em frente. Então mesmo as quebradas em frente é tudo muito arrumadinho, mas por trás dela é quebrada de favela mesmo. O que a gente faz, na verdade, é filmar a cidade lá por trás dela, nessa perspectiva de ficção científica. A cidade fica muito mais tensa, mais opressora, grandiosa. E eles queriam que [em A Cidade é uma Só?] a gente contasse essa história da redenção, a história do governo. A cidade é legal, a cidade é isso e é aquilo. A gente conta a história da cidade pela história dos caras da correria. Não são os caras que são servidores públicos, são os caras do corre. Então isso dentro da cidade às vezes causa estranhamento. Às vezes falam “pô, você conta a história da cidade, por esses caras que não construíram a cidade” — na cabeça deles. Como não construíram a cidade? Eles queriam que a gente contasse uma história edificante. “Ah, fulano de tal chegou em tal ano, foi um lutador….”. E foi mesmo. Só que hoje eles, na minha leitura, representam certo atraso. Assim como eu daqui cinco anos provavelmente vou ser um reaça também. Acho que a idade com o tempo joga a gente nessa coisa do reaça. São caras fantásticos, são meus amigos, mas eu não quero mais contar a história através da perspectiva deles. Eles narram a história de maneira que parece que a cidade se resolveu. Mas ela não se resolveu, não resolveu nada. De repente se resolveu pra mim, que tô podendo fazer um filme, tô viajando… mas pra maioria das pessoas não se resolveu, cara. Não dá pra ser cínico de tal maneira. Na minha modesta leitura o documentário tradicional caminha pra esse lado.
Os documentários mais tradicionais geralmente são montados através das lembranças dos personagens, e as pessoas naturalmente costumam lembrar das coisas duma perspectiva positiva. Ninguém quer lembrar do que é ruim.
E a gente queria fazer o filme duma forma mais dinâmica. Que a gente se representando consegue colocar assim… “Tá vendo como o diretor é filho da puta? Tá vendo como o diretor também é cínico? Como o diretor também fala merda?” E é isso… tô falando merda no filme porque eu falo merda mesmo. Não tô encenando falar merda. Porque no set de filmagem é assim, e eu sempre faço isso.
Vocês trabalham de um jeito bastante extrovertido, né? O filme dá essa sensação de que vocês estão se divertindo muito fazendo cinema. E isso contamina o filme. É acima de tudo um filme muito divertido, que faz rir muito, que propõe esse debate político através duma forma que conquista as pessoas. Isso é uma consequência também do próprio jeito que vocês encaram o cinema?
Sim, acima de tudo, pra gente cinema é diversão. A gente vai pro set e fica rindo. A gente fala muito que se não tá rindo tem alguma coisa de errado. Porque o cinema é alegria, né. É uma profissão, e a gente encara como uma profissão, que a gente vai se divertir, vai curtir e vai dizer o que a gente quer da forma mais honesta possível. Pode tá equivocado, mas é o que a gente pensa. Tem que ter verdade. Se é drama, tem que ter verdade. Se é horror, tem que ter verdade. A gente tem que falar bem assim “não, cara, isso podia acontecer. É um filme, mas pode acontecer”. A gente parte dessa premissa: o cinema tem que construir uma verdade. E essa mise en scène que a gente vai construir tem que estar lá. Pra que de repente a gente se aprimorar de técnica, de equipamento, se empoderar… porque é isso, se você faz um filme e você é reconhecido, você se empodera.. . mas pode ser problema também…
Você pode acabar se tornando reaça também…
É, justamente, o grande problema é isso: se tornar reaça e criar uma presunção. No Brasil, por exemplo, tem tanto curtametragista bom, tanto de cara bom, então fazer um longa é um privilégio. Não é porque você é pior ou é melhor. Não é igual no futebol, que você tá nos juniores e vai pro profissional. É consequência. Tem tanto cara bom aí que poderia fazer filmes melhores do que a gente faz, e a gente pode citar, como os caras da Filmes de Plástico… enfim, tem um monte de cara que tem uma puta ideia de cinema e ainda não fez o seu longa. Hoje o grande problema é cair nessa presunção de que há um patamar diferenciado entre curta e longa. Porque na essência a produção é a mesma, o que vai diferenciar é a grana, porque pra um é maior e outro menor…
Você falou que fez o filme com uma 5D. Hoje em dia a facilidade de acesso a câmeras de vídeo digitais tem proporcionado que, por exemplo, uma pessoa da Ceilândia tenha uma câmera de vídeo e possa fazer um filme de lá, não com uma equipe de produção levando seus equipamentos pra favela, fazendo um filme sobre a favela com a imagem que já tinham lá de fora. Uma coisa em comum entre o seu filme e os filmes da galera da Filmes de Plástico é que eles nascem ali no coração da periferia. Vocês tão filmando vocês mesmos.
Os filmes que eu mais me identifico hoje são os filmes da Filmes de Plástico. Não só por essa questão territorial, mas pra mim Contagem é igual à Ceilândia, tem muito a cara. Além dessa identificação territorial os filmes dos caras tem isso, a narrativa dos caras é muito rápida, é gostosa de ver. Você vê um filme como Fantasmas, é uma coisa fantástica… você ouvir o som dos caras, o diálogo deles. E isso é proporcionado também por essa capacidadede gravação, de captação. Tem o áudio e tem uma camerazinha de longe gravando as coisas. Mas é um puta cinema, um cinema fantástico. Eu acho que é importante se apropriar dessas coisas, tem que se apropriar de todos esses elementos do digital, mas não pode ficar só nisso. É outra questão que pra gente é muito complicado. Porque você ter acesso ao que há de melhor na produção é político. Se você quer fazer um filme em película, tem que tentar fazer em película. Hoje nem tanto, mas há cinco anos atrás pra você entrar em um festival grande você tinha que entrar em película. E isso é político. Hoje a gente consegue entrar com digital, mas mesmo entrando com digital você tem que pensar que o digital também tem N possibilidades. Você pode ter uma câmera mais cara, não é problema ter uma câmera mais cara.
Não se pode transformar o digital barato numa posição política de trabalho.
É, senão acaba virando uma questão que vai depor contra a gente, dos caras falarem bem assim “ah, dá R$ 15 mil pros caras da favela que eles fazem com R$ 15 mil”. Mas tem R$ 1 milhão ainda pra eles fazerem filme.
E enfim, vocês têm uma equipe pra pagar, têm custos pra bancar… O cinema é algo caro naturalmente, porque trata de encenação. A técnica de cinema é cara. Isso não é algo que vai mudar…
E como que você pode fazer um grupo se o grupo não consegue sobreviver disso? Imagina assim, até quando a gente vai ter energia pra fazer cinema como hobby? Cinema não é só hobby, cinema é intervenção política pra gente. A gente sabe que quando faz um filme a gente tá comprando briga pra sempre. Toda vez que a gente passa um filme em Brasília a gente tem uma discussão, tem uma briga, tem uma pontuada. A gente passa muito filme em universidade. E é engraçado como os caras da universidade querem encarar a gente com a perspectiva do pobre. Eles não conseguem imaginar como que a gente quer tirar onda com o Niemeyer. Tiro onda mesmo, porque o Niemeyer pra gente não quer dizer nada. Ele tem toda a história dele, tem a construção de Brasília… mas eles têm que entender que Brasília pra gente não é mãe, é madrasta. A gente não tem que ser feliz com o pai da madrasta. Não é meu avô, não tem porra nenhuma de avô, o Niemeyer. Brasília pra gente não é imaculada. Não tem que ser imaculada, tem que botar fogo naquela porra. O primeiro plano do filme é pegando fogo o mapa de Brasília. Tudo isso a gente pensou, a gente tá aqui pra agredir Brasília. Porque ao mesmo tempo que a gente odeia Brasilia, no sentido de que a gente cria um discurso pra odiar Brasilia, a gente só existe por causa dela. A gente só tem essa possibilidade fílmica política porque tá perto de Brasília. Então ao mesmo tempo em que a gente nega Brasília, a gente tá reafirmando Brasília.
Ela faz parte de vocês, vocês fazem parte dela, e não dá pra negar isso. Mas vocês também não têm que se privar de dar o ponto de vista de vocês sobre ela.
Se você olhar o conjunto de Brasília, ele é extremamente reacionário. É burocrática, cheia de servidor público. É racista. Se você olhar o número de negros que tem em Brasília… negro que trabalha em Brasília é garçom. E isso inflaciona todo o déficit. Se você mora em quebrada você ainda assim vive uma vida muito difícil. Tem toda essa dinâmica que influencia no nosso olhar sobre Brasília.
Isso acaba atraindo o olhar não apenas de pessoas de Brasília, mas de quem está fora de Brasília e vê o filme. “Ah, Brasília é uma cidade muito bonita, Niemeyer e tal….”. Mas existem todos esses problemas e geralmente isso tá muito maquiado, as pessoas de longe não percebem.
É, e mesmo assim existe muitos caras massa em Brasília, tem muitos caras que a gente respeita lá… Mas eles querem que a gente construa algo pra se agregar a Brasília… “Eles são um pessoal massa, da quebrada, eles tão construindo alguma coisa…”. Parece que a gente tá construindo alguma coisa pra morar em Brasília, pra ser agregado.
Como se isso fosse uma espécie de evolução, vocês estarem passando de moradores da Ceilândia pra moradores de Brasília.
Exatamente. E não é evolução pra gente. No próximo filme nosso um homem vem do futuro investigar um crime na Ceilândia. O filme é uma espécie de ficção científica. Pra você atravessar a fronteira pra Brasília, tem que ter passaporte. E isso é algo que está estabelecido. A gente transforma a segmentação sutil que existe em uma segmentação física. Pra você passar pra Brasília você tem que ter passaporte. Brasília é uma cidade kafkiana. Você não vai a Brasília e anda em Brasília. Uma vez eu saí e bebi muito, enchi a cara, e o carro quebrou. O pneu furou. Eu precisava encontrar alguém que me emprestasse uma roda de pneu. As pessoas corriam de mim. Eu entrei num daqueles prédios e não tinha ninguém, porra. Não tinha ninguém embaixo. Obviamente que era todo habitado, mas não tinha ninguém embaixo. Os filmes que a gente faz tem muito isso, de tentar dialogar com o estranhamento que a cidade causa.