Por Fernando Mendonça
O primeiro longa-metragem de Werner Herzog, plenamente inserido no espírito que dominava o cinema alemão dos anos 60 (o novo cinema, estabelecido desde 1962, através do Manifesto de Oberhausen), é trabalho de Modernidade latente, fruto de um honesto zeitgeist que hoje podemos avaliar como marco definidor não só de um movimento nacional, mas de uma trajetória particular com o cinema, um novo olhar. Em Sinais de Vida, Herzog não economizou na entrelinha, carregando suas imagens de ambigüidade e sarcasmo, além de sinalizar que sua chegada na arte não trilharia caminhos que se distanciassem da resistência, fazendo de cada filme determinado retrato de inconformismo. Rejeição aos tempos moldados pelo homem, mas também sua subserviência, seu apego pela incontornável matéria.
Desdobramento direto de um pequeno filme que realizara no ano anterior (A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkretz, 1967), Sinais de Vida desenvolve-se sobre a ruína de quatro personagens que se refugiam, durante a guerra, num forte grego isolado e vazio. O soldado Stroszek (Peter Brogle), junto a sua esposa e outros dois soldados feridos, enraíza-se nesta dimensão do espaço como um caractere beckettiano, à espera do acontecimento porvir em tempo indeterminado. Tais circunstâncias, desoladoras pelo grau de sobrevivência forçada que evocam, são preenchidas por um movimento pautado pelo ócio, pela diluição das funções sociais em detrimento de certo conforto necessário à ininterrupta passagem dos dias. Um filme em que o aguardar se faz ato, em que o tempo escorre como fina areia pela imagem-ampulheta.
Assim como no curta de 67, em que quatro homens invadiam um castelo abandonado e se colocavam à espera de um ataque nunca concretizado, os indivíduos agora encarcerados não conseguem evitar o desapontamento pelo cessar bélico — à semelhança do que também veremos em O Deserto dos Tártaros (Valerio Zurlini, 1976). Enquanto aguardam os rumores de guerra que nunca chegam, eles procuram afazeres que motivem a permanência em seus corpos: pintam o forte, traduzem inscrições antigas, criam cabras, hipnotizam galinhas, inventam armadilhas para capturar baratas, tudo para impedir que a insanidade venha encontrar morada em seu meio.
Mas o inevitável não é coisa que se previne. E os primeiros sinais de que algo não está bem encaixado na rotina que estes seres criam, começam a aparecer. A ruptura definitiva dos níveis de consciência até então preservados por Stroszek, dá-se num cenário que é dos mais emblemáticos para o que compreendemos ser a representação moderna: numa vistoria pela erma região circundante, o soldado se depara com uma árida paisagem reservada para o funcionamento de moinhos de vento. Por meio de alguns cortes no jogo de campo e contracampo, Herzog conclui de uma vez por todas o caráter quixotesco de seu personagem, em planos que prefiguram o olhar do homem e a perspectiva dos moinhos, instaurando a crise que o fará atirar contra eles e completando a loucura que desde o início do filme espreitara. Em decorrência, Stroszek assumirá seu colapso mental voltando-se contra os companheiros e tomando o controle do forte somente para si, assim como do armamento, das bombas e munições que nele estão guardadas; ameaçando implodir o local e, consequentemente, causando pânico em toda a cidade.
Ao contrário do que uma primeira impressão sobre Sinais de Vida possa causar, Herzog não pretendeu com seu filme entregar um mero dispositivo da loucura humana, do abalo típico e muito conhecido que as situações de guerra afligem a seus sobreviventes. É primeiramente no ato de sobreviver, não importam os meios, em que ele se concentra. Se há uma instabilidade no universo — deste filme, de todos os seus filmes — aqui delineado, ela está muito mais relacionada ao espaço do que aos seres que o ocupam. O absurdo e a violência que encerram os últimos atos de Stroszek — e isto vale para o protagonista de Sinais de Vida, assim como para o homônimo da obra-prima que o diretor assinou em 1977, como para o refugiado de O Sobrevivente (2006) — refletem uma deterioração que antes o afetou pelas condições de vida encontradas. Se a guerra não é concretizada, nós a criamos. Se as ameaças são deixadas de lado, nós as retomamos. Esta é a premissa de Herzog diante de um cinema que não pode mais aceitar a passividade das formas, que não pode responder ao calado mundo do séc. XX com um mesmo silêncio. De certa maneira, Sinais de Vida não deixa de ser um filme sobre a loucura da guerra; mas o louco é Herzog, e a guerra, todo o cinema que ele fará a partir daí.