Por Filipe Chamy
A princípio, No coração da montanha é um filme igual a tantos outros de Herzog: trata-se do clássico embate homem versus natureza, com as adequadas discussões sobre a megalomania mundana e a perenidade das forças naturais.
Ocorre que essa leitura se verifica além da superficialidade — de fato, o filme possui esse mote.
Claro que isso não é tudo: caso Herzog fosse um cineasta acomodado, limitar-se-ia a uma zona de conforto e não procuraria sair nunca dali, sem qualquer razão que desmotivasse sua inércia.
Neste No coração da montanha Herzog acaba se voltando mais para um comentário social do que para um simples relato de viagem. Claro, ela está lá; e da maneira predileta do diretor, numa terra distante e de desafios intrínsecos. Há neve, há montanhas, há a imensidão geográfica. Mas há, além disso, a crônica intrusiva contemporânea, a televisão e o registro incessante dos passos fúteis das pessoas. Uma pitada de realidade numa fábula de superação, de desafio. Qual pico é mais inacessível, o de um monte gelado e de altura assombrosa ou o do sucesso pessoal respaldado pela imprensa? Como Herzog prova a todo instante (pelos dramas encenados por suas personagens), não basta estar num lugar, é preciso registrar (e portanto documentar) essa atividade. Daí o momento-chave em que uma elipse insinua a dúvida sobre um feito alegado mas nunca realmente esclarecido.
Resgatando sempre a cada obra a admirabilíssima habilidade de forçar o espectador a partilhar os sentidos e dores das pessoas que segue (inclusive em seu cinema de documentário), Herzog abrasa o gelo com intensidade precisa e demonstra sensatez ao não se deixar perturbar pela tentação de virar um “paisagista”, mostrando o oco de um cenário sem alma, árido por constituição; não, aqui se trabalha o palco de um drama em que as figuras humanas não se deixam ofuscar pela grandeza das proporções do ambiente com que se relacionam — e com isso o filme fica forte como o imponente Cerro Torre, mas infinitamente menos frio.