Por Fernando Mendonça
Se Werner Herzog é um dos diretores mais lembrados na procura por abordagens que o cinema tenha feito sobre a deficiência física é porque, além da tematização do assunto recorrente em vários de seus filmes, a dificuldade imposta sobre o corpo humano e a manutenção da sobrevivência sempre foram motivações centrais da carreira em questão. Handicapped Future, filme encomenda de caráter institucional, por mais que prescinda das investigações estéticas típicas ao cineasta, não deixa de representar um ponto nevrálgico de sua produção (em particular a dos anos 70), relacionado ao estranhamento dos seres que superabundam no imaginário fílmico por ele construído, de Também os Anões Começaram Pequenos (1970) a Terra do Silêncio e da Escuridão (1971), de Kaspar Hauser (1974) a Stroszek (1977) — lembrada a excelência do trabalho conjunto entre Herzog e Bruno S. nestes últimos filmes, exemplos do que podemos chamar de uma ‘deficiência metafísica’ a ser refletida pelo gesto do diretor, em diluir as limitações naturais do ator ao corpo dramático narrativo.
Filme que antecipa e, segundo Herzog, justifica a existência de Terra do Silêncio e da Escuridão, o média-metragem em que aqui nos detemos guarda forte proximidade com seu trabalho posterior, especialmente na figura da primeira garotinha que é entrevistada. Dentre suas declarações, ela revela que só consegue sonhar de olhos abertos, que suas noites são sempre solitárias e, conseqüentemente, desprovidas de qualquer movimento onírico. As dimensões da visibilidade aí colocadas, futuramente prosseguidas pela mulher cega que conduzirá Terra do Silêncio, concentram uma série de problemas continuamente revisitados por Herzog dentro do cinema. A inadequação dos corpos no mundo que todos os seus filmes — a exceção nos parece impossível — refletem, condicionada a limites anatômicos ou mentais de ordem involuntária, pois uma quase violação ao ser, é colocada em cena por Herzog com o intuito de sempre transformar sua condição primeira, pela materialidade do cinema, numa nova realidade física. Assim, a menina que fala de seus sonhos (da vontade de andar, por exemplo) para a câmera é alguém que concretiza seus desejos na superfície da imagem. Não se trata de ficção, mas de uma instauração do movimento pela sensibilidade de Herzog em concretizar a voz e o anseio de seus entrevistados.
Abrir os olhos para sonhar, como bem sabemos, não deixa de ser um reflexo do princípio cinematográfico que funde tempos e realidades dentro de uma sucessão de imagens. Seja a menina de Handicapped Future ou cada um dos demais que aparecem no filme, sejam os personagens dos outros títulos que citamos pela relação a este trabalho, sejam as crianças que brincam com amigos imaginários em outro curta fundamental do diretor (Ninguém Quer Brincar Comigo, 1976), cada um destes experimenta na tela aquele fragmento de tempo que as pálpebras levam para saírem da escuridão e permitirem o contato entre o olhar e o mundo. São pessoas, personagens e situações que manifestam a recorrente potência do cinema — não só de Herzog, mas especialmente nele — em fazer vir à luz, emergir do caos a ordem. Cinema que resiste ao fechar dos olhos. E por isso, sonha.