Por Fernando Mendonça
Enquanto esperava o período de pré-produção transcorrer para as filmagens de Fitzcarraldo no Peru, Werner Herzog não perdeu tempo, investindo na realização de dois filmes irmãos sobre desdobramentos da religiosidade americana. God’s Angry Man e o posterior O Sermão de Huie, ambos de 1980, são frutos de um estado de espírito muito particular dentro do momento vivido pelo diretor em sua carreira, justamente o da realização de seu mais ambicioso projeto artístico, a ser lançado somente dois anos depois sob um véu de obstáculos como raramente o cinema terá enfrentado. Ainda que ambos os médias tenham sido relegados a um patamar próximo ao esquecimento, justificado inclusive pelo barulho que Fitzcarraldo gerou da gestação à estréia, não é possível ignorar a relevância que ambos os trabalhos possuem, mesmo após três décadas, de iluminar alguns dos interesses centrais e correntes no legado de Herzog.
God’s Angry Man, filme sobre a comercialização da fé — e por isso muito próximo ao que atualmente se intensifica no Brasil —, coloca em foco a controversa personalidade de Gene Scott (1929-2005), pastor protestante que, entre os anos 70 e 80, tornou-se um ícone da comunicação através de um programa (Festival da Fé) que liderava a audiência e convencia seu público, por meio de um discurso emotivo e ironicamente raivoso, a ofertar generosas quantias financeiras em nome de Deus. O curioso é que, ao invés de organizar seu material (arquivos found footage do programa, entrevistas exclusivas com Scott, registro de bastidores da TV) em tom de denúncia ou crítica direta aos questionáveis atos de quem observava, Herzog optou por aproximar-se do homem que se escondia atrás da imagem midiática evidenciando uma ambigüidade que ora se compadece, ora abomina, ora simpatiza com aquele que finalmente deixa sua máscara cair.
Ao nos mostrar a rotina de um homem que vive para as câmeras — à época, os programas de Scott duravam entre 6 e 8 horas diárias e ininterruptas — e que, por isso, já diluíra sua identidade num conjunto de expectativas e códigos de conduta indiferentes à sua vontade, Herzog desconstruiu todo um conceito fílmico baseado no desequilíbrio que a realidade e a ficção sempre nele tensionam. O que seu filme faz com Gene Scott é o que nenhuma das incontáveis horas de TV poderiam extrair dele e, em contrapartida, o que ele jamais revelaria para alguém não mediado por uma câmera. Consciente de sobreviver num ‘mundo de celulóide’, de ocultar uma profunda tristeza sob a fachada do estrelato, finalmente Scott encontrará a possibilidade de uma imagem que não se preocupe em vesti-lo de sentidos e significados exteriores, pois ao contrário, vem dela o mais pleno desnudamento, o desejo simples e puro de ser. E se procurarmos identificar o tempo da restituição, aquele momento em que Scott é brevemente devolvido para si mesmo, este não poderá estar em outro movimento senão o do incisivo close-up dedicado por Herzog ao entrevistado, durante vários e longos minutos.
Certamente o mais belo e funcional — sim, Herzog consegue fundir opostos — close já efetuado pelo diretor, eis uma proximidade que recupera todo o caráter trágico (chapliniano) do referido movimento técnico: há uma eterna dor na face que se deixa tocar pela lente, naquilo que da pele pulsa, dos vincos e rugas, de cada contorno. São nestas cenas que God’s Angry Man deixa de ser um filme sobre o mercado da religião para tornar-se um retrato do desamparo humano, do corpo que, abandonado solitariamente num mundo esquecido por Deus, agoniza uma espiritualidade impossível. Parece desnecessário apontar a relação entre Gene Scott e o protagonista de Fitzcarraldo, megalomaníacos que precisaram ultrapassar os limites da razão para sobreviver num domínio simbólico da existência. Desnecessário procurar neles um reflexo de Herzog, que otimizando a espera pelo seu próximo filme, comprovou ser o movimento cinemático uma conseqüência do saber aguardar.