Um dos prazeres de acompanhar J. Edgar decorre da habitual elegância com que Clint Eastwood dirige e conduz os seus filmes. Dizer isso não é mais que chover no molhado. Há um bom tempo que ninguém no cinema americano filma tão bem quanto ele. O que sobra em seu novo trabalho é uma dramaturgia e estrutura narrativas um tanto perdidas e que custam a engrenar. Quem prestar atenção em sua filmografia vai reconhecer que o diretor nunca foi afeito a histórias cheias de idas e vindas no tempo, que transcorram por décadas. Ele sempre se sai bem melhor lidando com um drama restrito a um tempo e contexto específicos.
Pode ser quem alguns reclamem do filme ser muito longo nos seus 136 minutos de duração. Ao que parece, ele na verdade sofre por ser curto demais, com material suficiente para render sete ou oito filmes sobre passagens diferentes da vida do mitológico J. Edgar Hoover, mas como se nos chegasse às mãos cheio de cortes, como uma versão condensada de minissérie de TV (não em termos estéticos, mas de roteiro mesmo). J. Edgar poderia ser bem melhor com quinze horas de metragem, com tempo necessário para desenvolver os fragmentos mostrados da biografia de Hoover. Seria o Berlin Alexanderplatz de Clint Eastwood.
Ainda assim deve-se considerar um filme bem ou mal por o que ele resulta, não pelo que poderia ter sido. J. Edgar é um irregular muito bom filme de Eastwood. A opção do cineasta em passar ao largo da história pública americana na qual Hoover esteve presente por cerca de 50 anos faz com que ele pareça não saber como agir por um determinado momento (especialmente em seu primeiro ato), mas finalmente se ilumina quando revela a verdadeira natureza do seu trabalho: a decrepitude do personagem em seu ocaso. J. Edgar vai evoluindo assim intercalando os últimos anos do protagonista no período 1960/70 com sua juventude nos anos 1920/30.
O desafio é fazer emergir da estampa de Leonardo DiCaprio uma personalidade. Por um bom tempo enxergamos ali o ator, não o personagem. Como Angelina Jolie em A Troca, o intérprete está bem controlado, distante dos cacoetes que se encontram em suas atuações nos filmes de Scorsese, mas não é exatamente um ponto alto de J. Edgar, até que a sua maquiagem o destaque deixando-o mais à vontade em seu papel, calvo e obeso como um elemento natural, nunca forçado ou se ressentindo como um artifício na tela.
Tivesse optado por um viés mais policial, J. Edgar poderia quem sabe ser uma obra-prima (como Inimigos Público, de Michael Mann). Não era a intenção de Eastwood, que vem preferindo encontrar o humano não na ação ou nos tiros, mas circunscrito no drama. Focando-se num personagem que nunca se revelou por completo, que destruiu arquivos pessoais para que saísse vitorioso em vida e carregasse consigo o mistério de sua figura pública, deixando para a posteridade o que ele tratou de moldar em torno de si como um ícone, resultado da construção de uma imagem: a do chefão do FBI perseguidor de assaltantes de bancos ou comunistas e espiões, mas que escondia conflitos edipianos como a sua dependência em relação à própria mãe, ou sua homossexualidade enrustida, abordada com notável sutileza sem que o filme se preocupe em escondê-la ou enfatizá-la exageradamente. O que rende um belo momento fassbinderiano, no qual Hoover se traveste com roupas de mulher, por ocasião da morte de sua mãe. Não é de hoje que o cinema de Clint Eastwood parece habitado por monstros (no caso, o próprio Hoover) e fantasmas (aqui a figura materna, cuja presença ao longo do filme assombra e ao mesmo tempo dialoga com o protagonista).
Não tinha como o filme não ser, que nem o seu personagem, outra coisa se não uma esfinge que não se permite conhecer por inteiro. Quem espera uma cinebiografia que se pretenda completa (ou correta) e responda quem é J. Edgar Hoover estará perdendo o seu verdadeiro foco, caindo numa falsa impressão de incompletude, de insuficiência. Ainda que custe um pouco a entrar nos trilhos, J. Edgar acerta em mostrar o jovem e o velho que há em dois momentos distintos no homem, com o filme indo e voltando no tempo em torno do personagem decrépito e do jovem impetuoso de outra época. Um ciclo que se fecha, mas que leva consigo seus segredos, nos deixando defronte de um enigma, como é, afinal, a vida de todo homem.
Filmes citados
Berlin Alexanderplatz [idem; Alemanha/Itália, 1980], de Rainer Werner Fassbinder. 894 min.
Inimigos Públicos [Public Enemies; EUA, 2009], de Michael Mann. 140 min.
J. Edgar [idem; EUA, 2011], de Clint Eastwood. 137 min.