Aterrorizada (John Carpenter, 2011)

Carpenter tem o sangue da geração romântica do horror, aquela que viu A Noite dos Mortos-Vivos num drive-in perto da faculdade e que pela primeira vez acreditou ser possível fazer um cinema de massa longe das asas de um grande estúdio. O final dos anos 60 trazia na crescente do horror na Europa e no sucesso absurdo do filme de Romero o grande abrir de comportas para a violência explícita que o cinema, até então uma arte limpa, aguardava desde que Murnau brincou de luz e sombra para assustar o público. Carpenter, Cronenberg, De Palma e Wes Craven, filhos do lado B da old Hollywood, nasceram na hora certa para fundar as bases do terror moderno, como quem pega uma câmera 3 segundos antes de um acidente. Cada filme lançado ali redefiniu algum conceito, cada sequência trazia algo de inédito, por isso pode soar estranho que Aterrorizada se pareça tanto com os terrores genéricos lançados nos últimos 15 anos. Contra a virtuose, contra a assinatura, o público e o próprio cinema (onde se encontra e para onde vai), Carpenter faz de Aterrorizada, um filme nu e ordinário, um straight-to-video (no Brasil, literalmente), o argumento definitivo de quem só quer fazer filmes apesar do que é e do que representa. Aterrorizada é uma peça arcaica, uma obra que nasce datada e inofensiva às audiências de hoje porque Carpenter parece reclamar para si o direito de filmar sem desdobramentos ulteriores. Um pedido de licença, ridículo e impossível, para ser assistido como se assiste a um filme de terror pela primeira vez.

É fundamental lembrar que Carpenter passou uma década longe do cinema, mas não sem filmar. Há de fato uma atmosfera muito similar entre Aterrorizada e seus dois episódios para a série Masters of Horror (Pro-Life e Cigarette Burns, este último entre seus melhores trabalhos): a imperturbável leveza de quem não dá a mínima, sempre muito distinta em um artista e estranhamente agradável a quem o assiste. E é especial testemunhar esta atitude em quem volta cercado de uma expectativa capaz de efeitos tateáveis no cinéfilo, um sujeito que raramente resiste ao impulso de ou condenar o diretor à decadência ou elevar um trabalho comum à condição de obra-prima. Mais interessante, contudo, é a consciência do cineasta a respeito e a influência disto em seu trabalho. Vêm imediatamente à memória dois filmes lançados nos últimos anos, também dois retornos de seus diretores ao gênero que os definiu: Giallo, de Dario Argento, e Arraste-me Para o Inferno, de Sam Raimi.

A posição de Sam Raimi em Arraste-me Para o Inferno é confortabilíssima. Mesmo a despeito de seu sucesso comercial, o horror de Raimi sempre veio edulcorado de certo histrionismo, um passe que lhe concede trânsito intato dentre os que sempre apreciaram seu cinema. The Evil Dead não se leva a sério como um Halloween ou O Exorcista. O retorno de Raimi a seu gênero de origem ocorre em estreito conluio tanto com seus fãs pré-Spider como com as novas audiências adolescentes: produzir um terror fácil e repleto de maquinismos rasteiros com uma veia inaudita para certa autoconsciência do ridículo. Raimi não deseja dizer nada, não deseja contestar ou mesmo validar nada, mas ainda quer para si o sólido retorno desse público misto que o abraçará de uma forma ou de outra. É admirável a trama que Raimi aparafusa em Arraste-me Para o Inferno: cineasta ou entertainer (como fossem coisas diferentes), Raimi não corre risco nenhum.

É por isto que um par mais apropriado a Aterrorizada seria mesmo Giallo. Assim como Carpenter, Argento abriu caminho entre uma geração talentosa e um mercado efervescente de filmes de horror baratos. Angariou fãs, chamou a atenção dos estúdios, foi convidado a fazer um filme todo seu contando com atenção e com dinheiro, e terminou ferido — não pela crítica ou pela indústria, mas por uma incompreensão absoluta advinda mesmo e principalmente de quem até hoje grassa em favor de Prelúdio Para Matar. Terror na Ópera é o Aventureiros do Bairro Proibido de Argento, filmes que deflagraram uma curva criativa riquíssima de seus autores já em conflito com fãs que não entendem a evolução a ser observada quando se olha para a carreira de cineastas com mais de 30 anos de trabalho, quando qualquer mudança é interpretada como um desvio do modelo ideal que o público estipulou para si (em geral correspondente a um filme específico, talvez dois). Giallo, como Aterrorizada, é uma sabotagem nessa expectativa. A diferença talvez fique pelo tour de force de Argento; Giallo é único, diferente de tudo no gênero. Já Aterrorizada é quase só mais um filme B vagabundo.

“The thought of working with a female ensemble cast was fun” (Carpenter para a Collider, jul/2011). A escolha tão precisa dos elementos mais rasteiros do cinema de gênero e da estrutura step-by-step reage com uma certeza inicial em Aterrorizada: o mundo que o olho captura não é confiável. A antecipação que evolui na cabeça do espectador leva à inevitável dissolução do “mistério” que a trama oblitera: o de que nada ali é o que parece ser, seja por resultado de ilusão, loucura, pesadelo, qual seja o gatilho usado no twist. Carpenter, consciente da expectativa do público e do seu olhar treinado (em muito, por ele mesmo) para todos os truques possíveis em um filme de horror, distribui clichês como quem espalha armadilhas pelo chão. Decifrar Aterrorizada nos primeiros 10 minutos é essencial para o choque da confiança do público nas bases mais primitivas do gênero contra essa substancial desconfiança na apreensão do olhar, um belo paradoxo narrativo e uma sofisticada nota metalinguística. Carpenter chama a atenção para a fragilidade das instâncias da ficção e sentencia que a pulsão do horror repousa muito antes na superfície do cristalino do que no lobo frontal, o que fica claro na última cena. O espectador sabe o que está por vir, conhece os truques, antecipa perfeitamente o turn da cena, e nada disso interessa: ele se assusta como se fosse 1976 e Carrie estivesse em todos os cinemas.

Anódino, prosaico, invisível na prateleira do fundo, Aterrorizada exige apenas a mais esguia das motivações para se assistir a um filme; celebração do mais antigo contrato entre o espectador e o artista.

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