O que mais me interessa em O garoto da bicicleta é sua clareza. Este último (até agora) longa dos irmãos Dardennes é extremamente transparente nas intenções e na abordagem. Não varre a sujeira para debaixo do tapete e não se omite às fraquezas das personagens, às torturas cotidianas que implicam certa exposição dos caracteres das pessoas — não tipos, o que seria frustrante —, naquela maneira de nos fazer ficar com raiva dos impulsos que elas tomam e depois, consternados, percebermos: elas agiram de modo totalmente natural. O contraponto (ou culpa) da eficácia seria uma moralidade forçada, então, pois outras decisões talvez descambassem não para a encenação, mas para a imitação, a idealização hipócrita.
Não que o naturalismo seja um pressuposto para as coisas funcionarem: longe disso, aliás, pois o naturalismo de O garoto da bicicleta é meio estilizado de acordo com seus propósitos — o que serve bem a seu desenvolvimento, aliás. Um exemplo: o jovem traficante, com aquele charme de Huckleberry Finn, um pária desgarrado das convenções sociais, à margem da respeitabilidade burguesa, não será esse mesmo jovem um exemplo desse naturalismo “forçado” que, ao mesmo tempo em que expõe sua crueldade (o rapaz é um aliciador), demonstra seu lado humano (o rapaz cuida dos avós idosos)? Fugindo da caricatura, os Dardennes encontram o que há de mais humano e caloroso.
Então seguimos o pequeno protagonista (um Calvin sem Hobbes/Haroldo) em sua desolação (porque a infância também tem suas agruras), rumo ao completo contrário do que esperava: no lugar do pai sumido, o amor; no lugar do conflito, a paz; no lugar da amizade de barro, o conforto da segurança. Não é um moralismo de fachada, um dedo inquisidor a apontar o bom caminho. Aqui não há essas representações dogmáticas de oposições maldade versus bondade, ou moralidade versus libertinagem. É uma história simples sobre um garoto em descompasso com sua vida, e nisso está a nobreza da jornada.
Não faltou quem incompreendesse os conflitos do menino e sua rebeldia superficial, e no entanto esse é o grande trunfo de O garoto da bicicleta: com seu rosto de indefiníveis reações, fechado, mudo como um monge, a criança possui toda a verdade do mundo para desacreditar qualquer crítica nesse sentido; é fácil de entender seu desconforto e suas dores, compadecer-se de seus problemas. Seus gestos de violência e egoísmos não são condenáveis, errado está quem os demoniza. Sacralizar uma imagem absurda da infância é não querer reconhecer as falhas de um mundo onde existe o abandono, a miséria e a negligência. Se os Dardennes expõem essas chagas, não se pode, em absoluto, acusá-los de “vazios”, a crítica mais comum a seu cinema.
Impressionantes sequências de ação (sim, ação, como correr num bosque ou fugir de um internato) e embates corporais de uma fluidez tão rítmica quanto sagaz (e nem disso o garoto foi poupado) tornam o relato ainda mais forte e vivo, mais pulsante e doloroso, num torpor quase de delírio, de correr sem fôlego, de se extenuar e chegar ao ápice do esgotamento físico e nervoso. Nessa sucessão de imagens e planos claros, com uma fotografia (luz natural?) que não esconde o sofrimento ou a redenção, os Dardennes constroem meticulosamente um mosaico de louvável e fresca beleza, a beleza que comporta a tristeza (o chagrin dos franceses, apesar de os irmãos serem belgas), o risco, o erro e a estupefação, o remorso mais profundo e a melancolia mais pura.
Filme que respeita a infância e dá a ela a dimensão devida do dramático — e eventualmente do trágico —, O garoto da bicicleta, com ciclos que alternam furor e calma, é como a respiração inquieta de seu personagem-título, na angústia de suas inquietações.