Troço, e não um filme. Sempre em tom de provocação, é assim que Eduardo Coutinho gosta de se referir a sua experiência cinematográfica Um Dia na Vida. O projeto engaja de fato procedimentos, tanto em sua realização quanto na sua forma de exibição, que o torna um obra singular na filmografia do documentarista. Seu dispositivo poderia ser resumido na condensação em cerca de 90 minutos de trechos da programação e dos comerciais exibidos na televisão aberta brasileira durante um dia. Por questões óbvias de direitos de uso de imagens, é pouco provável que esse filme venha a ser lançado ou exibido comercialmente – até hoje, o filme teve apenas uma exibição pública oficial durante a Mostra de Cinema de São Paulo de 2010.
O que poderia ser um impedimento definitivo para a circulação do filme, acabou se tornando mais uma dobra (uma dobra política, é sempre bom lembrar) do seu dispositivo: o filme continua a ser exibido (de forma clandestina, sem se anunciar o título da obra), sempre em sessões gratuitas e com a presença do diretor para um debate posterior. Assim, a montagem de Coutinho com o material televisivo torna-se inexoravelmente inseparável do discurso do diretor sobre o seu sentido.
Partamos então, em princípio, para o discurso. O projeto nasceu de um desejo de Coutinho de fazer a sua versão no cinema para o livro Passagens, de Walter Benjamim: uma obra de citações, que não produziria nenhum conteúdo novo, apenas montaria com o material existente. Ideia ainda não totalmente finalizada, como indica o início do troço explicando que o material a ser visto a seguir poderá ser o ponto de partida para um projeto futuro. E também, como afirma o próprio diretor, sobre a sua vontade de criar paródias e reencenações em cima dos trechos selecionados – projeto ainda relutante, pois como destaca Coutinho, poucas paródias poderiam ter a força do material selecionado.
Talvez então, mais do que a referência ao projeto de citações do filósofo alemão, fosse necessário evocar a filiação do filme ao maneirismo dos regimes imagéticos contemporâneos denunciado por Serge Daney: onde cada imagem não pode fazer mais do que remeter a uma outra imagem. E a televisão não seria exatamente o local por excelência das imagens auto-referentes com códigos de entendimento e circulação próprios? Vide os diversos programas de fofocas de celebridades (reais ou personagens fictícios, já não há tanta diferença), a repetição das notícias nos jornais no decorrer do dia (dando um caráter cada vez mais auto-importante para os assuntos) e as diversas paródias de outros programas e canais (que se destaca de forma tão gritante no trecho selecionado da MTV Brasil). E aqui, definitivamente, já saímos do reino do discurso para entrar no reino das imagens.
Como aponta Coutinho, é preciso prestar especial atenção à construção do corpo feminino como uma imagem – como um objeto a ser constante e esteticamente construído pela televisão: cirurgias plásticas, dietas, joias caras, cintas que reduzem medidas, programas de transformação radical. Nos anos 1970, o feminismo militante de Laura Malvey já denunciou o cinema como o local em que a mulher é colocada sob o olhar masculino do desejo. O que nos denuncia Coutinho é que na programação da tv aberta brasileira, o corpo feminino é colocado no lugar interminável da auto-flagelação espetacular.
Mas o que Coutinho realiza é mais do que nos mostrar o abismo das imagens sobre imagens da televisão. Seu dispositivo é o da ressignificação pelo deslocamento de contexto – nesse ponto, um verdadeiro ready made de inspiração duchampiana. É preciso tirar o mictório de banheiro televisivo e colocá-lo no local privilegiado da tela grande do cinema. Assim os instrumentos de cirurgia estética do Doctor Hollywood, que poderiam ter um ar inofensivo na pequena tela quadrada, ganham um verdadeiro aspecto de gigantescos instrumentos de tortura ao serem projetados. Ou a passagem do jornalismo espetáculo do terror para o editorial de moda leve e despretensioso, ganha verdadeiros contornos dramáticos ao vermos a expressão abrupta de transformação no rosto da âncora do jornal.
Os exemplos seriam inúmeros, tantos quanto são os trechos que compõem o troço. Ainda que sua montagem seja bastante bem humorada, o diretor não nos deixa esquecer que estamos no mundo dos monstros e no reino do horror. É preciso que se ouça atenciosamente o discurso dos pastores em sua religiosidade absurda – e também que vejamos os rostos dos fiéis/expectadores crentes nesse regime de representação. É preciso acompanhar a transformação estética da mulher mais feia do mundo, que ao final vê-se refletida no espelho como uma cópia da apresentadora do programa (a cópia da cópia da cópia…).
E é sobretudo necessário prestar atenção no regime de representação das narrativas televisivas, da declaração piegas do casal no campo de rosas a heroína de novela mexicana (literalmente) que se desespera em um cemitério, nada pode causar tanto estranhamento como esse deslocamento. A novela, um dos produtos nobres da televisão brasileira, não consegue ser mais do que risível com seus grandes closes (ainda maiores), sua música de fundo (ainda mais alta) e sua montagem didática.
Já estamos definitivamente na paródia ao vermos tais cenas na tela grande. A citação não precisa ser explicada e o absurdo reina. Ainda bem que no cinema esse dia dura apenas 90 minutos.
Filmes citados
Um Dia na Vida [idem; Brasil, 2010], de Eduardo Coutinho.