Assistir a um filme de Eduardo Coutinho se tornou há algum tempo mais do que uma experiência imagética e sonora, mas também um confronto com o cinema como teoria – mais precisamente, com o campo do documentário. Isto porque a filmografia de Coutinho se confunde com a história do documentário contemporâneo brasileiro: Cabra Marcado para Morrer, é a gênese; de Santa Marta a Peões temos a consolidação da entrevista como local de encontro privilegiado; O fim e o princípio marca a crise desse método (no qual o filme que se procurava não acontece como se previa); finalmente, temos a reinvenção do campo e do dispositivo em Jogo de Cena e Moscou, trazendo para frente da câmera a encenação. Há ainda nessa trajetória um pouco visto e subversivo Um dia na vida, feito a partir de imagens da televisão – paira sobre o filme toda uma questão sobre os direitos autorais dessas imagens e é pouco provável que este venha a ser lançado comercialmente.
Por isso, quem chega em As Canções pode a princípio se frustrar. Não, Coutinho não vai mais uma vez revolucionar o campo documental, não vai questionar a encenação, os jogos de poder entre entrevistador e entrevistado ou as nossas relações com a imagens. Ao contrário, o dispositivo do seu novo filme já estava presente em vários dos seus filmes anteriores, neste seus entrevistados cantam músicas que marcaram sua trajetória de vida de alguma forma. Já havíamos visto isso em Edifício Master, quando um senhor interpreta My way emocionadíssimo, ou em Jogo de Cena, em que a entrevistada volta para encerrar sua participação com Se essa rua fosse minha. Aliás, de Jogo de Cena Coutinho pega emprestado também o cenário: um palco de teatro com a câmera enquadrando apenas uma cadeira, que será ocupada por seus personagens cantantes.
Ainda assim, e talvez justamente por isso, há muito não se assistia a um filme tão belo do diretor. Instalados no dispositivo, mergulhando na memória dos entrevistados e nas nossas memórias reviradas pelas letras da canções flui-se livremente pelo filme e por suas emoções – sem tantas amarras aos procedimentos do diretor. O próprio Coutinho parece esquecer-se de seus métodos para em uma deslizada ou outra cantarolar algum trecho de canção.
As Canções acaba assim sendo um filme bastante singelo, que se interessa profundamente em ouvir e ver seus personagens. Mesmo os que só aparecem por pouquíssimos minutos, apenas para cantar uma música, ou um trecho, sem que possamos saber mais sobre a sua história. Ficam as vozes, quase sempre mais expressivas do que afinadas e os closes dos rostos. Nesse sentido, os rostos enrugados, marcados, são tão narrativos quanto as letras das canções e as histórias de vida.
Se em Jogo de Cena, o que perpassava as entrevistas era o universo feminino, aqui a temática – com poucas exceções é a dos relacionamentos amorosos. Nesse sentido, um dos filmes que mais dialoga com As Canções seria a divertida comédia romântica musical de Alain Resnais, Amores Parisienses. Se o terreno de Coutinho fica entre o samba e uma MPB mais consagrada, com algumas brechas para as composições autorais, Resnais apela para a música pop francesa sem o menor medo de fazer os seus personagens soarem ridículos. O que ambos os diretores sabem é que nas nossas vidas o que há de mais íntimo, de mais doído, de mais saboroso, não deixa de caber perfeitamente na letra daquela canção que todo mundo conhece. Nossas memórias afetivas não deixam de ser a música que faz parte do imaginário coletivo, que todos sabem de cor. E não há do que se envergonhar – pois assim como Coutinho, nós espectadores também nos pegamos cantarolando baixinho.