Mais Forte Que a Vingança (Sidney Pollack, 1972)

Segundo um comentário de Phillipe Paraire ao faroeste no cinema americano, o período conturbado dos anos 70, com suas crises e questionamentos sociais, encontrou nesse gênero um retorno do homem à natureza, uma renovação do espírito quando em comunhão com seu ambiente original. De acordo com ele, o western clássico, famoso por tornar célebres em todo o mundo os grandes espaços do sudoeste nos EUA, lograva então transformar de fato a presença da natureza como personagem principal da narrativa filmada, renovando a tradicional manipulação cênica do gênero. Com Jeremiah Johnson — porque ninguém merece a tradução brasileira —, Sidney Pollack se junta a nomes de sua época, como Arthur Penn (Pequeno Grande Homem) e Robert Altman (Quando os Homens São Homens) para restituir com sua arte o lugar do humano no mundo.

Em linhas gerais, o personagem de Johnson (dos maiores trabalhos que Robert Redford já fez, e que o próprio reconhece como seu favorito) nos é apresentado como um homem branco que abandona o centro urbano para se tornar um montanhês solitário, um eremita errante que simplesmente deseja ser esquecido por todos, vivendo apenas consigo próprio. Todos os fatos e ações percorridos no decorrer do filme são um pretexto para retratar a sobrevivência desse homem. O retrato ficcional biográfico (que posteriormente marcaria a história das HQs inspirando o personagem Ken Parker) aí atinge proporções míticas, sendo assistido em onipresença pelas incontáveis montanhas nevadas que o rodeiam e observam, incólumes.  “A montanha é implacável” afirma um velho montanhês, mas não é isso que incomoda Johnson. A vida que assusta nosso herói, aquilo que ele toma por perigo concreto, é justamente tudo o que ele viveu até então. Sua subida pelas montanhas e o processo de reaprendizagem para sanar necessidades básicas de sobrevivência são a maneira que ele encontra para realizar aquilo que a vida comum não pôde oferecer.

Uma seqüência que merece ser lembrada em especial é a que vemos Johnson encontrar uma família executada e socorrer a mulher e a criança que sobreviveram a um massacre. Em seu início, Johnson descobre o acontecimento trágico a uma distância no espaço que não lhe permite riqueza de detalhes. Nós, como espectadores, apreendemos esse instante dentro do esquema clássico de ação e reação; assim, o que vemos são três intercalações entre o fato visto e o sujeito que vê, sendo que, a cada corte de retorno ao fato visto, nos aproximamos da encenação muito além do verossímil olhar de Johnson, ocorrendo dessa maneira a restituição da autonomia à câmera e do poder privilegiado inerente ao espectador. A mulher enlouquecida dirige palavras apenas aos mortos e o menino calado permanecerá mudo por todo o filme, não nos dando a descobrir se seu silêncio é proveniente de uma deficiência natural ou do choque da tragédia. Quando Johnson encontra o menino escondido, sua primeira pergunta é: “Garoto, você viu tudo?” Não há resposta. Acompanhamos a dor do enterro com uma câmera que se distancia em respeito, vemos a mulher entregar o menino para Johnson, ainda sem proferir uma palavra, e no decorrer do filme atravessamos outras peripécias de Johnson, como a conquista de uma índia, que presenteada pelo pajé (seu próprio pai), também não saberá se comunicar, por não conhecer o inglês dos brancos.

Retornemos então à pergunta não respondida de Johnson ao menino: “você viu tudo?”. Nós não vimos. Não vimos a vida de Johnson antes de subir a montanha, não vimos a família do menino ser executada, não vimos como se deu a execução da própria família de Johnson (a índia e o menino) que se dará posteriormente no filme, e não veremos se Johnson algum dia irá encontrar resposta para esse grito interno que o atormenta. Ao colocar numa balança tudo que foi realmente apresentado aos olhos do espectador e aquilo que foi apenas sugerido ou compreendido elipticamente em Jeremiah Johnson, podemos nos perguntar se a experiência fílmica se dá pelo que é efetivamente exibido ou pelo que se completa na dinâmica do imaginário de quem assiste. Afinal, o que é ‘permitido’ dentro da imagem de cinema?

No fim do filme, Johnson encontra uma nova família refugiada no lugar em que encontrou a mulher louca e o menino mudo ao início de sua jornada. Lá, foi construído um monumento semelhante a um túmulo em homenagem ao mito que Johnson se tornou para as pessoas da região. O homem que o encontra diz: “Você é ele”, num misto de pergunta e afirmação. Completa: “Nós nunca o vimos. Nunca sequer o ouvimos. Alguns dizem que já está morto, outros que jamais morrerá.” São palavras que completam a lenda. Que reafirmam o sabor experimentado por todo o filme em se estar diante de uma odisseia de um Ulisses moderno. Em nossa memória permanece a lembrança de um personagem, de uma experiência que não termina de ser exibida enquanto lembrada, pois a resposta aos questionamentos levantados talvez esteja no limiar de nosso inconsciente, todo ele carregado de imagens que acumulamos pelo cinematográfico. Imagens que excedem um exemplar de gênero para alcançar um lugar em nós que, quando em contato com o que há de essencial no cinema, se permite transcender. Numa memória que não se encerra.

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