Na Teia do Destino (Max Ophüls, 1949)

Na Teia do Destino é um furtivo jogo de cena entre entes que, como bem notou Ophüls, movem-se com mais desenvoltura dentro do filme americano: mocinhos e bandidos, oposição fácil e largamente ignorada em seus demais filmes. Se nas obras europeias Ophüls forja a lente da câmera pela lente da retina de seu narrador-personagem, em seus filmes americanos essa lente é reposta ao lugar consagrado pelo gênero: não nos, mas sobre os personagens, sujeitos então às intempéries da narrativa e ao olhar deste espectador que tudo julga e que sobre tudo infere. Um olhar, portanto, fácil de enganar.

Os personagens de suas duas fases na Europa são transeuntes de um mundo notadamente ficto. A trucagem da máquina ophülsiana não é escondida, pelo contrário: seus movimentos entorpecentes e sua narrativa em denso espiral convidam o espectador a olhar para a câmera que encarna em seus personagens. Muito por coerções de estúdio e por uma necessidade de adaptação de linguagem, Ophüls, um cineasta radical, teve na América sua fase mais clássica e minimalista. Faz sentido que Na Teia do Destino seja seu último filme na América, elegendo mesmo o noir como esta folha em branco, teatro da mais tênue filigrana da tragédia humana, onde cineastas americanos e estrangeiros (os alemães principalmente) puderem inscrever sua própria mise-en-scène à baila de personagens naturalmente sombrios e suicidas.

Ao brincar com o noir, Ophüls inevitavelmente brinca com o olhar viciado do público para as ferramentas que o gênero herdou da narrativa literária. Apesar dos conflitos bem delimitados, das problemáticas sociais claras, o que resta de substancial em Na Teia do Destino é a mesma questão angular de todo o cinema de Ophüls: o personagem que revolve a narração; outra vez e sempre o contador de histórias.

Se em Sem Amanhã o narrador começa preso nas camadas da diegese para só no final ascender à condição que lhe cabe, em Na Teia do Destino o caminho é inverso. Este narrador noir coloca sua femme fatale como isca e aguarda pacientemente para invadir o filme na pele do chantagista, antagonismo duro e opressivo. A partir do momento em que se coloca na tela, começa a encenar a si mesmo para o espectador, fundando pequenos atalhos para firmar empatia: inventa um romance que sequer chega a se constituir em algum momento, reposiciona-se como o herói clássico do gênero e faz esta rima incontornável entre o cinema de Ophüls e o próprio noir: o sacrifício. Como Evelyn em Sem Amanhã, ou Lisa em Carta de uma Desconhecida, Donnelly apaga-se da história para restaurar o curso da vida de sua amada, retornando então ao plano áureo dos raconteurs onipotentes.

O problema, no que tange a Max Ophüls, é sempre delimitar onde começam e onde terminam as intenções de seus personagens. Teria sido o arroubo trágico de Donnelly realmente um ato de amor? Lucia recebe sua vida de volta, mas recebe também uma terrível maldição: a necessidade de continuar vivendo. Lucia precisa viver para manter de pé a instituição familiar que tanto protege, o que leva a esta obscura conclusão: sua vida não a pertence. Ela só a toma nas mãos em um breve instante: na fração de segundo em que houve amor e possibilidade de futuro. Nada poderia ser mais ophülsiano do que isto: a família como cárcere em oposição a um amor que, por alguma engenharia demoníaca, não é via de liberdade, mas de perdição. Onde fica então o estar livre dessa cela? Onde fica a felicidade? Existe apenas em projeção, apenas em estado de delírio apaixonado.

Viver o resto da vida sob a sombra de uma paixão que jamais foi frustrada (e que portanto jamais irá se curar) e sob a tortura do segredo que deverá carregar para sempre, uma prisão que se sela durante a assustadora cena final (nota: 5ª imagem do slide). Nessa tentativa de fuga, Donnelly deixa Lucia para trás, mas prega sua peça no espectador até o fim. Afora o romantismo épico da encenação, de assumir a culpa de tudo e dar a própria vida por sua amada, o que resta de verdadeiro ao ato de Donnelly é um contorno mundano, quase patético: limpar a consciência na hora da morte.

Filmes citados

Carta de Uma Desconhecida [Letter from an Unknown Woman; EUA, 1948], de Max Ophüls. 86 min.

Na Teia do Destino [The Reckless Moment; EUA, 1949], de Max Ophüls. 82 min.

Sem Amanhã [Sans lendemain; França, 1940], de Max Ophüls. 82 min.

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