Por Daniel Dalpizzolo
A obra de Max Ophüls pode ser sintetizada como um grande ensaio sobre o amor. Mas é preciso ter ciência, antes de tudo, de que este amor sobre o qual falamos não existe por mera representação romântica/açucarada, típica das love histories do cinema. O sentimento entre um homem e uma mulher, por maior que seja sua beleza no momento em que é vivido em tela, cerca-se por fragilidades, consequências e acontecimentos que podem ser circunstancialmente trágicos para alguém, seja para eles mesmos ou para outras pessoas — afinal nesta inacabável ciranda alguém sempre sai perdendo. Nas histórias de Ophüls, os amantes não vivem em uma redoma de vidro; estão em contato direto com a sociedade que habitam e portanto são suscetíveis às mais diversas interferências, à paixão de outra pessoa, ao desejo de um deles por alguém, a um ocasional desvio moral, etc. Ophüls não fecha seus olhos para nenhum dos lados deste jogo. Seja o mais singelo dos beijos ou um passeio de carruagem ao som de uma doce trilha-sonora; seja a desilusão, o desespero, o desfecho trágico de um romance “proibido” ou a necessidade de se superar o passado: para a representação do amor em seus filmes ser plena, ele nos permite experimentar os dois extremos.
Liebelei é o primeiro trabalho construído por Ophüls através dessa complexa visão narrativa sobre o amor, que seria desenvolvida mais tarde em filmes como A Ronda e, especialmente, na obra-prima Desejos Proibidos — para os quais também poderia ser considerado um filme-esboço. Poderia, mas não será, porque tratar Liebelei como um esboço seria reduzir a intensa experiência à qual Ophüls submete o espectador com este monumento cinematográfico — que notavelmente representa o momento em que o diretor, poucos filmes após sua estreia no cinema, começava a evidenciar uma construção de identidade e de valores que viria a ser especificamente sua, de seu cinema.
Em Liebelei, a representação do amor e de suas nuances ocorre em diversos pólos. A história parte de um encontro casual entre dois militares e duas garotas em uma ópera. Um dos homens comanda as investidas e demonstra estar muito mais interessado nelas do que o outro. O motivo da distância de seu colega conhecemos poucos minutos depois: o coração bate por outra mulher. Mas é mais complicado do que isso: bate pela baronesa do reino ao qual servem, a mulher de seu superior, com quem tem um caso extraconjugal às escondidas, e por quem o amor é retribuído. O círculo de relações de Liebelei, tipicamente ophulsiano, percorre diversas formas e representações do amor, e começa a apertar à medida que a inocente jovem se apaixona cada vez mais pelo militar e este passa a correr mais perigo por causa das fofocas que rondam o reino, indicando que ele seria o amante da baronesa local.
A fama de Max Ophüls se firmou principalmente por seus travellings elaborados e pela extrema habilidade em fazer dos planos de seus filmes imagens em movimento – que podem assumir perspectivas opostas a partir de um simples deslizar da câmera, conduzindo o olhar do espectador àquilo que o filme quer que ele veja/saiba/sinta. Mas o que impressiona mesmo na composição visual e no melodrama de Liebelei é a força dos planos fixos sustentados por Ophüls em momentos-chave de sua narrativa, a intensidade que transborda da tela e da impressionante expressividade de seus atores, agregada à precisão dos cortes, especialmente naquelas sequências em que seus personagens encontram-se próximos dos conflitos máximos que suas relações (de amor ou de poder) podem demandar.
É impressionante a encenação de Liebelei, e cito em especial o uso planejado do close (e o saber usar um close, algo que cada vez mais parece ter se perdido com o tempo) em dois momentos muito específicos, que carregam no olhar de seus atores, no timing absorsivo dos planos, um poder dramático quase mítico. No primeiro deles, logo ao início, a declaração do militar à baronesa, ao mesmo tempo preenchida de amor e de lamentação, onde compreende-se o prenúncio da tragédia de Liebelei. Tragédia cujo peso e inflexão serão sentidos mais tarde, já ao final do terceiro ato, no segundo momento de uso do close beirado à perfeição: quando a jovem apaixonada recebe de seus amigos a notícia da consumação da tragédia – quando Ophüls invade a privacidade de sua personagem num plano único de dor insuperável, uma imagem que parece durar a eternidade.
Se ao longo do filme podemos vivenciar o máximo da beleza de um melodrama, por exemplo, com aquele passeio de carruagem pela neve (“te amarei para sempre”, a mais banal das promessas de amor, também um prenúncio irrevogável da desilusão), o terceiro ato é todo ele um contraponto devastador, que surge a partir de um crescendo de tensão e amargura até chegar a um desfecho asfixiante – e o plano final, em que a câmera de Ophüls, aí sim, movimenta-se panoramicamente para deixar o apartamento e refazer solitária um percurso pela paisagem coberta de neve, é de marejar os olhos. Em Liebelei, primeira verdadeira obra-prima de Max Ophüls, encontramos o que de melhor existe no cinema deste brilhante diretor, percorrendo os ciclos do amor e suas mais diversas passagens, do enamoramento à infidelidade, do esplendor de um beijo apaixonado à dor da perda e da morte; ao “para sempre” e o valor que ele possui na efemeridade da vida.