Las preñadas (2022), de Pedro Wallace, lembra a moda dos romenos. Um Doutor Lazarescu sem grandes humores ou uma antítese semântica de 4 Meses, 3 semanas e 2 dias, com uma aparência geral de novelão. O esforço é estabilizar uma abordagem do real através de tragédias reconhecíveis, populares. São intensas crises de maternidade que perpassam um dia na vida de duas grávidas (Ailín Salas e Marina Merlino), ali na fronteira entre Brasil e Argentina. Em sua curta duração, os dramas sociais não são interesses individuais, não sustentam particularidade. O marido alcóolatra, as crianças deixadas sozinhas em casa ou o atendimento precário dos hospitais públicos surgem mais como obstáculos aventurescos do que efetivos estágios dramatúrgicos. O miolo é a parte mais efetiva: a câmera estabiliza, filma detalhes das paisagens que a dupla de grávidas atravessa, ouvimos suas reclamações em monólogo, seus corpos ficam reduzidos no quadro. No resto do filme, a câmera instável tem papel impositivo, seu movimento de aproximação com os atores parece preceder ideias mais articuladas de composição. São boas atrizes, colocadas em situações costumeiramente “latinizantes” (essa imagem da mulher grávida, sofrida, cheia de filhos num barraco de madeira) que entregam, em algum nível, o peso de realidade que o filme sugere buscar. Acaba sendo exemplar como um sintoma curatorial (um comentário banal de se fazer, claro, mas que aqui ganha uma boa justificativa para ser feito): esses filmes bem produzidos, “assistíveis”, com a causa social bem declarada e os gastos públicos justificados, presos num campo inócuo, incapaz de perturbar qualquer gosto. Ao fim da projeção, quase tudo parece resolvido, e talvez esse seja o grande vazio.
Moto (2022) de Gastón Sahajdacny, filme de processos contemporâneos comuns, encontra seu espaço próprio de existência. O “docficção” (sera que poderíamos, em conjunto, encontrar novas palavras para esses filmes?), a cidade como personagem, os tangenciamentos políticos, os motoqueiros (personagens centrais do novo cinema), a dilatação do drama… Tudo que é comum pode ser relevado pelo romance, nos momentos entre os protagonistas Mariano e Constanza, quando enquadrados conjuntamente. Juntos, vivem os dois travellings mais notáveis do longa, um no topo de um morro, com a cidade iluminada em segundo plano, outro ao final, acelerando a motocicleta por uma avenida diurna. Para um filme com esse título, vale perceber seu movimento de lentidão. Até quando filma Mariano em movimento, a sensação é de uma estabilidade prisioneira, uma vivência urbana demarcada pela impossibilidade de progresso. Córdoba existe como terreno irregular. Por vezes, a cidade integra os personagens, no canto ou no centro dos quadros. Outras vezes, parece vazia, em quadros de paisagem quase aleatórios, desocupados de registros memoráveis. Entrecortando os momentos de encenação, estão filmagens em minidv de natureza caseira. São as cenas de efeito sentimental efetivo, parte pela trilha lo-fi, mas majoritamente pelo aparecimento dos grãos da imagem (vale questionar porque tão poucos cineastas utilizam extensivamente os efeitos dessas câmeras, já que todos parecem conhecer suas capacidades). Uma das sequências finais com a filmadora caseira, quando o romance já está efetivado, mostra o casal se gravando em um parque, percebendo os arredores com proximidade, o granulado texturizando toda emoção. As variações de luz ganham dimensão justa, os espaços escuros ficam bem preenchidos de movimento, com os ruídos da tela abastecendo qualquer lacuna dramática que poderia distanciar o projeto de variações substancias. No fim é isso, acolhe-se o romance em tela, quando já não há mais o que fazer. O conforto é um problema grave, será possível mantê-lo continuamente como valor de produção?
O Estranho (2023), de Flora Dias e Juruna Mallon, é aula. O projeto, ao ser descrito, consegue perpassar todos os termos de uso disponíveis no mundo curatorial: territorialidade, ancestralidade, colonialidade, identidade, esse tipo de coisa. Não há mal intrínseco a isso, imagino, já que o cinema consegue existir apesar de sua departamentalização. Durante sua primeira metade, somos apresentados a uma tese um bocado objetiva, compreendemos seu lugar de ocupação e como o filme pretende se mover diante de seu conceito central. Uma câmera precisa dá ritmo ao discurso, somos apresentados a uma cadeia de personagens e percebemos, com fluidez e clareza, suas razões dentro desse cinema. Quando a projeção avança, sua cadência inicial vai sendo cada vez mais apagada, até desaparecer completamente. A partir de dado momento (uma cena específica de dança, de uma consciência de classe culpada e improdutiva, infértil) e de maneira bruta, o longa vai construindo uma sequência de cenas imperdoáveis, onde o conceito inicial (que já estava óbvio em sua abertura, antes mesmo do título aparecer) vai encontrando novos jeitos de ser explicado ao público, com direito a cinco “talking heads” documentais. Olhando ao redor da sala durante a sessão, dava para confirmar que estávamos todos entre adultos, o que torna ainda mais difícil a compreensão dessa decisão maçante, mercadológica, de escolher fazer um filme que acaba pela metade e resolve, pelo resto da duração, explicar o que acabávamos de assistir, para não deixar nenhuma ponta de dúvida sobre suas boas intenções. A sensação principal é de que as diretoras resolveram encenar algo como uma reunião de financiamento, filmar os pitchings do projeto ao invés de seu roteiro (e faz questionar se há ainda alguma diferença entre essas duas coisas). Se o terror dessas últimas décadas é mesmo o abismo do mercado de cinema internacional, O Estranho entra como a figura mais conforme, reconhecível. Da distância entre a Europa e Brasil, das construções malditas em território nacional, resta uma ponte, um caminho único a ser trilhado, sempre dando cada passo com o máximo de cuidado para não ferir qualquer conexão comercial.
Propriedade (2022), de Daniel Bandeira, é um thriller desconjuntado e imperfeito, com grande carga de entretenimento. Habitamos a terra do gênero cinematográfico como irreconciliador de classes, o que parece natural e condizente com as correntezas contemporâneas. Não chega a ser um filme de cerco, já que seus grandes efeitos não são resultado de uma espacialização muito cuidadosa. Também não acredito que o conflito de classe, gerado pela revolta dos trabalhadores de uma fazenda contra seus patrões, seja o motor de suas construções. Creio em uma terceira opção, mais condizente com o que acontece em tela: o encontro de um equilíbrio perturbador de terrores, onde trabalhador e patrão se encontram igualmente animalizados, amorais, movimentados por uma ocasião odiosa que só abre espaço para a matança. Diferente de outros filmes similares, não há êxtase em toda a sua violência, não há prazer na vingança do oprimido contra o opressor. O que se desdobra é um movimento contínuo, imparável, de horrores situacionais, onde os personagens caminham de acordo com a pulsão de morte. Dentre o extenso grupo de atores que protagonizam a revolta na fazenda, não há grandes personagens a serem lembrados, não há grandes personalidades, isso não parece interessar ao filme. O que prevalece é um movimento conjuntivo e relativamente ambíguo de força, uma série de infortúnios cabulosos, construídos por cima de arquétipos de classe, um furor por violência que não é tão dependente de seu verniz social quanto pode aparentar. Fosse o caso, a construção dos personagens seria outra, o engajamento por suas motivações viria de outro lugar. É um filme “de roteiro”, carregado pelo interesse em seus absurdos acontecimentos sucessivos (uma violência que vai sendo cada vez mais despersonalizada, o que é comum a esses projetos). Não é um thriller de grande elegância, não é um filme de conflitos entre enquadramentos, sua tensão e seu entretenimento são carregados por essa força grosseira e inconclusiva, capaz de pensar em diversas imagens sem necessariamente transformá-las numa ideia fílmica encenada, elas ficam acontecendo por entre essas associações consecutivas de brutalidade. Sobrevive, ao fim da projeção, esse sentimento de horror, um astral negativo, um lugar sem heróis ou idealizações de povo. Está aí um elogio possível, dado todo o enfrentamento necessário para encarar Propriedade.
Anotações dos filmes vistos em 26 e 27 de setembro.
Zé (2023) de Rafael Conde é um trabalho consistente, apesar de ingênuo. Encontra-se algumas qualidades em sua aparência. A grande maioria dos planos acontece da mesma forma, com a imagem estática encenando diálogos no quadro, um número reduzido de personagens se conhecendo ou se reencontrando, enquanto o extracampo tenta sugerir um contexto histórico maior para densificar esses encontros.
O clima geral é de uma biografia santificadora. Nesse sentido, a realidade parece custosa ao filme, já que seu posicionamento é o da celebração da memória, de algum tipo de verdade possível, mesmo que afundada no sentimentalismo. A história da vida clandestina de um militante durante a ditadura (interpretado pelo Caio Horowicz) é o tipo de premissa propícia a essas operações, quando se estabelece que a própria conjugação dessa memória já ocupa o espaço das expectativas sentimentais que circundam o desejo de fazer “história”. Ou seja, sua jornada fílmica é circular, começa e termina em um mesmo lugar de percepções onde a realização do cinema cumpre um papel mediador, não criador. Isso é especialmente esclarecido pelo texto, que carrega o efeito de todas as cenas do filme.
Mesmo quando bem localizados no quadro, os atores expressam esse tom de ingenuidade que perpassa todo o projeto: Suas palavras são projeções, espectros, de suas personas, reafirmações cacofônicas do que espera-se de cada personagem. Se o filme parece desejar que sua grande afetação esteja na profundidade dramática, há de se perceber uma distância entre as palavras que são ditas e a teatralidade de suas performances. Enquanto o texto carregado, que não permite tempos de silêncio, didatiza e reitera suas temáticas a ponto de nos questionarmos sobre a confiança do realizador no poder de assimilação do público, o trabalho dos atores é de uma pontuação detalhada, transparece cada sinal de direção em reverberações emotivas. O resultado é uma espécie de anulação dos esforços.
Interessa em Zé perceber um trabalho de rigidez estrutural, superficialmente lustrado por um nível de controle. Caso fosse um drama mais comum, menos inflado de auto importância, esse interesse poderia ser bem maior. Porém, o que sobressai é o seu miolo, sua falência política, uma insistência permanente pelo caminho dos pensamentos curtos, contra a complexidade, pela indiferença às possibilidades radicais de um discurso.
El reino de Dios (2022), de Claudia Sainte-Luce, é um filme simples, daqueles que apostam sua subjetividade no carisma infantil. Acompanhamos a rotina do pequeno mexicano Neimar (Diego Lara Lagunes) e sua vida no campo, cuidando de porcos e cavalos, passando tempo com a avó e aguardando sua primeira comunhão.
A câmera é daquelas que acompanham as andanças e gestos dos personagens em cena, pontuada por breves momentos de estabilidade. Há algumas paisagens de interesse, em especial a carcaça de um avião abandonado, onde Neimar brinca com uma coleguinha. A casa onde mora com a avó e a mãe também é notável, bem iluminada, onde acontecem as cenas mais engajadoras do filme, circundada por momentos de maior desprendimento. Dá para dizer que algumas temáticas tangenciam o filme sem que realmente abarquem sua realização. Pelo título, fica sugestionado que um tipo de crise metafísica ou existencial vá atravessar o jovem Neimar. Isso até acontece nos momentos finais, com alguma rapidez, mas não parece que o filme realmente deseja integrar grandes questões ao seu procedimento. É um trabalho de rotina, daqueles carregados pelo humor e pela “fofurice”, a ponto de que o conflito final (duas mortes sucedidas) parece alienígena ou simplesmente insuficiente para deslocar o sentimento para um espaço de contraste, sendo mais marcante na simplicidade típica desses projetos. Um trabalho familiar, em diversos sentidos, que não tira tanto proveito de variações emocionais quanto de seus procedimentos mais comuns.
Prata Palomar (1972), de André Faria, filme psicodélico e sangrento, deixado às margens da filmografia nacional, integra parte da homenagem a Zé Celso (que co-roteirizou o longa). Descobrir esse tipo de produção em uma grade de festival contemporâneo gera algum tipo de saudosismo diabólico, nostalgia das imaginações latino-americanas mais grosseiras, sempre infladas de ambição, cheias de ideias absurdas.
Mesmo que carregado por algumas imagens comuns da obsoleta “vanguarda” cinematográfica (quem no mundo ainda pensa nesses termos?), como guerrilheiros barbudos, santas violadas (e violentas!), líderes engravatados protegidos por fardados, entre outras passagens reconhecíveis, o longa parece inclassificável. Entre a enxaqueca do cinemanovismo e as fricções dos cinema-de-invenção que surgiam violentamente, entre momentos mais psicodélicos de Nelson Pereira dos Santos e personagens de Elyseu Visconti, Prata Palomar sobrevive de berros e destruições. Proveitosamente apropriando-se das geografias alucinógenas oferecidas pelo século das utopias, o filme atravessa espaços de conflito, da mata fechada à igreja, do terreiro de macumba ao palácio governamental. O ritmo é especial nessas andanças, sendo a primeira parte particularmente veloz e assustadora, cada cena apresentando uma ideia nova, alternando entre imagens alegóricas mais ou menos decifráveis (atenção especial ao espaço secreto que eles adentram no porão da igreja, com as paredes cheias de recortes de revista e pichações apocalípticas). Tudo encaixado na janela quadrada, sempre atenta à composição mesmo em seus momentos mais sísmicos.
Surpreende a constância agressiva do filme (alguns trechos parecem saídos do cinema de terror feito naquela mesma década em alguns extremos da Europa). Os protagonistas passam a projeção inteira brigando, lambuzados de tinta vermelha, de um sangue vívido, muito bonito, enquanto tudo ao redor sugere um mesmo nível de fatalidade. Descamba num terceiro ato realmente carnívoro, preenchido por todo tipo de operação cabulosa e cheio de prazeres no processo. Tudo corre pela tela com voracidade, demonstrando todo o esforço de sujeitos famintos por realizações fantásticas.
O cinema nasceu mudo, mas ainda não havia o silêncio. Este seria uma conquista do próprio cinema, um desdobramento significativo de sua linguagem. Portanto, é possível dizer que o silêncio tem uma história no cinema e é também uma história do cinema.
Uma de suas possíveis origens: as lágrimas de Joana d´Arc, de Dreyer, nos instantes que antecedem a sua morte pelas mãos da inquisição. A câmera, por alguns segundos, interrompe o fio narrativo para mostrar o rosto molhado e o olhar vago da personagem, deixando que o tempo passe e que seja possível visar mais detidamente aquela composição, é aí que o silêncio começa a ganhar os primeiros contornos como linguagem cinematográfica própria.
Na presente edição da Multiplot!, o silêncio se apresenta, como aponta Eni Orlandi em seu livro As Formas do Silêncio, como sentido: não o negativo, a sobra da linguagem, mas como o ativo, com capacidade de significar. Um significar que pode ser o da errância, do vazio, das interrupções, enfim, da vasta capacidade de sentido incompleto dentro da linguagem incerta do silêncio.
Chantal Akerman, cineasta que se dedicou ao silêncio de forma especial em suas obras, aparece em dois textos desta edição, ambos em diálogo com outras obras: em seu comentário sobre Days, Gabriel Moraes procura mostrar como Tsai Ming-Liang toma distância de Chantal, apesar de uma aproximação formal na utilização de planos longos e silenciosos, para construir uma obra fundamentalmente melancólica e de fisicalidade sensória. Já Gabriel Papaléo, aproximando Chantal de Peter Hutton, nos apresenta formas de quebrar o silêncio ao experimentar a adição de música a filmes que se fundamentam na ausência do som.
Ainda segundo Orlandi, o silenciamento surge como o lado negativo do silêncio, já que advém da ideologia que deseja “pôr em silêncio”. Pensar nos efeitos das diversas censuras impostas pela ideologia: recalques, proibições morais e políticas, atravancamentos diversos em consequência dessas repressões. No texto de Ana Júlia Silvino sobre La Noire De,temos o silenciamento enquanto instrumento colonizador, causando a desilusão material e espiritual de uma mulher que se encontra em uma situação de exploração e deslocamento. Bernardo Moraes Chacur, em seu comentário sobre Near Death, documentário de Frederick Wiseman, nos mostra os entraves comunicacionais existentes em situações de tensão entre pacientes, médicos e familiares dentro de uma UTI de Boston.
Talvez como contraponto ao silenciamento colonizador, Georgiane Abreu traz uma perspectiva de um silêncio reverente e cuidadoso em seu texto sobre o documentário etnográfico Reassemblage – from the firelight to the screen. Penso que esse silêncio que se constitui como um se debruçar paciente em função de uma alteridade, também está presente em meu comentário sobre Mato seco em chamas.
E há outros textos que trazem uma diversidade desses silêncios do cinema: silêncio e ruína, silêncio e mito, silêncio e sua relação com os outros sentidos que não a audição, silêncio e palavra. São diversas as formas do silêncio: atravessando as palavras e imagens ou entre elas; ocultando aquilo que é mais importante de ser dito; indicando que o sentido pode ser outro. Todos esses silêncios significantes fazem parte no desenvolvimento da linguagem do cinema, das múltiplas formas em que o cinema, em silêncio, faz a sua história.
Wittgenstein, creio eu, falava que há experiências infensas ao conceito e impossíveis de serem submetidas ao cravo da mediação: a prece, a música, a arte em geral não significam nada, pois não pretendem ser cooptadas pela teia espessa e irisada de significantes da semântica. Elas antes nos mostram coisas, mundos, sentidos, corpos, devires; elas dão a ver. Portanto, há um bruit de fonds imarcescível de silêncio contra o qual se contrapõe ressonante de glória o primeiro plano da aparição destas supracitadas ‘criaturas’ em Mal tropical, obra-prima de Apichatpong Weerasethakul. É uma mulher com rabo de bicho que nos introduz neste cosmo mimético primordial da segunda parte em que homens ainda compartilhavam com animais pedaços de corpo e de ditirambo para contar ainda a mesma história. A história do mesmo? Da natura imemorial?
É aquela que mais absolutamente fala de nosso segredo, do nosso logos primevo, que é a plenitude e condensação por analogia porque prescinde do signo. Godard dizia que “se eu tivesse a força, eu me calaria”; e o que é a força senão a integridade (não estilhaçada pela separação da mediação, impoluta e irredutível à queda da significação) que os condena de forma bem-aventurada ao mutismo do logos originário?
A arte sempre alcançou as profundezas sem precisar nomeá-las, e se Godard lamenta a sua perda é porque antes de tudo é um artista tardio, aquele que tem por objeto propriamente o trabalho da linguagem. A queda, de fato, consiste na necessidade de recorrer ao signo para poder ser; mostrando-nos um mundo que escapou ao fórceps da significação pela boca humana, o artista dos primórdios profere de boca fechada um litígio inelutável, aquele que separa sem chance de remissão aquilo que é daquilo que é dito;Mal tropical é um dos filmes mais sérios feitos sobre esta impossível sutura: só existimos mais plenamente na boca da noite e da floresta mágica, quando nossa figura, nossos gestos linguísticos estão esmaecidos, esgarçados o suficiente para a emergência de uma força das origens, que dizima e aniquila tudo o que de ulterior nos empenhamos em dizer: o plano sequência, a profundidade de campo e locação resgatados pelo cinema moderno ao primitivismo das origens , seja em Feuillade, Griffith da Biograph, Pastrone, ou Thomas H. Ince, além dos nórdicos servem para Apichatpong como um ponto de partida sem volta, mediúnico e rapsódico, para lidar com este mundo subterrâneo e silente que aflora à superfície do plano cada vez que um corpo inerme se move na floresta intumescida de escuridão.
A prova material de que o silêncio devorou a carne do filme e abriu sua embocadura para uma alteridade infensa à cooptação pela significação é a retomada em um cinema tardio que “ultrapassou mantendo” os dados do cinema moderno – som direto, locação, plano sequência. Uma característica que assistiu à autora do cinema e que é retomada em seu crepúsculo: o intertítulo que nos conta o conto que servirá de fora de campo para o conto entoado pelo filme Mal dos trópicos, aquele contexto fecundo sem o qual o texto do filme permanecerá silente: o xamã e sua encarnação no tigre são os princípios de taumaturgia narrativa, deste conto imemorial que precede e possivelmente vai sobreviver ao filme em questão e a todos nós. O silêncio de que o intertítulo é o representante excelso de escritura é o estigma da nossa finitude. Sua cicatriz insuturável: antes de falar ou sermos falados (pelas obras, pela música, que aliás entretém com o silêncio uma relação privilegiada), somos ex-votos do silêncio. A entrada do silêncio na cena amorosa e rapsódica de Mal dos trópicos instaura de chofre uma profundeza abissal, que nenhuma narrativa com raccord diretivo causal teleológico, no esquema campo e contracampo, jamais vai conseguir instalar.
A grandeza do filme de Apichatpong consiste antes de tudo em nos assegurar um lugar na narrativa, retomando os dados do cinema moderno que permitiam, ao mesmo tempo, um lugar identificatório no mundo e a sua distância em uma clareira vidente: na ‘primeira parte’, somos apresentados à família dos personagens, o espaço-tempo de seu trabalho, namoros casuais, cotidiano hebdomadário, mas tudo de sopetão epifânico, como os filmes do Rossellini ou Bergman nos ensinaram a ver em sua cartilha hierofântica: uma viração de existência, o trecho de um corpo, o encontro inaudito entre estes dois dados, um tanto de tempo em estado puro, as coordenadas de um espaço comezinho. Depois, o corte abrupto, a ruptura fatal, que os vai projetar no horizonte do mito, que vai espessar e escurecer as figuras mostradas até aqui segundo o diapasão de um nomos e um logos obscuramente táctil, aquele mesmo primevo que assistiu à nossa chegada ao mundo e será testemunho de nosso fim.
Até aqui, o encontro decisivo com a floresta como o contexto iniciático e a clareira maiêutica da experiência fabulosa só nos aparecera como fresta, quando o rapaz que corta gelo se demorara incisiva, mas fortuitamente a olhar para a floresta, que parecia, segundo a aura benjaminiana, lhe virar o olhar de volta. Mal dos trópicos é destas obras prenhes de aura que sempre vão nos levar a voltar o olhar para trás e para dentro, segundo o paradigma de anamneses que nasce platônica e que permanece baliza de nosso autoconhecimento, agora sob os auspícios do cinema tailandês.
Buscamos, talvez em vão, mas isto nada prova em contrário da fecundidade de nossa investigação, pelas pistas, pelos olhares e pelos rastros que melhor nos poderiam assegurar um lugar no filme, e isto porque o homem ocidental será sempre esta errata pensante credora de significação. A grandeza de Mal dos trópicos reside antes de tudo em saber que a verdade, de que é debitaria toda arte, é o lugar de uma revelação, mas para que haja revelação, é necessário que seja dada a condição de possibilidade do velamento. A segunda parte é o lugar do corpo, do silêncio, da paisagem que agora nos contempla: a primeira, sob o verniz digressivo do cinema moderno, é o véu de Maia cuja revelação nos será permitida efetivar na segunda parte, e reciprocamente se implicam numa diacronia miraculosa; esta estrutura, cuja chave de fá consiste no arremate circular com que o filme se inicia (a descoberta do corpo do soldado apaixonado), é um corpo ressoante de analogia que unicamente ao espectador cabe fazer pulsar, arrematar, levar à plenitude, como em toda experiência hermenêutica poética (e quem há de negar que a essência de toda arte consiste na poesia?).
Se a primeira parte, vigente sob a narrativa ‘moderna’ é aquela que nos permite ter acesso à figuração e estruturas enquanto tais do filme, a segunda parte, sob a égide metafísica do silêncio, nos permite uma abordagem transcendental. O rastro do rastro, aquilo que permite que a primeira metade seja vista com a devida transparência seja usufruída como um assombroso espécime de cinema moderno, mas a Mal dos trópicos, tal como Plataforma, Le monde vivant, Quei loro incontri, não basta robustecer o atalho do caminho moderno, mas estabelecer, sobre os fundamentos deste caminho já traçado, uma rota idiossincrática, não original, mas originária, dada a infraestrutura de um cinema moderno de tudo, o grund da primeira metade. Aqui, este será o lugar do velamento daquilo que só será desvelado a partir do desaparecimento do rapaz, que nos introduz a um filme literalmente pós-moderno, entendendo-se aqui a pós-modernidade não como um arsenal retórico de gosto duvidoso sob a égide de iniquidades como significante flutuante, etc. não: é pós-moderno porque vem depois da primeira parte, sendo esta um experimento digno de Stromboli ou Jaguar, mas não permanece nesta. A complementa e atualiza sob o horizonte que deve preceder e inspirar a tudo o mais – a saber, o substrato de fundamento do filme: a dimensão mimética, inscrita nos corpos fabulosos humanos, da hierarquia mítica dos deuses, tudo, na segunda metade, se plenifica, universaliza e poetiza, porque, bem treinados pelo experimento moderno – plano sequência, som direto, raccord diretivo – somos introduzidos no reino do divino, de que o trágico moderno Hölderlin nos deu descrições tão apofânticas de fábula poética.
O gênio do filme consiste em que jamais Apichatpong literatize a metáfora em Mal dos trópicos, fazendo poesia e erigindo uma mitologia e jamais abandone o hic et nunc deste mundo: somos introduzidos em uma percepção vidente sem jamais deixar para trás a “evi-dência” destes rastros atropelados de poeira e palmas, floresta adentro. Os corpos humanos emulam os dos deuses, mas em instante nenhum deixam de sangrar, amar e morrer.
Falei no início deste texto da prece como de uma linguagem consanguínea ao silêncio por excelência. De fato, se observarmos com atenção analítica, os versículos da Bíblia só nos revelam a Verdade sob a égide da tautologia, do “Eu sou Aquele que é”. Correlata à tautologia sublime da prece, nós temos a figuração do ícone, que em sua frontalidade expositiva sempre foi encarregada de revelar o Dom de Deus. No final de Mal tropical, comparecem na imagem pergaminhos de linho puro onde se inscrevem os ícones a que se dirigem as preces laicas do soldado: “Pelas nossas memórias”, a infinidade da memória da fuga do Egito ou da estrela guia que coordenou os passos dos pastores até a manjedoura do menino Jesus, ou ainda as ressoantes de númen palavras de Buda. Mnêmosis (Memória) foi a musa das musas para os gregos, e não por acaso: é lembrando que o homem entoa sua prece primordial, é lembrando que ele transcende absolutamente a imanência de suas misérias para se alçar a um parentesco com a divindade; ao lembrar, por intercessão da imago-mater do tigre xamã, dos seus amores com Tong, o soldado Keng presentifica na figura espavorida do tigre os contornos figurativos de seu amado projeta e vivifica o seu dorso caricioso: “eu me lembro”, sussurra com o vento da noite aquele cuja figura agora se associou indelevelmente ao animismo do ser.
Neste lento e suntuoso trabalho de campo e contracampo com que o soldado, ajoelhado, dedica uma prece untuosa ao seu amor de sempre, Apichatpong reivindica o sagrado da prece, do confronto sobrenatural entre aquele que crê (no poder do amor) e aquele a quem se dirige esta unção para falar de unio mystica em um contexto de rapsódia tailandesa. Um desperdício de númen, uma configuração estelar onde a finitude e a infinitude contraem núpcias na noite transfigurada deste enleio. Poucas vezes o cinema (sobretudo o contemporâneo), arte laica da encarnação de Deus e, portanto, de certa forma de sua decadência num corpo qualquer, soube como entoar um canto de amor silente, dueto concertante, entente miraculosa onde a mística, o mito e o homem souberam novamente ser um só.
(…) pela primeira vez, a imagem das coisas é também a da sua duração.
(André Bazin)
Em 11 de setembro de 2001 enquanto os destroços das torres do World Trade Center expurgavam fumaça por horas e horas a fio, William Basinski usou sua câmera ao cair do dia para, em seu terraço no Brooklyn, Nova Iorque, fazer de Disintegration Loops 1.1 a antecipação da duração em arquivo. Ao filmar a decomposição do mundo, os cineastas mostram sua reconstituição num universo de arquivo, de modo que a dimensão mortífera transmuda-se em análise, mas também em fórmula conjuratória e rito de passagem (MICHAUD, 2014) e, para Basinski é nítida a dimensão mortífera e o rito de passagem da maneira que o diretor compõe o som do filme.
Se o simbólico cortejo dos corpos a subirem ao céu como fumaça naturalmente viria do luto, interromper o silêncio seria um ultraje, então Basisnki subverte a falta de expressividade da observação em um uma marcha fúnebre própria, repetitiva e principalmente dolorida. Philipp-Alain Michaud também aborda estes temas quando discorre sobre o trabalho de Francis Dubreuil:
A monotonia, a repetição e a falta de expressividade são as vias que conduzem ao conhecimento do objeto. A filmagem dessas imagens repousa num processo de apagamento generalizado, tanto do cinegrafista diante do que ele filma quanto do objeto filmado em seu ambiente, onde ele fica camuflado: nunca oferecido na visibilidade plena que define o espaço figurativo, ele se mantém num retraimento que garante a realidade de seu comparecimento. É assim que se produzem eventos visuais puros, que são esvaziados de qualquer antropomorfismo.
O apagamento generalizado neste momento está em um campo difundido e a definição de Basinski do espaço está ao vencer o contracampo e desaparecer nele enquanto todo o Mundo olhava para este mesmo ponto em diversos planos e distâncias. Para Benjamin, a câmera, à maneira de instrumento cirúrgico, penetra na textura das coisas. Disintegration Loops 1.1. é um filme que conjectura com a noção de loop como o próprio título entrega, mas cria suas camadas de textura e dor. Estamos diante de uma partida sem fim, de diálogo direto entre o lamento e a fumaça que se esvai dos destroços como uma sintaxe narrativa da dor na mesma medida em que coloca em crise a perspectiva de um realizador-testemunha que está em completo silêncio. Reside aqui a duplicidade da epígrafe de Bazin e a duração das coisas e a ilusão de um efeito de salvaguarda que também atesta um processo de apagamento generalizado a citar novamente Michaud.
Estes pequenos apontamentos são para dialogar com a dicotomia da força dos planos e como a música também composta por Basisnki se emancipa do plano como maneira de colocar a imagem em si como uma imagem – em movimento – silênciosa, enlutada, dura, mortífera. Sua marcha fúnebre pode ser um complemento, mas funciona como um elemento móvel ao horror. O que está na superfície da tela ganha per si o significado de uma ideia de duração, de contexto histórico, de arquivo. Enquanto Basinski faz deste fim de tarde que lentamente apaga a fumaça por conta da escuridão de uma cidade que invariavelmente está sem luz, num mundo de aparência, vale colocar que o cinema se faz metáfora do mundo (MICHAUD, 2014).
O deslocamento se justifica justamente por não ser um espetáculo diário como se estivéssemos vendo uma pessoa andando na rua com uma música artificial de fundo e sem questionar, acreditamos que ela está ali para embalar o apagamento do cinegrafista, da montagem etc. Disintegration Loops 1.1. é, antes de tudo, sobre a imparidade do cotidiano, o contato literal como fogo e a morte que revela ao apagar das luzes de um dia ensolarado um outro mundo que Basisnki conlui na disparidade que sua marcha faz com um lamento silencioso que as imagens oferecem. A sintaxe da tragédia se dá na dicotomia silêncio-som e câmera-cinegrafista. Um filme de repetições de um lento movimento, mas de complexidades nas camadas da construção política, humana e cinematográfica.
A importância da transmissão oral no continente africano, segundo Amadou Hampâté Bâ, etnólogo e escritor malinês, se dá porque as heranças culturais e as memórias coletivas transmitidas pela fala são concebidas nestes territórios como sagradas. Para o autor, a performance oral pode ser entendida como um testemunho daquilo que é o indivíduo. Ao falar, o sujeito torna-se a palavra que profere. Ousmane Sembène se dedicou, fundamentalmente, em preservar a tradição oral através da criação de um método próprio. Na estética sembèniana a língua é concebida como um fator primordial para a representação do cotidiano e, com exceção dos três primeiros filmes do diretor senegalês: Borom Sarret (1963), Niaye (1964) e La noire de… (1966), todos os outros são em línguas nativas como o wolof e não em francês.
Em La noire de (Ousmane Sembène, 1966), a protagonista Diouana é uma babá que se muda de Dacar para Antibes, na França, para trabalhar em uma casa de família. Entretanto, em território francês, Diouana quase não se pronuncia, o espectador só constrói um imaginário acerca das opiniões dela devido a uma concepção formal de voice-over. Diouana não dialoga com os patrões, mas seus monólogos interiores, onde se questiona sobre a sua vida na metrópole, são todos em francês. A protagonista entende a língua do colonizador, mas escolhe não a reproduzir. Enredando-se numa fala que só diz respeito a si mesma, Diouana constrói entre a voz e o silêncio, um entre-lugar. Paradoxalmente encontra no ato de imaginação da língua francesa, mas não na reprodução dessa linguagem, um espaço possível de pertencimento.
A primeira manifestação do voice-over é logo na sequência inicial quando Diouana, usando um vestido de grife dado de presente pela patroa em Dacar e uma peruca, desembarca em Antibes e se pergunta, em monólogo interior, se alguém a veio esperar. Ela encontra o seu patrão e no percurso até o apartamento, onde irá viver e trabalhar, Diouana tem o primeiro e único vislumbre romantizado da metrópole. No carro, o patrão diz que a França é um bom país, e a protagonista responde com a única frase que sabe pronunciar em francês: Oui, monsieur(sim, senhor). Quando Diouana chega a seu novo local de trabalho e é introduzida às suas funções, o clima da história muda completamente. As atividades domésticas que ela exerce são muitas e aos seis minutos de filme, com o auxílio do voice-over para representar os pensamentos e a insatisfação da personagem com a rotina, o espectador tem conhecimento de que as funções que ela exerce não correspondem à promessa de trabalho.
O monólogo é apresentado ao mesmo tempo em que a personagem trabalha de forma silenciosa. A sua vocalidade ocorre apenas na representação formal dos seus pensamentos, como acontece predominantemente no filme. Entre reflexões interiores da personagem acerca da França e dos muitos lugares que ela gostaria de visitar, há uma sequência de suma importância. Na cena, Diouana limpa o chão da sala usando uma variação do traje que vestiu para desembarcar em território francês: um vestido de gala, sapatos altos e uma peruca. A patroa reclama da vestimenta dela e, em um plano americano, a batiza com um avental. Daí em diante, a rotina exaustiva só se intensifica. Diouana gradualmente vai deixando de ser um sujeito para se tornar uma ferramenta de trabalho cuja única função é manter a casa limpa.
Em um momento de catarse após repetições arraigadas na rotina metódica, Diouana transforma a sua postura silenciosa em ação e se tranca no banheiro. Pressionando o próprio corpo contra a porta, a personagem escolhe quebrar o fluxo mecânico da rotina. A voz off é inexistente. Diouana não pensa em nada; só age. O banheiro, apresentado pela primeira vez no filme, é o cenário de um momento de suspensão, uma vez que ali a personagem encontra uma saída, um espaço para além da cozinha e da sala de jantar, que vale a pena ser ocupado. Enquanto a patroa bate incessantemente nessa porta, o corpo de Diouana, que como uma máquina nunca para de trabalhar, permanece imóvel pela primeira vez. Silencioso por completo. A câmera, que antes prioriza filmar as mãos que lavavam os pratos e cozinhavam o arroz, agora foca no seu rosto, a humaniza.
Esse dispositivo de tomada de consciência é semelhante ao utilizado no filme Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1976). A narrativa, assim como a desenvolvida em La noire de, acompanha com rigor a rotina metódica das tarefas domésticas. Jeanne, uma dona de casa viúva, levanta sempre no mesmo horário, arruma a casa, acorda o filho e prepara o seu café da manhã. Sai para fazer compras, prepara a comida, arruma a casa novamente e vai dormir. No dia seguinte realiza exatamente as mesmas funções. A quebra do fluxo narrativo está no fato de que Jeanne faz sempre as mesmas coisas, até que, certo dia, acorda mais cedo e decide se sentar por alguns minutos no sofá de sua própria casa. Esse momento de suspensão, onde esse corpo deixa de trabalhar, causa um desequilíbrio na rotina e, a partir daí todas as tarefas que colocavam Jeanne como objeto mantenedor da ordem familiar começam a dar errado.
La noire de possui o mesmo gesto. No entanto, diferente de Jeanne Dielman, os usos do voice-over ilustram uma trajetória de tomada de consciência que ocorre na mente da personagem. A vivência de Diouana na Riviera Francesa tem consonância com a experiência do negro estrangeiro. A linguagem, nesse caso, se configura em mais uma armadilha colonial. Segundo Frantz Fanon “Falar é ser capaz de empregar determinada sintaxe, é se apossar da morfologia de uma outra língua, mas é acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”.
Depois da cena no banheiro, Diouana se recusa a seguir a mesma rotina de antes. Não veste mais a peruca e nem usa avental. Posteriormente, escapa das condições de trabalho análogas à escravidão no mesmo banheiro, encerrando um ciclo de auto-percepção com uma reflexão profunda sobre a ex-metrópole e as pessoas que deixou em Dacar. Silenciosamente, ela faz as malas como se estivesse se preparando para retornar para a África e as posiciona do lado da banheira. Submersa na água, o silêncio de Diouana aponta para um grito de emancipação no único lugar onde se sente livre na França. Sembène utiliza o voice-over como recurso estilístico para permitir que Diouana se aposse da morfologia da língua francesa em seus pensamentos. Entretanto, não permite que a personagem assuma essa cultura – neste caso, o lugar do colonizador – através da palavra.
Nunca houve ‘cinema mudo’, aliás, apenas um cinema surdo ao tumulto que se produzia no interior do espectador, no seu próprio corpo, quando este se tornava a câmera de ecoar as imagens; as do vento, por exemplo.
(Serge Daney, Cinemetereologia, 1982).
Um elevador à espera, seus passageiros entram e saem e preenchem e esvaziam o quadro, num fluxo cotidiano retesado, uma espécie de abandono construído através de uma imagem supostamente banal. Num dos planos mais marcantes de Hotel Monterey, o primeiro longa-metragem de Chantal Akerman, observamos a passividade do comportamento daqueles habitantes temporários do hotel do título, transitórios por natureza, solitários por contexto imagético, fantasmas pela circunstância. A disposição da diretora belga em mapear espacial e sensorialmente aquele hotel qualquer em Nova York parte de uma essência quase de exercício estruturalista para então alcançar uma cidade em transformação, vista por janelas e terraços, intuída, mas não necessariamente vista.
Na solidão dos corredores, a vocação retratista do imenso trabalho de Akerman já aparece viva, mas diferente do som ambiente da cidade em Notícias de Casa, sua obra-prima realizada três anos depois na mesma (não exatamente a mesma) Nova York, aqui não existe som algum; o filme é intencionalmente construído com ausência de banda sonora. Nos travellings austeros do corredor vazio mirando a janela, esse silêncio cria uma tensão claustrofóbica, como se aquele movimento fosse revelar algo que não está de fato lá; encenação criada através de ar rarefeito. Já no plano estático do elevado, a falta de som revela um mundo alienígena, sem contato com a realidade e estilizado justamente pela ausência dos diálogos e ruídos da cidade – não ouvimos o que se espera, o movimento sem contraparte, esgarçando ainda mais o tempo, um passo em falso. Mesmo a libertação espacial do final, ao acessarmos o terraço, soa sob retenção, uma visão descontínua de uma cidade que mesmo das alturas ainda soaria barulhenta.
Se em Hotel Monterey a ausência de som é angustiante pela falta da tapeçaria sonora rica da cidade e dos habitantes que entram e saem do saguão, dos quartos, dos corredores do hotel, em Three Landscapes, de Peter Hutton, o vazio é outro: estamos diante de paisagens majestosas da natureza, com poucos traços humanos, e que estão igualmente sem som.
Por mais que ambos tenham uma tenacidade especial em conjurar drama através do que é concreto e bruto, seja uma paisagem enigmática de um rio ou de Skagafjordur ou o rosto humano calejado de Delphine Seyrig ou Stenislas Merhar, a arquitetura da obra do diretor americano é bastante distinta de Akerman em um ponto específico, uma vez que suas operações foram através da ausência de banda sonora por toda a sua carreira; o silêncio total é sua contraparte visual por definição.
Three Landscapes tem no grão do 16mm dos maiores responsáveis por esse procedimento de tornar o espaço palpável, bitola essa usada por Akerman e Babette Mangolte em Hotel Monterey também; a difusão da luz e a textura da película dando um caráter documental aos dois supostos documentários. No entanto, no que Akerman é crua e concreta em registro de espaço, Hutton é místico e etéreo. Ambos lacunares, ambos misteriosos, mas uma através da aproximação sangrada do que entendemos por realidade, o outro através das distâncias secretas entre mundos – em a ausência de som em Three Landscapes realça também essa distância, porque por paisagens entendemos um som, intuímos ruídos distante, sons se propagando ao infinito, mas ainda presentes, um murmurar dos tempos.
O que acontece quando se propõe um som a essas duas obras tão aterradas no silêncio? Vamos às breves profanações: assisti novamente ambos os filmes ouvindo dois dos meus álbuns favoritos: comentando Hotel Monterey, ouvi Ravedeath, 1972, de Tim Hecker; comentando Three Landscapes, ouvi F#A#Infinity, do Godspeed You! Black Emperor.
O álbum de Hecker, gravado em 21 de julho de 2010 numa igreja na Islândia e lançado em 2011, parte de melodias esparsas tocadas no piano se proliferando pelo espaço, como reminiscências que se esgarçam até esbarrar no noise e no drone, um conjunto ambient melancólico sobre a decadência e destruição de um lugar desconhecido. Combinado com os corredores vazios de Akerman, a sensação de abandono ganha uma ressonância diferente, como se o algo à espreita sugerido pela diretora ganhasse uma ameaça, sem sublinhar suas articulações.
Na longa sequência do elevador, o plano fixo da câmera estacionada no fundo observa o saguão, depois a porta fechada, depois os corredores pouco iluminados, volta para o saguão, volta para os corredores, e todo esse trânsito constante de pessoas e lugares coincide com o segundo movimento de In the Fog, cujos ruídos em loop sujando a melodia do piano abafado tornam a repetição dos padrões da viagem ainda mais soturnos, a duração inquieta dos planos de Akerman tornando-se quase ansiosa. James Benning contou em alguma entrevista que fazia seus filmes de paisagem, extremamente pacientes e com ações comedidas, como contraponto e antídoto justamente de sua ansiedade natural; na guitarra que rasga os loops ambient do álbum de Hecker parece que acessamos uma ansiedade de Akerman, mais sublinhada e pontuada, menos sutil, tão agressiva quanto.
Já na combinação entre Hutton e GY!BE, o abandono social articulado pacientemente pelas imagens do filme ganham contornos de puro horror. O senso de estranheza espacial da paisagem é provocado tanto por imagem quanto som, e a banda canadense transforma a calma insidiosa do diretor em suspense contínuo, tensão em combustão crescente. Num dos planos mais impressionantes, três trabalhadores realizam alguma atividade em cordas suspensas, numa altura absurda e perigosa; a visão mais próxima com as lentes teleobjetivas se concentram no caminho da ação, nos homens a trabalhar; a visão mais distante com as lentes abertas ressaltam o perigo do trabalho e a vastidão majestosa do céu que os engole, ocupando o quadro e trazendo uma dimensão ainda maior para aquele trabalho aparentemente trivial.
F#A#Infinity é pontuado por gravações de vozes como se em transmissões piratas de uma rádio no pós-apocalipse, com depoimentos sobre destruição e sobre o fim do mundo. E enquanto se tem essa imagem dos homens, a voz no álbum fala: “this is the perfect place to get jumped”. O tipo de diálogo de sombras involuntário, como uma batida de portas na sessão de cinema na qual assisti ao filme acordar um dos rostos que dormia na tela no Sua Face de Tsai Ming-liang, que enriquece tanto a experiência de assistir algo que não era para ter conexão tão imediata.
Ambos os exercícios são reimaginações e interpretações livres dos filmes; não evoco a ideia de uma pureza de obra na forma que foi concebida pelos diretores, até porque assistir a esses filmes 16mm em 720p não deixa de ser também uma profanação enorme. No entanto, ressalto que são filmes afônicos por essência, e é fundamental que sejam apreciados também como tais. Filmes em um silêncio específico, com o espírito aberto da descoberta e da ventura que Chantal Akerman e Peter Hutton tanto encorajaram com seus filmes; o som de uma sala de cinema viva respirando, ou de um quarto aonde assistimos filmes, na nossa casa, com a cidade insistindo em entrar pelas frestas e comentar involuntária, e crucialmente, essas duas obras do silêncio nunca total.
Aqueles que foram silenciados precisam falar. Aqueles soterrados pelos vencedores de um tempo linear e uniforme, precisam, ainda que mortos, falar. A morte, aqui, em sentido literal e simbólico, com o poder de representar tudo aquilo que produz o emudecimento, que demarca o lugar do vencedor e do vencido. É preciso, então, que esses mortos falem, que ressurjam dos despojos do tempo e que possam dizer o que precisa ser dito.
No campo artístico, o cinema é uma ferramenta eficaz para cumprir com essa função política da arte, já que consegue produzir diversos jogos e transgressões no tempo e no espaço para que possamos vivenciar as suas histórias e fundamentar outras narrativas para a História. Quero tentar explorar um pouco melhor essas questões através de um olhar sobre “Mato seco em chamas”, de Joana Pimenta e Adirley Queirós.
O filme amplifica as vozes das gasolineiras que trabalham, lutam e se divertem com o máximo de autonomia que conseguem obter naquela realidade pré ou pós-apocalíptica. Por outro lado, penso que o que aprofunda o sentido político da obra não é propriamente o seu perfil militante, mas a fusão entre ficção e documentário e a utilização de planos longos na composição da narrativa. Nesse sentido, quero pensar como esses elementos compõem o filme através de silêncios que a meu ver contribuem para o aprofundamento do caráter crítico da obra.
É possível apontar duas formas de silêncio em “Mato seco em chamas”. O primeiro é o silêncio das vozes emudecidas, o silenciamento. Esse tipo de mudez se apresenta como a expressão mais militante da obra, ainda que suas imagens não sejam convencionais. O silêncio que se faz presente, por exemplo, na madeireira onde as mulheres passam a trabalhar depois da ruína do seu negócio, ou antes do sucesso da empreitada (o filme joga com essa temporalidade circular). É o silenciamento de uma realidade invertida, de quem não é mais dono do seu próprio trabalho e, agora, apenas responde a comandos aleatórios. É preciso lembrar que essas mulheres constroem uma base de extração de petróleo, produzem gasolina e vendem para motoboys da região. Todas as etapas de produção são realizadas por elas: extração, industrialização e venda. Depois de experimentar a autonomia de produzir, o silêncio se apresenta, portanto, nesse lugar da subalternidade e da exploração.
Outro momento que se utiliza desse tipo de recurso, agora através de um efeito de choque dentro da montagem, é o ônibus que se converte em espaço de festa para logo em seguida, em um corte abrupto, transportar as presidiárias para a penitenciária, todas bem sentadas, uniformizadas e silenciadas. Há no filme, portanto, a construção desse contraste entre expressão e silenciamento. As gasolineiras se expressam de diversas formas, mas há sempre a presença da repressão que tolhe, simbólica e literalmente, a liberdade daquelas mulheres.
A filmagem da vitória eleitoral de Bolsonaro é a realização extrema desse tipo de silenciamento advindo de forças externas, só que em um nível de drama coletivo que agora não afeta somente as personagens, mas também nos põem calados. O que o traveling de quase cinco minutos impõe é também o nosso emudecimento incrédulo, porque somos espectadores daquele passado recente e traumático. Ao nos impor de uma vez por todas os limites entre ficção e realidade, instaura-se na obra o efeito da distopia e sua presentificação.
Uma outra forma do silêncio se dá através dos planos longos do filme, revelando aspectos mais imagéticos e contemplativos. Os planos se demoram naquilo que é mais prosaico nas personagens, nos dando o tempo necessário para conhecê-las por meio de suas peculiaridades, em uma dinâmica de contrastes entre imagens/situações. Mais do que acompanhar a trajetória das gasolineiras, nós a sentimos em suas subjetividades, adentrando nos detalhes de suas expressões, contradições, falas e pausas. Contemplamos os silêncios do cigarro, do posto de vigilância, do trabalho da extração do petróleo, das danças, andanças e lembranças que preenchem suas vidas. Todos esses momentos compõem as frechas por onde nós espectadores devemos adentrar de quando em quando para preencher a história das gasolineiras da Ceilândia.
O interessante é que o heroísmo daquelas mulheres acontece através da junção entre o prosaico e o grandioso. São mulheres muito reais, mas ao mesmo tempo estão envoltas em uma pictorialidade mágica através da construção dos planos e daquela ambientação apocalítica de futurismo precário. E assim se desenvolve a lenda das gasolineiras: uma ultra ficção dentro de uma ultra realidade. Talvez esse seja o grande mérito do filme, sua capacidade de documentar e ficcionalizar de modo que esses elementos sempre se interpenetram e se complementam adequadamente.
Quando nos deparamos com a interrupção da narrativa por causa da prisão de Joana (Léa) e vemos essa própria interrupção se converter em elemento estético para o desfecho da obra, mais uma vez o peso daquelas representações recai sobre nós, porque estamos de novo diante da realidade que se apossa da ficcionalidade (ou seria a ficção se apossando do real?), impondo os seus limites e nos fazendo adentrar nessa atmosfera ambígua e politicamente poderosa. O filme, por fim, é silenciado, mas no limite da voz ainda se deve falar e essa fala vem como denúncia contra o emudecimento. Ainda que exploradas, presas, mortas, impedidas de qualquer maneira, as gasolineiras procuram falar, existir e se constituir como uma lenda brasileira, com o devido respeito que todas as lendas devem possuir.
I play because it is one of the things that come out of my existence.
(Wadada Leo Smith)
Quando Pedro [Tavares] me convidou para escrever um texto sobre a influência do free jazz (música de improviso) no cinema, e também no meu próprio cinema, logo aceitei porque é um tema que me movimenta há bastante tempo e a oportunidade de levar essa conversa para a esfera pública não costuma aparecer. Nutro uma paixão duradoura pela música de improviso e uma inquietação enquanto realizador que me proporcionou certa experiência prática tentando encontrar formas de aproximar a realização cinematográfica do improviso musical, testando diferentes procedimentos de filmagem, descobrindo resultados estéticos variados. Vou passar por alguns experimentos e exemplos dos últimos 60 anos com o objetivo de mostrar a importância que essa expressão musical tem no cinema feito aqui e alhures, ontem e hoje. Não pretendo me deter em demasia sobre cada filme, mas a partir deles jogar luz nessa história pouco conhecida. Desejo ainda colocar alguns filmes dos quais participei, dirigindo, tocando ou montando, em diálogo com essa tradição. Falar um pouco de como temos trabalhado e pensado o improviso no cinema.
Podemos começar com alguns exemplos do que é possível ser feito colocando a música na trilha sonora. Lembramos rapidamente de Sarah Maldoror que pôs o Art Ensemble of Chicago em seu filme Monangambé. A música funciona como elemento dramático/psicológico para o que se passa com a personagem aprisionada e torturada, mas é também uma declaração política de Maldoror: se a revolução é um ato de radicalidade das pessoas que a constróem, a música revolucionária também deve ser um ato radical. Não é tão difícil de entender isso se ouvirmos, por exemplo, Albert Ayler ou Linda Sharrock, junto de imagens dos Black Panthers, façam o teste. Imagino que Koji Wakamatsu estava pensando nisso quando fez Êxtase dos Anjos. De um jeito menos óbvio e mais sofisticado Masao Adachi também devia ter isso em mente quando fez Serial Killer. Mesmo Ugo Gregoretti quando fez Apollon, una fabbrica occupata, devia estar levando isso em consideração, apesar da música mais reflexiva.
Pelas bandas de cá pensamos logo em Alma no olho do Zózimo Bulbul onde ouvimos Kulu Se Mama tocada por Coltrane (a quem o filme é dedicado). Aqui também a música tem a função dupla de dramatizar e fazer uma afirmação política. Mas de Zózimo eu gostaria de lembrar um outro momento de sua cinematografia, o final de Abolição: primeiro vemos a estátua de Zumbi dos Palmares na Presidente Vargas, dois planos; ouvimos um sax furioso acompanhado de uma bateria não menos furiosa, baixo e piano; corta para uma imagem do centro do Rio de Janeiro, 1988, 100 anos após a suposta abolição da escravatura no Brasil, a câmera recua em travelling out e em seguida, num movimento de grua, desce revelando uma grade que antes não se via; a câmera estaciona e continua observando a cidade por detrás das grades; a música continua rasgando a imagem, sobem os créditos. De um lado, a música parece acompanhar a radicalidade revolucionária na figura histórica de Zumbi dos Palmares, que através de sua presença no filme faz oposição direta à data oficial da abolição. Por outro lado, a música grita o sofrimento que ainda assola a população negra no Brasil, nos dizendo que a luta segue, que as grades ainda precisam ser derrubadas. Esses poucos minutos parecem encapsular o que o filme estava dizendo até ali, e a música funciona como elemento intensificador, se adaptando, se transformando ao longo desses minutos.
Abro um parêntese, fugindo do assunto, para algo curioso que me chamou atenção. O final de Abolição parece diametralmente oposto ao início de Cidadão Kane, onde a câmera avança sobre a grade onde uma placa diz “não ultrapasse”. Para Welles, entrar pela grade é abrir as portas de um mundo misterioso que iremos conhecer, é começar a desvendar a figura de Charles Foster Kane. Já em Abolição não tem personagem a ser desvendado, o que temos é uma população inteira de desconhecidos que não serão desvendados. Coletivo x indivíduo. Opacidade x transparência. É possível que eu esteja viajando, é pura intuição essa interpretação. De qualquer forma, sobre Abolição e Zózimo Bulbul recomendo enfaticamente o texto de Bernardo Oliveira[1].
Para terminar o raciocínio em torno de Abolição, diria ainda que é elucidativo observar que na história do cinema brasileiro o cineasta que mais utiliza o free jazz em seu cinema seja um cineasta negro. Para além da linguagem musical compartilhada, ou seja, através da música falamos a mesma língua (Juçara Marçal aponta para isso em Delta Estácio Blues), essa constatação sugere uma relação umbilical entre o improviso, enquanto procedimento criativo (poderia dizer sobrevivência também) e a experiência diaspórica. Anos mais tarde Kbela[2], de Yasmin Thayná abriria uma nova página nessa história. Filme que retoma e dá seguimento a algo iniciado por Alma no olho, e, ao mesmo tempo, aponta para novos caminhos. No filme de Yasmin, a fúria do sax e bateria convive com o canto delicado de um ponto para Iemanjá. Um dos gestos mais radicais de nosso cinema recente, onde a música também exerce a função dupla de dramatizar e fazer uma afirmação política.
Em The cry of jazz, de Ed Bland com música de Sun Ra, nos explicam que jazz é o grito de alegria e sofrimento do povo preto, uma música que só poderia ter sido inventada pela população negra, pois é a expressão musical de seu triunfo espiritual (poderíamos dizer o mesmo sobre muitos estilos musicais inventados nas diásporas africanas). Acho que isso nos diz muito sobre o uso que Bulbul e Thayná fazem dessa música em seus filmes. Me faz perguntar qual seria a presença da música improvisada, ou do improviso enquanto procedimento de realização, no nosso cinema, se ele fosse menos branco. O filme de Bland além de explicar o que é o jazz oferece um retrato da vida cotidiana negra, norte-americana, naquele momento. Penso que talvez o filme encontre um paralelo no cinema contemporâneo em Love is the message, the message is death, de Arthur Jafa, pois Jafa igualmente percebe e concebe sua arte como um grito de alegria e sofrimento.
Sun Ra ainda nos ofereceu dois filmes importantes para a história da música improvisada com o cinema, o mais conhecido Space is the place, de John Coney e The magic sun, de Phil Niblock, que dirigiu esse filme, no entanto é mais conhecido por suas composições. Belíssimo filme em negativo, invertendo preto e branco, ressaltando o desenho das silhuetas dos instrumentos e músicos, acentuando através dos cortes os ritmos e texturas da música. Filme que talvez encontre um primo formal em New York eye and ear control, mais um belo e estranho filme de Michael Snow que termina com lindos retratos dos músicos que estão fazendo a trilha.
A princípio eu não ia me deter muito na história do cinema e nem em análises de filmes, minha ideia era dedicar a maior parte do texto aos trabalhos dos quais participei, em parte por ter mais intimidade com o assunto e me sentir mais à vontade de escrever, mas também por saber que esses filmes foram pouco vistos e que ninguém ainda se aventurou (ou se interessou) em escrever sobre a maior parte deles. No entanto, comecei diferente, então vou escrever sobre mais alguns filmes marcantes que podem nos ajudar a demonstrar como pode ser frutífera essa relação cinema-improviso. Dando certo, pode ainda servir como um pequeno panorama dessa história. Já sei que vou deixar muito de fora, então quem quiser conhecer mais filmes sugiro que leiam o artigo de Fabrício Vieira, Cinema e Free Jazz[3].
Step across the border nos oferece um exemplo de como a própria forma do filme pode incorporar uma lógica musical improvisada. A música deixa de ser elemento dramático e se torna o próprio objeto fílmico. Documentário sobre o guitarrista Fred Frith, concebido como um retrato do músico, o filme envereda por outros caminhos e resulta em uma obra regida por uma musicalidade livre que extrapola o gênero cinematográfico. Seguimos as andanças do músico por diversos países em um formato próximo ao road movie, como sugerido pelo título, gênero propício para se abandonar narrativa, pois o movimento do viajante cria a sensação de linearidade, mesmo quando inexistente. Através de cortes bruscos, saltos no espaço e no tempo, movimentos de câmera soltos, atenção aos detalhes na imagem, como por exemplo o efeito do vento nas coisas, e ainda o jogo constante entre as formas visuais e musicais, o filme se livra do formato didático, tão comum em documentários de personagens, e se apoia na força das performances enquanto espinha dorsal estruturante. Com isso, os diretores, Nicolas Humbert e Werner Penzel, conseguem criar a sensação de que estamos sempre no instante presente. Não importa a cronologia dos acontecimentos e sim a presença, no sentido de estar presente de corpo e alma. Desafio nada fácil e que talvez seja um imperativo para se filmar a música de improviso.
Em muitos casos, a busca por essa presença parece conduzir a uma prevalência no uso do plano-sequência: a duração do plano como forma de garantir a integridade performática e musical. Podemos lembrar por exemplo da câmera flutuando pelo apartamento em The Connection de Shirley Clarke. Mas para falar sobre planos-sequências gostaria de ampliar o escopo do free jazz/improviso livre para o improviso em qualquer estilo musical. Isso porque eu gostaria de falar de alguns filmes brasileiros importantes que ao meu ver fazem parte dessa tradição e demonstram muito bem o que é a presença de quem escuta e vê. Esses filmes também servem como belos exemplos de como uma câmera e um microfone de cinema podem se comportar, participando do improviso, dialogando com a performance e com a cena.
Partido Alto[4], de León Hirszman, feito com a colaboração de Paulinho da Viola, começa com o Candeia organizando, explicando e demonstrando o funcionamento de uma roda de partido alto. A câmera de Lucio Koldato passeia pela roda seguindo o compasso da música, tentando antecipar o que vai acontecer e acompanhar o caminho da fala de Candeia e o improviso entre músicos, cantores/as e dançarinos/as. A câmera precisa sambar se quiser participar. Depois, o filme vai a um encontro de partideiros. Mesa, comida, conversa, e a roda começa. A câmera continua zanzando em meio ao pessoal, os microfones fazem parte da cena. A única forma que a montagem encontra de cortar é fazendo uma elipse do dia para a noite. E a roda continua, momento lindo de cinema. Já todos bêbados, tropeçando nos versos, ouvimos em off a voz mansa de Paulinho “A roda de partido é um momento de liberdade, o partideiro mesmo tira o verso do improviso” e depois diz uma frase, que não poderia ser dita de forma mais clara, sobre a beleza da improvisação “A arte mais pura é o jeito de cada um e só partido alto oferecia essa oportunidade”.
Mais cedo no filme Candeia nos dizia “O samba de partido alto, em alguma forma, existe uma grande semelhança com a música nordestina, com repentistas nordestinos. Porque o samba de partido também tem aquela forma da improvisação, a improvisação que vai nascendo não só sobre o tema, refrão, mas também sobre ambiente, sobre um clima que vai se criando aos poucos”.
A Cantoria[5], de Geraldo Sarno, documenta o encontro de dois cantadores de profissão, Lourival Batista e Severino Pinto, para um desafio em Caruaru. Aqui, o plano-sequência também prevalece como opção, mas ao contrário do que acontece em Partido Alto, Affonso Beato opta por manter a câmera fixa no tripé e observar a arte do improviso se desenrolar. Imagino que a decisão tenha sido feita a partir da própria forma como se dá a cena, os dois cantadores sentados, viola apoiada na perna, língua afiada. O público também permanece sentado ao longo da performance. No samba a câmera dança, na cantoria ela se senta.
Em dado momento no meio do filme a câmera usa o zoom que fecha o quadro e se aproxima aos poucos de Lourival e Severino, permitindo enfim uma quebra na rigidez fixa da câmera, nos colocando perto dos cantadores e gerando uma mudança na montagem que passa a cortar de um para ou outro.
Sobre zoom vale ainda trazer uma cena que não é musical no sentido estrito, mas que esbanja destreza na relação da câmera com a cena. Fotografado por Dib Lutfi, O Jogo da Vida, de Maurice Capovilla, nos oferece uma palinha da arte da sinuca com a participação de uma lenda do jogo, o sergipano Carne Frita[6]. Quis também trazer essa cena para o texto por exemplificar como a duração do plano-sequência é utilizada de forma a privilegiar as nuances da performance. Essa mesma cena cortada, utilizando vários planos, não seria capaz de abarcar a tensão a cada tacada e, mais que qualquer coisa, não seria capaz de capturar o pensamento vivo do Carne Frita. A presença da câmera consegue acompanhar as sutilezas das escolhas feitas pelo jogador a cada bola na caçapa. Dib consegue essa proeza se posicionando em uma altura acima da mesa, o que lhe dá um ângulo onde consegue ver tudo o que acontece no jogo sem que haja variação de foco excessiva, a uma distância que o permite fazer o plano geral com a lente aberta e o detalhe da caçapa com a lente fechada. Entre a movimentação do jogador e a da câmera ocorre um diálogo espontâneo que nos oferece algumas pistas do que pode ser um cinema aberto ao improviso. E como vocês podem ver, o resultado é de uma precisão que ultrapassa muita ficção controlada, onde filmar significa realizar o que está no roteiro.
Quando fizemos Os Monstros em Fortaleza queríamos a princípio fazer um filme que fosse em si uma improvisação livre. Passamos um tempo debatendo o que seria um filme-improviso e depois de algumas ideias amalucadas desistimos. Mas de qualquer forma, decidimos que a última sequência do filme seria um improviso de guitarra e sax de bambu (Ricardo e Luiz) gravado pelos dois personagens técnicos de som (Guto e Pedro), cada qual com seu gravador, pois são instrumentos igual ao sax e a guitarra. A câmera é o quinto elemento e mais um instrumento musical participando do improviso[7]. Foi essa a direção principal que passamos a Ivo Lopes Araújo. Juntos entendemos que o plano-sequência com a câmera na mão seria a melhor opção. O filme já estava estruturado, na sua maior parte, por planos-sequências, às vezes fixos, outras com movimentos em panorâmica usando lente zoom e algumas poucas vezes com a câmera na mão. Filmamos essa cena em dois dias diferentes até acreditarmos que um diálogo entre nós havia realmente acontecido.
Essa experiência com Os Monstros foi de certa forma um ponto culminante de algumas outras tentativas de colocar música improvisada nos filmes. Gostaria de dar um panorama.
O primeiro filme que Ricardo e eu fizemos em Fortaleza, também o primeiro da Alumbramento, nos mostrava tocando violão e flauta, respectivamente. O filme se chamava Às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça, ou simplesmente Sabiaguaba. Antes mesmo de ir embora do Rio de Janeiro para o Ceará eu havia tocado o sax de bambu em um filme chamado Amador. Em Estrada para Ythaca fizemos uma cena onde os quatro personagens corriam em uma estrada de terra enquanto passavam a câmera de mão em mão: acaso controlado que é outra forma de dizer improviso.
Uns anos depois, no filme Com os Punhos Cerrados, optamos por uma tela preta enquanto se ouvia a Barry Guy New Orchestra. Tirar a imagem e deixar as pessoas ouvirem a música. Pode ser mais uma forma de levar a música para as telas, porque não? Na mesma cena, Uirá dos Reis participa de uma entrevista que concebemos como um improviso, reminiscência de uma das ideias amalucadas para Os Monstros. Na época, estávamos influenciados pela entrevista de Carlos Castello Branco feita por Antonio Pitanga em Idade da Terra, de Glauber Rocha, filme que considerávamos repleto de boas soluções para a pergunta de como trabalhar o improviso no cinema.
Em O Porto[8], realizado por Clarissa Campolina, Julia de Simone, Ricardo Pretti, além de mim, levamos dois solos improvisados para o filme: Paal-Nilssen Love, baterista que costuma tocar com músicos brasileiros e Mats Gustafsson tocando um saxofone barítono gutural e angustiado sobre a estátua de Pereira Passos.
Alguns anos depois fomos convidados, Ewerton Belico e eu, por Ricardo Aleixo e Marco Scarassatti para participar de um encontro/performance/filme em torno de Exu a que chamamos de padê-improv e demos o título de Vira a Volta que Faz Nó[9]. Marco e Ricardo não queriam um registro da performance, mas que nós fizéssemos parte dela. O plano-sequência com a câmera na mão também foi o caminho escolhido, mas dessa vez havia uma diferença em relação a Os Monstros. Ricardo e Marco se movimentam muito, dançam e andam pela casa. O comportamento da câmera e do som precisavam entrar nesse baile. Aqui optei por manter a lente sempre fechada e me concentrar nos movimentos que me chamavam, evitando a armadilha de querer dar conta do todo e assumir meu olhar na condução da imagem. A gravação feita na casa de Ricardo em Campo Alegre fez parte do Improfest, festival brasileiro dedicado à música de improviso, existindo há anos sem praticamente nenhum apoio.
Fizemos dois encontros, às segundas-feiras, logicamente. Essa versão do Improfest contém um desses encontros. Sentar, conversar, uma cachacinha, cozinhar, tocar, gravar, sentar de novo e conversar um pouco mais. Ritualizar e improvisar.
No ano seguinte, também a convite do Improfest, me juntei com Francisco César, Natália Reis e Fáio Janhan para fazer Lava[10]. Também concebido de forma ritualística, evocamos a forma água, em suas diversas consistências e intensidades, enquanto imagem, enquanto som, para fazer uma lavação. Algumas palavras escritas e dispostas em um papel guiaram a tocada. Chico e eu gravamos a música, sax tenor e piano, e só depois enviamos para a Natália fazer o vídeo a partir da música, invertendo a ordem que costuma acontecer em produções de filmes, questionando a primazia da imagem sobre o som, desierarquizando essa relação. Alguém pode até se perguntar: isso é um filme?
Enquanto escrevo percebo que precisaria de muito mais fôlego para conseguir falar de tudo que gostaria de falar sobre cada filme e cada experiência. Serei forçado a ficar na superfície das coisas, mas espero que o texto atice a curiosidade de quem chegou até aqui. De meu lado, fica o desejo de que essas palavras estimulem outras incursões no assunto.
Mas para finalizar um pouco sobre o que aponta para o futuro. Em duo com Marco Scarassatti seguimos buscando outras formas de seguir desvendando as possibilidades nessa relação entre performance musical e câmera. Dá pra dizer que é uma pesquisa contínua, sem o objetivo claro de gerar obras. Tem mais a ver com o jeito que queremos viver.
Em outra frente, fizemos uma mostra a convite de Samuel Marotta, programador do cinema no Minas Tênis Clube, em que a exibição dos filmes era acompanhada por uma trilha sonora tocada e improvisada ao vivo. Convidamos musicistas da cena local para participarem[11]. Preciso dizer da importância da QI: Quartas de improviso, que há mais de dez promove temporadas de improvisos entre musicistas e pessoas das mais diversas expressões, artísticas ou não. Atualmente lutando para obter recursos mínimos para viabilizar o projeto, as quartas de improviso seguem acontecendo com a curadoria de Henrique Iwao, Patrícia Bizzotto e Marco Scarassatti. Cine Improvisado: música das luzes, não existiria se não houvesse um evento como esse na cidade. Estar na sala de cinema, repensar seu uso, me faz atentar para soluções possíveis que nos ajudem a driblar, um pouco pelo menos, a dificuldade que encontramos com a exibição de filmes na atual conjuntura.
Por fim, vale dizer que essas experiências influenciam também os filmes que não abordam tão diretamente a música de improviso ou o improviso enquanto método, pois o que se aprende ali é levado adiante e testado em outros contextos, afinal com as condições que tive até hoje só se faz cinema improvisando (e não seria exagero dizer que isso serve para a maior parte do cinema brasileiro, mesmo que não queiramos admitir). Bom, outros filmes foram feitos, estão sendo feitos e serão feitos. Mesmo que no meu caso, a esmagadora maioria das vezes sem recurso algum, infelizmente. Seguimos.
Letter to Jane (…) presents a critical analysis of a still single image, subjecting the photograph to an intensive ideological interrogation, completes a historical cycle. In so doing, it once again frame the question: when is a film a movie? Or: what is cinema?
(Annette Michelson, The Art of Moving Shadows)
A unidade primordial do cinema é, de toda forma, a noção de movimento, seja este da ordem do diegético, como um bebê a almoçar em primeiro plano, ou da ordem do mimético, com o vento farfalhando as folhas ao fundo. Porém, narrativo ou não, silencioso ou não, todas as histórias dentro do cinema possuem uma característica peculiar: em algum momento, a palavra se fará presente. É impossível que um filme não passe por qualquer vocábulo incólume, desde a sua concepção até à sua exibição. O ato de editar ou montar um filme exige um léxico imagético. Façam as coisas sentido ou não, ordenar, classificar e estruturar é uma espécie de sistematização do pensamento. Ou seja: por bem dizer, nenhum filme é, de fato, silencioso, no sentido amplo da coisa: mesmo quando não há som ou ruído, algo está sendo dito, na ordem do discurso.
Porém, mesmo que por via de regra a junção de imagens como um todo componham um filme e nós damos a ela sentido enquanto espectadores, unindo as narrativas cinematográficas e, através do princípio da montagem, criamos associações. Parece simples. Hollis Frampton defende que o filme é uma máquina de imagens, e nisso ele não está de todo errado. Mas aqui falamos da junção de palavras. Palavras em grupos podem formar imagens e grupos de imagens podem formar palavras.
Mas o que se pode fazer com a palavra em si, enquanto elemento isolado?
As palavras, em teoria, não se movimentam. São seres estáticos e nós tentamos dar a elas movimento e ritmo com representações visuais (com as artes, plásticas ou não, e na literatura, como os poetas concretos faziam) ou com discurso. Mas a palavra em si não se move.
Logo, um filme composto de palavras é um filme?
É uma representação de discurso?
Afinal de contas a palavra não se move. Quem move ela somos nós.
Retornemos ao questionamento de Annette Michelson sobre Letter to Jane (1982), de Jean-Luc Godard, um filme sobre uma única imagem: Pode um objeto estático isoladamente em um plano cinematográfico ser um filme? Isso é cinema?
Que é possível se fazer um cinema sem som já se sabe. Mas e o oposto? É possível se fazer um cinema somente composto de palavras isoladamente e criar uma voz?
A good thing about reading words and not hearing voices is that you can’t accuse it of being male or female. Also, it’s pleasant not to having a voice yakking (about a film they’re going to make, for example).
(Michael Snow, So Is This)
O pensamento de Michael Snow em termos de linguagem está no cerne de sua obra. Sejam em filmes como Wavelength (com a narração de quatro eventos no decorrer de um dia em uma sala e um glissando de uma onda sonora ao ponto de se confundir com a representação da onda do mar), Back and Forth (com a ida e a volta de uma câmera, e adição e subtração de elementos) ou no ápice da verbivocovisualidade (se é que tal palavra existe), com Rameau’s Nephew by Diderot (Thanx to Dennis Young By Wilma Schoen) onde as palavras se confundem com as imagens e suas enunciações, sendo um experimento mallarmaico pautado no acaso, uma espécie de lance de dados. Porém é em So Is This (1982) em que o elemento fílmico é reduzido a um só: um filme de uma palavra por vez em tela.
So Is This é um filme estrutural e estruturado de maneira simples: cada palavra é exibida em um período de tempo, criando uma narrativa ao seu fim. Não temos ali um filme que conte uma grande história, mas sim um filme que questiona sua própria materialidade: faz-se um filme para falar que a palavra é a unidade individual da escrita e o frame é a menor parte constituinte de um filme. O que Snow propõe não é nada novo; ele mesmo o diz convocando nomes como Su Friedrich, Richard Serra e Drew Morey. Porém, é possível ir até a gênese da questão – afinal de contas, Sergei Eisenstein propôs isso trazendo à baila o princípio ideogramático para a construção de sentido na montagem, onde duas palavras formam uma terceira, e o mesmo se aplica ao ato de montar o filme – porém, ele o faz de maneira muito mais astuta: em um filme composto de uma palavra por vez, ele propõe exercícios discursivos de ritmo, voz, silêncio para além da simples narratividade. A palavra é a unidade significante, e é o que faz com que o filme se mova com esse objeto estático.
Parece complexo, mas Michael Snow nos diz: esse é um filme que “não vai falar sobre si mesmo” (o que é mentira e torna Michael Snow um ‘narrador não-confiável’, um conceito muito caro à prosa como um todo), esse filme já foi feito por outras pessoas, este filme não é para crianças (representando palavras ‘proibidas’ rapidamente), pode ser censurado (ele o descreve como uma violência sexual e verbal, uma orgia de palavras!), esse filme pode ser recontado a quem está chegando (e mais de uma vez e em mais de uma forma), este filme é a junção de todas as cores em luz em uma tela negra, este filme pode ser odiado por quem não entende uma palavra de inglês ou por quem detesta quem lê sobre os ombros: afinal de contas, há uma voz que lê uma palavra por vez em vários ritmos e tonalidades. Você não vê essa voz. Ela é quem te vê.
Em um filme onde cada palavra se expressa unicamente na tela, há a expressão do silêncio, da pausa e da risada por elas mesmas – a palavra Silence, Pause e até mesmo a representação do riso por um ‘Ha Ha Ha Ha’ – conseguem dar o tom em algo tão material quanto a palavra por si só. Snow conta piadas, uma palavra por vez, assobia insistentemente e propõe que se cante internamente, sem mover os lábios, a canção Somewhere Over The Rainbow, bate palmas, ri de maneira funesta e, sem dizer um “A” (com o perdão do trocadilho), ainda por cima questiona os limites da linguagem cinematográfica e da linguagem e sua representação, citando a proposição de Magritte em La Trahison des Images, de Magritte: ceci n’est pas une pipe.
Isso não é um cachimbo.
Mas o que é isso? Isso é um filme?
Isso é a representação de um filme? Isso é um espectro de Michael Snow falando por entre os ombros? Essas palavras se movem e falam conosco? O que é o Isso (ou o this ou o ceci), no fim das contas? O Isso plurivocal pelas tipografias e ritmos de montagem mas, ao mesmo tempo, silente e material da palavra em Michael Snow, constituem um universo de possibilidades discursivas e imagéticas por meio de algo estático e concreto, sendo anterior ao próprio cinema: na mais antiga das histórias se diz que, no princípio, há o verbo.
Desde a década de 70 o prolífico realizador americano Lewis Klahr une técnicas de animação ao cinema vanguardista que através dos últimos anos ajudou a recontar e reler a história americana moderna. Dono de um trabalho único, Klahr passeia por pilares da cultura pop americana como os quadrinhos, pulp fiction, o film noir e tem uma relação estreita com o som – ou a falta dele. Conversei um pouco com Lewis sobre o seu trabalho de modo geral, e, principalmente, sobre sua relação com o silêncio, a dessincronia, a ausência, o ruído, trilhas etc.
Oi Lewis, obrigado por aceitar o nosso convite. Esta edição da revista é sobre cinema e silêncio.
Hmmm…Acho que o silêncio no filme ainda é um som altamente específico. Por exemplo, recentemente completei a trilha sonora de um novo filme intitulado Thin Rain. Inspirado no Film Noir, Thin Rain conta a história de um protagonista amnésico que perde a memória após ser atingido na nuca pelo cabo de uma arma. Antes desse ataque, a trilha sonora tem música sinfônica. Uma vez que o protagonista perde a memória a música acaba e é substituída pelo ruído branco de um faixa óptica analógica de 16 mm em branco. Chamamos isso de “branco” óptico, mas está cheio de som: estalos, arranhões e assobios!
O silêncio foi algo que me chamou a atenção quando vi um de seus filmes pela primeira vez em um cinema. Acho que foi Sixty-Six.
Eu uso principalmente o silêncio em Sixty-Six como um separador convencional do filmes individuais, um limpador de palato de curta duração (5-10 segundos). Mas o curta Ambrosia, que ocorre na última parte de Sixty-Six, é mudo e exigia um sequenciamento cuidadoso para posicioná-lo efetivamente porque obter um filme mudo seguir efetivamente um filme sonoro é um desafio estético. Os filmes em Sixty-Six que precedem diretamente Ambrosia precisavam gradualmente acalmar para ter algum sucesso. Considerando que, o filme que se seguiu Ambrosia e voltou a ter som, teve uma flexibilidade muito maior em termos de o que sua trilha sonora poderia conter.
Eu gostaria, se possível, que você falasse um pouco sobre a relação de duplicidade imagem-som, já que suas imagens envolvem um caminho que sinto que é de emancipação justamente pelo uso do som.
Eu não descreveria minha relação com som e imagem como “dúplice”, mas esse é um pensamento interessante. Eu não estou muito claro sobre o que você descreve, mas tentando adivinhar o que eu suspeito que você queira dizer, eu raramente estou interessado em criar uma paisagem sonora “realista” ou completa. Muitas vezes minha abordagem resulta em um uso limitado ou focado de som em que apenas algumas partes do som que uma imagem pode sugerir são representadas auditivamente. Partes da imagem que não são representadas permanecem silenciosas e visuais.
Nos seus filmes costuma haver uma quebra de silêncio muito consistente, como o seu filme mais recente A Rosa Azul do Esquecimento, que me lembra um musical e logo se encontra na confluência do silêncio e de uma narrativa em signos fortíssimos.
Em A Rosa Azul do Esquecimento (The Blue Rose of Forgetfulness, 2022) acho que o exemplo mais claro do que você está perguntando sobre ocorre no quarto filme da série – Blue Sun. Este filme utiliza como material de origem imagens de uma história em quadrinhos do Agente Secreto da final dos anos 1960. Usei uma caixa de luz para iluminar os dois lados da história em quadrinhos e revelar sobreposições. Em minhas filmagens, procuro então colher o mais interessante dessas sobreposições. A trilha sonora de Blue Sun tem 3 seções diferentes, sendo a primeira a tocando ao contrário de O cisne de Tuonella, de Sibelius. Após 8 minutos a peça termina e esta exuberante música orquestral dá lugar a um ultra mundano som de paisagem urbana que registrei de pássaros cantando e carros passando que dura por aproximadamente 5 minutos. Depois disso, apenas nos últimos 30 segundos de imagens, há um silêncio que cria uma espécie de vazio, ou uma ausência, como o ar a escapar de um balão. A atenção total do espectador agora é brevemente dada às imagens. Todas as 3 abordagens ao som alteram significativamente à forma como o espectador experimenta a imagem. Essa mudança de envolvimento do espectador ao longo de toda a minha filmografia é uma parte importante de seu envolvimento e estruturação estética para mim. Concordo que posso ser descrito como fazendo “musicais”. No nível mais óbvio quando uso músicas pop como trilhas sonoras, as letras geralmente contam uma história e muitas vezes agem da mesma forma que o diálogo ou a narração de voz em um filme narrativo. Mas, assim como no cinema narrativo, em que o roteiro não é o filme, as letras também não são o filme aqui. Minhas imagens alteram, contradizem e também apoiam as letras. Por exemplo, em meu filme de 2010, Nimbus Smile, eu uso a icônica música do Velvet Underground, Pale Blue Eyes, como trilha sonora. No entanto, a mulher dos quadrinhos que estou usando como protagonista claramente tem olhos negros, não olhos azuis. Isso levanta questões sobre se ela é a mulher sendo cantada sobre. Simultaneamente a encenação é preenchida com imagens que contêm diferentes tons de azul. Espero que o público perceba e pergunte por que esse deslocamento de cor do azul dos olhos da protagonista feminina na letra está ocorrendo e o que ela pode expressar.
Em Prazeres Circunstanciais (Circumstantial Pleasures, 2020) não é uma mudança para o silêncio que acontece, mas uma grande mudança que ocorre de forma diferente através de uma viagem de trem com os sons de avisos e do próprio motor. Como você pensa sobre esse tipo de composição?
Prazeres Circunstanciais difere da maioria dos meus outros filmes porque é preocupado em descrever o mundo contemporâneo e apenas o muito recente passado. High Rise, o filme de trem que você mencionou acima, é o único filme da série inteira que não usa música para sua trilha sonora. É uma ação ao vivo, filmado no meu telefone na China durante o verão de 2016 em alta velocidade no trem viajando para Pequim. Filmado em um plano contínuo de quase dois minutos são as torres de passagem de um enorme complexo de apartamentos que está sob construção. Este complexo de apartamentos não tem som audível. O som de sincronização ouvido em High Rise é do espaço fora da tela dos trilhos do trem e do vagão de trem interior em que estou viajando. Este filme fornece uma forte contraste com os outros filmes que o precederam na série, já que nenhum deles são de ação ao vivo e todos usam imagens de colagem de quadro único. Mas uma coisa engraçada acontece – os prédios em construção são tão caricaturais como em aparência que vários membros da audiência me perguntaram o que exatamente eles estão vendo – se High Rise também é uma animação e não um filme de live-action.
O que me fascina nos seus filmes é que existe esse tipo de deslocamento, mas ao mesmo tempo há uma ligação muito forte com um período de tempo específico, como o Film Noir. Suas trilhas sonoras reforçam uma jornada no passado, mas o que você faz com o silêncio é um trabalho que se baseia na contemporaneidade a meu ver, principalmente quando falamos de cineastas experimentais. Você acha que há algum sentido nisso?
Sim, é uma percepção interessante. Ser um pensador associativo e montagista – pretendo muito criar experiências que possam ser compreendidas simultaneamente de várias maneiras diferentes, mesmo que pareçam contraditóras ou paradoxais. Eu também incluo anomalias visuais em meus filmes de imagens atuais para deixar claro que meus filmes apesar de serem historicamente descritivos estão sendo feitas no presente.
O som do cinema experimental tem alguma influência no seu trabalho?
Sim, claro. A influência mais óbvia é o meu uso da música, tanto pop e clássicos. Sou especialmente grato aos filmes de Kenneth Anger, Bruce Conner, Jack Smith, Ken Jacobs e Harry Smith. A maneira como todos eles usaram a música como fonte de material de colagem e também como elemento essencial de sua montagem foi seminal para mim como desenvolvimento para ser um cineasta. No entanto, acho que vale a pena notar que quando decidi as trilhas sonoras tão centradas na música como têm sido nos últimos 30 anos, isso foi considerado uma escolha muito inaceitável pelo mundo do cinema experimental. Lá era essa ideia (menos predominante agora, mas ainda existente) que ser music-centric estava fora de moda e era uma abordagem muito fácil – como se estivesse trapaceando (risos). Que ser centrado na música era algo que o filme experimental havia superado e deixado para trás, ao invés de ser uma escolha de gênero com um rica e fértil tradição e história própria com altíssimos padrões de eficácia assim como qualquer outro gênero.
E logicamente, seus filmes são intrínsecos à experiência de leitura de histórias em quadrinhos junto com a projeção que pode ser composta por trilha sonora ou não.
Meus personagens costumam falar na palavra balões das histórias em quadrinhos. às vezes o que eles falam não é para ser entendido e é por isso que as palavras são riscadas ou as frases são interrompidas. Esses balões de fala servem apenas para indicar que a fala está ocorrendo – há muitos momentos semelhantes em filmes narrativos onde o diálogo é inaudível. Além disso, às vezes eu corto um personagem de quadrinhos e deixo em anexo algumas palavras que eles estão falando na história de onde foram tiradas. Essas palavras raramente se relacionam com a história meu filme está dizendo. No entanto, essas palavras sugerem claramente a história dos meus personagens apropriados. Eu quero que o público pense sobre esta história do contexto original em que meus personagens existiram. Meus personagens falando em balões de palavras em quadrinhos raramente falam em voz alta. Eu realmente gosto desse tipo de deslocamento de ter o som aparecendo visualmente. A especificidade desta visualização que tento fazer como algo preciso e possível. Por exemplo, há um momento em Alceste, outro filme de A Rosa Azul do Esquecimento, onde a personagem-título tem um orgasmo e ela diz “Oh, Oh, Oh”. Isso é escrito à mão em caneta, enquanto normalmente, quando Alceste fala, aparece como palavras digitadas em balões de fala. A caligrafia transmite tanto a intimidade quanto a individualidade desse momento.
O quanto você quer controlar a interpretação do significado do seu filme e se isso é uma consideração para você durante o processo de criação?
Sim, considero a recepção do espectador ao fazer meus filmes. Por exemplo, a descrição do diálogo em Alceste que acabei de falar pode ou não ser compreendido por um público. Muitas vezes estou dizendo a mim mesmo uma história em minhas escolhas estéticas que sei que serão apenas parcialmente compreendidas pela maioria dos meus espectadores. Através de uma longa experiência de trabalho desta forma, eu tenho aprendido que cada espectador irá montar as imagens para especificidades idiossincráticas de seus interesses, experiências e subjetividades. Em efeito, muitas vezes inventam sua própria versão da história que tem pouco a fazer com o que estou tentando transmitir. Estou confortável com esta abertura de interpretação e considero isso um ponto forte da minha narrativa.
Falando especificamente da A Rosa Azul do Esquecimento, como você criou a trilha sonora do filme e como foi trabalhar com essas músicas como dispositivo dramático? Há um uso muito interessante de dessincronização [de-sync] nele.
Ao criar a sequência [de filmes] para A Rosa Azul do Esquecimento, encontrar o fluxo da música e do som tornou-se a prioridade de como os filmes me permitiriam sequenciá-los. Fiquei chocado com a especificidade desse fluxo. É provavelmente o sequenciamento mais forte dos meus filmes sonoramente que eu já criei. Eu sou especialmente satisfeito com o fluxo dos primeiros 4 filmes – Monogram, Swollen Kisses, Capitulations Promise e Blue Sun. Isso não é algo que eu intencionalmente defino para realizar, mas descubro como uma essência/aspecto desses filmes enquanto eu tentava sequenciá-los. Foi muito surpreendente para mim – eu nunca teria pensado em sequenciá-los do jeito que eu fiz. Por exemplo, eu imaginei que Capitulations Promise, o filme com a música da Lana Del Rey, nunca poderia seguir o filme Swollen Kisses com as canções de Julie London. Eu pensei que precisariam ser separados por causa de sua semelhança de sentimento e humor. Em vez disso, descobri a eficácia de sua proximidade intuitivamente através de um árduo processo de tentativa e erro que exigia múltiplas visualizações de diferentes sequências de teste. houve uma grande crueldade e honestidade necessárias para acertar. Trabalho muito duro! Quanto ao que você está chamando de “de-sync”, nunca ouvi esse termo antes e gostei muito! Eu mantenho a exigência muito alta em termos de ter motivos para usar uma determinada peça de música, especialmente canções pop. Muitas vezes é importante que a imagem entra e saia de sincronia com a batida da música para criar um contraste e contraponto ritmicamente. Como já disse, estou muito interessado em mudar o envolvimento do espectador com a imagem à medida que o filme avança – então passando da música para o silêncio ou efeitos sonoros, muitas vezes produz uma significativa mudança que altera a forma como as imagens são absorvidas e compreendidas por um espectador. Eu também costumo editar imagens para serem muito ativas e rápidas em uma breve pausa silenciosa na própria música. Minhas edições estão continuando o ritmo e também criando um som silencioso que preenche visualmente essa lacuna auditiva.
Falando mais em de-sync, como você torna isso uma opção em seus filmes?
Swollen Kisses é um bom exemplo de como trabalho com o que você chama de de-sync. Criei um mash-up de músicas da Julie London onde ela é literalmente cantando consigo mesma. Tive a ideia de fazer isso porque estava atento ao fraseado de Julie London e o tempo claramente excessivo que ela pausas nas entrelinhas da letra. Esta pausa silenciosa foi longa o suficiente para permitir que outra letra de uma música diferente de London fosse cantada. A justaposição resultante das letras de 2 baladas românticas cria uma nova versão alternativa de ambas as músicas. Há uma abertura narrativa, poética oferecida por esta abordagem que encoraja a interpretação do espectador – um novo e terceiro fluxo que contém continuidades e descontinuidades assim como minhas imagens.
Trata-se de um problema crônico, em geral. Surge da insistência por determinados experimentos e encontra, nos entraves da realização, um aprofundamento pela problemática crônica, pelo que resiste na persistência por determinada imaginação fílmica e pela posterior determinação de sua duração em tela. Nos pedaços de película revelados por uma câmera digital, ou em camadas de imagens pixelizadas sobrepostas por outras dezenas de camadas, inscreve-se a busca pela formação de uma imagem que seja inédita aos próprios registros que a produziram, a revelação de um organismo interior que consiga ser capturado através do rearranjo de suas formas originais. Podemos falar em termos de uma pequena expedição arqueológica de achados crípticos, típicos das profundezas e catacumbas, onde exista similar valor entre cavar e enterrar.
Em sua cadeia de produção individual, Vinícius Romero estabiliza uma rede variada e particular de cinema, protagonizada por composições materiais de diversos processos cinéticos. Comenta-se, a seguir, quatro filmes inéditos.
Neste ar, de onde chega um fabuloso marinheiro para ocupar o seu lugar entre as esferas (2023) é um filme gerado por trabalhos de remontagem ao longo dos últimos dois anos. Nesse caso, as imagens acontecem por modulações de caráter superficial, são sobreposições entre registros digitais e filmagens em VHS que ressaltam as camadas superiores da tela. Flores, paisagens e atores de cinema, em balanço de potências, escorrem pelas suas cores saturadas, são liquidificados pela fricção dos meios de registro, a filmagem que filma a filmagem de outros filmes, despejos de pixels sobre grãos que formam correntezas de movimentos sobre as imagens. Mas o efeito não é apenas gráfico, torna-se fílmico na montagem, por composições fragmentadas de tempo onde as imagens escapam com rapidez. Algumas retornam em aliterações, outras se diluem por entre as variações temporais que montam uma sequência concisa (ainda que imprevisível) de formas. A montagem de Neste ar também deve ser notada, dado o uso do VHS, pela atribuição dos glitches em seu arranjo, que alterna planos como alternativa ao corte seco, uma colagem integrada aos efeitos, dividindo as cores, derretendo formas. Os glitches aparecem como uma atribuição orgânica da ferramenta de registro, dentro de um projeto soterrado pelas possibilidades múltiplas da artificialidade, o analógico convulsionado.
Neste ar é um curta silencioso, com uma breve trilha musical protagonizando os momentos finais. Esse artifício é uma recorrência dentro dos filmes do Vinícius, quando um trecho sonoro aparece rapidamente após vários minutos imagéticos. É um efeito de razões esclarecidas, comum a quase todo tipo de cinema, o abandono e a presença do som, mas o que vale ressaltar são as variações específicas do método em suas diferentes reescritas internas.
Nesses filmes, de caráter rítmico muito denso, comumente relacionado ao musical, a presença da música acaba por comentar-se de maneira inevitável. Em Los dias. Sálvame. Las noches. Hueco (2023), a estrutura é arranjada através dessas variações sonoras. Dividido em “movimentos”, propriamente determinados pela pontuação dos diversos títulos que existem dentro do título, trechos fílmicos são apresentados com recortada trilha sonora. As partes do filme são separadas por algumas telas-preta silenciosas (longas “pontuações”, reticências), que adensam o nível do efeito proposto por cada trecho de imagem e som. Los dias… consiste em seu trabalho por cima do fotograma digital aliado à dimensão de uma lente analógica, seus registros espaciais e luminosos que surgem de atravessamentos cotidianos, o problema crônico aparecendo através das crônicas. Os saltos entre os fotogramas unidos truncam a fluidez, não são imagens onde a abstração escorre pelo registro, ela é moldada por movimentos retilíneos.
O grande momento está na parte final, quando diversos cruzamentos entre luas passam pela tela preta. A lua faz diagonais aceleradas pelo quadro, muda de tamanho, se multiplica e desaparece. Um trecho de programações mais simples, estabelecidas em um efeito objetivo na reorganização astral, que demonstra não apenas sua qualidade temática como também trabalha por possibilidades mais raras da sobreposição, buscando por imagens que, amontoadas, se dissipam ao invés de aglutinar.
Ruler of the great heavens, are you so slow to hear crimes? And so… / Hieronymo está louco de novo (2023) é um caso contrário ao anterior. O curta, dividido por duas cartelas de texto que apresentam outro título fragmentado, é de fixações por textura e suas ocorrências abissais. São rearranjos multidimensionais de natureza obscura, ondas intensas de texturização que apontam para choques entre diferentes movimentações internas. Alguns rasgos luminosos atingem a superfície do quadro, outros giram tridimensionalmente. As imagens sem som variam através do corte por seus modelos de estrutura material, mesmo quando desprovidas de uma forma fixa. Podem ser vistas como ferrugens ou infecções, são imagens que se alastram pelos cantos e para dentro de si mesmas, constituições caóticas de luz. E a conclusão é novamente sonora: em um último plano nítido, um pôr do sol visto do mar é sobreposto por um trecho de canto, um deslocamento final que dialoga com todos os outros.
O Quarteto de Dante (2023) é outro tipo de variação sistêmica. O título e a estrutura do filme comentam Brakhage, mas seu processo caracteriza sua particularidade esportiva de apropriação (que pode ser tanto lúdica quanto cínica, dependendo do espectador). Ele usa a revelação de película através da câmera digital como uma unidade de movimento vertical, o atravessamento dos frames pintados em uma coluna contínua que se movimenta no quadro, de baixo para cima (o que já o diferencia de Brakhage, cuja colagem entre pinturas se dá por cortes de variação molecular frame-a-frame). A tela é divida em quatro, aproximada, afastada, mas todas as mudanças se dão em níveis de enquadramento, enquanto a película segue a trilha da coluna vertical. As texturizações da tinta na película variam pelo relevo, se espalham em dimensões rasas, ramificam-se por envergaduras coloridas ou reluzem como superfícies plásticas endurecidas. A luz, processo mais custoso às revelações materiais que possibilitam qualquer filme, é outra protagonista do processo que rearranja suas capacidades. Quarteto de Dante protagoniza a luz mais constante de todos os filmes comentados anteriormente, no fundo branco que reluz o frame para possibilitar a revelação da película e que, constantemente, escapa pelas frestas das pinturas como um segundo plano.
Essas projeções comentadas revelam permanências experimentais aliadas a um esforço de atribuições. Nesse terreno fertilizado com sal, interessa ser percebida certa constância obsessiva por ideias a serem testadas por seus próprios limites, em uma corrente afirmativa de problemas. Uma série de realizações cuja maior preocupação sugere ser o efeito da dissociação através de diversas associações, composições onde o registro se torna a forma, esculpe a si mesmo até perceber o que permanece e o que se desfaz.
Antes mesmo do início, um aviso nos informa de que o filme foi intencionalmente não legendado. Já de partida, estamos diante de um distanciamento da palavra falada que supõe uma estética que se faz sobre uma certa forma de silêncio, que se faz com uma linguagem de hipervalorização dos espaços, corpos e objetos em quadro; uma estética que leva ao limite a fisicalidade como premissa de construção tanto do impacto sensório quanto das estruturas de significado da diegese. Se a palavra é um dos instrumentos mais eficientes para a elaboração discursiva de um filme, para a engenharia de um projeto de ideias que tende a se valer do texto para orquestrar a própria hermenêutica na qual procura operar, caberia, a partir desse disparador, avaliar quais pontos de acesso um filme que resigna abertamente esses caminhos pretenderia conceber.
É certo que levantar uma questão dessa ordem implica pensar problemas de espectatorialidade, e ainda que a essa altura seja um assunto muitas vezes desgastado e infestado de lugares comuns, Dias (2020) age diretamente sobre princípios epistemológicos e empíricos do ato de espectatorialidade. Narrativamente, o filme não poderia ser mais simples: a sinopse de duas frases que se encontra por aí basicamente resume a totalidade da história. Há uma cena de planos longos em que um personagem realiza tarefas de casa – lavando a salada e descascando legumes – à qual é impossível assistir sem pensar em Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman. Em muitos sentidos, não é por acaso, porque em Dias, assim como também muito se falou do cinema de Chantal, “nada acontece”.
Levada literalmente, é claro que a expressão é uma falácia autoevidente, mas o seu teor pejorativo parte não de um lugar genérico, mas específico: é uma resposta de uma espectatorialidade arraigada sobre um modelo narrativo institucionalizado que atravessa a história do cinema americano. A questão, portanto, não é exatamente que “nada acontece”, mas que não acontece nada do que deveria acontecer. O ponto de ruptura está na noção de que, para Chantal – tal como para Tsai Ming-liang –, a maneira com que um conjunto gestual se dilata no tempo é definidora da matéria histórica e dramática que articula os significados de um corpo no mundo. Para a narratividade de um cinema americano informado por “escolas de roteiro”, drama e história são problemas de estrutura narrativa mais do que de imagem; são questões de encadeamento de causa e consequência entre blocos narrativos mais do que de desenvolvimento da ação no plano.
A aproximação entre Dias e Jeanne Dielman não pretende assumir que os significados da dilatação entre os dois filmes são os mesmos, já que a viscosidade dos dias para Tsai, por exemplo, é muito mais melancólica do que opressiva – como é o caso para Chantal. O sentido da comparação está em como, apesar dessas e outras diferenças, ambos estão similarmente localizados diante de uma certa expectativa narrativa e estética. Tendo estabelecido esse parti pris é preciso, no entanto, investigar a especificidade de Dias em relação a esse terreno, caso contrário o argumento se bastaria indistintamente para qualquer filme de planos longos sem amarrações convencionais de roteiro.
Se o filme de Chantal parece sempre reconhecer tacitamente – e lutar contra – a força gravitacional dessa normatividade narrativa, temporal e estética na epiderme de suas imagens, de tal modo que a densidade atmosférica que transcorre Jeanne Dielman sob a chave dos seus conflitos de gênero é também uma metáfora sobre os regimes de visibilidade implicados nos instrumentos de um fazer cinema hegemônico, fazendo com que o filme ocupe ativamente o lugar da disputa, Dias, por outro lado, é uma espécie de travessia sobre o pathos da solidão contemporânea das cidades, que existe em uma dimensão estética alternativa, pós-narrativa – se pensada em termos convencionais. Enquanto para Chantal importava tensionar as estruturas simbólicas hegemônicas atacando suas fronteiras, para Tsai o movimento está mais ligado à criação de um arsenal estético autônomo – ou seja, cujos significados não se organizem como terceiros da oposição entre duas estruturas simbólicas, mas nos seus próprios termos.
Assistir a Jeanne Dielman é como assistir a dois filmes em um: em primeiro plano, aquele no qual “nada acontece”, e em segundo plano, o regime de visibilidade no qual todos aqueles filmes em que as coisas “acontecem” estão sublimados no reconhecimento de que o que existe entre as suas elipses é a matéria mesma de construção do filme de Chantal. No caso de Dias, temos o inverso: o filme é como uma ilha esquecida pelo tempo cujos referentes simbólicos naufragaram em terras distantes e agora o que resta é o mergulho nas águas profundas de uma cosmologia soberana que avança sobre si mesma a todo vapor. Em outras palavras, é um filme de imanência radical do plano: só o que importa, só o que há, é o que está na superfície da imagem. É um filme sobre o qual não se poderia dizer que algo está à flor da pele, porque a fisicalidade não é circunstancial: à flor da pele é um ser e não um estar, é uma condição de existência das suas imagens.
Em Dias, os elementos que compõem uma imagem cinematográfica – corpos, espaços, objetos, cores, movimento – não formam uma estrutura de representação, não reportam a uma realidade exterior os seus significados. O filme é uma experiência estética que testa os limites do exercício sensório que se dá entre um corpo e uma imagem no ato da espectatorialidade, e é aí que precisamos retomar a questão inicial do texto. A cena da massagem no hotel, ponto-chave, a partir do qual tudo parece orbitar ao redor, lida intensamente com diversas camadas da experiência estética. Ela tem um efeito hipnótico que dialoga com o ASMR – no sentido de suscitar uma atração sensorial pela audiovisualidade. A cena também leva ao paroxismo a elaboração de intimidade e tesão como elementos estéticos, a partir da qual, inclusive, faz-se uma relação de expectativa e catarse que é inerente à própria composição do plano, com uma masturbação em extracampo que dobra a aposta na economia de atenção que se pretende gerar sobre a superfície.
Se a relação entre excitação e gozo é a de um processo constante de estímulo rumo a um extremo de prazer, a cena da massagem é uma tentativa de produção do gozo estético, ou, dito de outro modo, como criar uma dimensão de fisicalidade, a partir de ferramentas audiovisuais, que se aproxime em intensidade o máximo possível de uma experiência sexual. Por isso, a espectatorialidade é um problema importante para Dias: não é sobre ver um filme, mas sobre literalizar a premissa de experienciar um filme, como um ato de corpo e alma. A imagem cinematográfica como esse evento que se faz no modo com que um corpo sente o atravessamento de uma audiovisualidade.
A cena em si é de uma potência acachapante, porém o que verdadeiramente define a sua força é o contraste com todas as outras que existem ao seu redor: imagens geladas, cheias de espaços negativos no plano e afundadas em sentimentos de solidão. Dias é como um grande experimento kuleshoviano de dilatação. Da mesma maneira que, para Kuleshov, o objetivo era compreender os resultados durante um processo de montagem entre A, B e A no qual A apareceria reconfigurado a partir do contato com B – ainda que se tratasse da mesma imagem –, para Tsai, é como se a cena da massagem no hotel fosse B e todo o resto fosse A.
Por mais que, ao pé da letra, não se trate da mesma imagem relida por uma nova chave de significação, a possibilidade de aproximação com Kuleshov está dada porque a diferença de narratividade entre as imagens, entre o que está acontecendo em cada uma, se o personagem está andando na rua, observando a paisagem ou fazendo tarefas de casa é bem menos decisiva do que as experiências sensíveis que elas conseguem produzir a partir da solidão. No fim das contas, outras situações poderiam estar sendo encenadas. A coerência entre elas é estética mais do que narrativa. O fluxo e a continuidade que devem ser gerados são da ordem das sensações, dos sentimentos, das sensorialidades.
O que faz a cena da massagem no hotel agir sobre o filme como um deslocamento de placas tectônicas não está ligado a processos de identificação e construção de personagem, ao contraste com lógicas narrativas de solidão, situações específicas de melancolia, e sim o contraste com mais de uma hora de imagens plasticamente pensadas para alimentar um certo estado de espírito, uma certa paisagem emocional, um certo terreno de sensações. É emblemático, inclusive, que o primeiro e único contato entre os personagens se dê também plástica e não narrativamente. Vemos Kang (Lee Kang-sheng) sentado na cama do hotel, corta e no plano seguinte já estamos na massagem. Não há cena de contato prévio, ligação, não há contextualização narrativa alguma. A causalidade é secundária em comparação à imanência do encontro entre dois corpos no plano.
Ao fim do filme, os dois retornam à solidão de uma rotina que vai permanecer inalterada. Na prática, o encontro não muda nada na vida deles, é uma mesma imagem que se repete, mas os significados dessa melancolia tornam-se drasticamente distintos. Enquanto imagem vista, mero registro de espaços, corpos e gestos, é uma repetição. Tal como em Kuleshov, a reconfiguração da imagem não é visível, mas sensível. A caixa de música, presente que se torna um pequeno artefato de transcendência do encontro, dá um lastro no tempo para uma intimidade efêmera que vai para sempre ressignificar a penitência de vidas que um dia viveram o paraíso, e que agora estão fadadas a revivê-lo como miragem para o resto dos dias.
Enquanto estudante de antropologia, muitas questões éticas e delicadas passam pela cabeça a respeito do encontro e das trocas com os chamados “interlocutores”: é possível construir relações simétricas? Quais os limites entre a curiosidade comum e o modo curioso invasivo? Não sabendo como responder a estas questões, escolhi como interlocutores, um arquivo e uma série de documentos.
Convivendo com o ressentimento de poder ser classificada como antropóloga de gabinete, esbarrei com uma cópia de Reassemblage em um curso sobre arte como imaginação política e que boa surpresa esse encontro: um documentário produzido por uma mulher e que, apesar de realizado há 40 anos, apresenta questões muito próximas às minhas. Foi como encontrar um tesouro obscuro, capaz dessa identificação mágica que só os filmes atemporais carregam.
A tal descrição silenciosa a que me refiro no título do texto diz respeito à maneira como a multiartista vietinamita Trinh T. Minh-Ha pensa a forma discursiva de seu filme, expressa pela conjunção entre as escolhas formais e políticas que vão da captação das imagens à densidade produzida pela montagem, com jogos de transição em cortes rápidos. Privilegiando a opacidade e o rompimento com a descrição verticalizada dos acontecimentos, a diretora utiliza a camada sonora como aquilo que move o filme.
No caminho contrário de alguns documentários recentes, em que o voice-over fica entre a autoficção e o egocentrismo disfarçado, em Reassemblage o documentário etnográfico ganha uma camada ensaística com as intervenções em voz da realizadora, um voice-over econômico, sussurrado.
Essa economia no discurso falado parece uma forma de respeito pelo que está acontecendo à sua frente: a vida das pessoas senegalesas que Minh–Ha acompanha e que ganha movimento fílmico a partir de uma observação muito atenta às camadas sonoras, produzindo um silenciamento inverso ao esperado e que, de maneira delicada e ativa, busca por um lugar menos assimétrico entre a observadora, a estranha, aquela figura chegante e as pessoas locais.
Não pretendo falar sobre, apenas falar por perto.
Na sequência do letreiro inicial, com o título do filme e o nome da realizadora, a tela preta indica lugar e tempo – Senegal, 1981 – e é preenchida por música, um código localizado, com suas batidas ritmadas. Depois de uma sequência muda, com imagens de pessoas de todas as idades, a diretora finalmente fala: I do not intent to speak about, just speak nearby. Suas intenções estão condensadas nesta frase.
Ao aportar numa África, tantas vezes visitada e categorizada por estrangeiros, inserindo-se num espaço já consagrado dos documentários, que descrevem e sedimentam o outro como o africano, o primitivo, o elo perdido das civilizações, Minh-Ha chega falando baixo e ouvindo bem, ainda que não domine as línguas que encontra pelo caminho.
Ao falar por perto daquelas pessoas, que também a observam de longe – com a desvantagem de não poderem ativar o zoom -, a diretora vai tentando responder a uma pergunta que lhe fazem:
– Um filme sobre o que?
– Um filme no Senegal.
– Mas o que no Senegal?
A beleza da não resposta a essa pergunta faz com que experimentar aquela aldeia seja nosso único compromisso ao embarcar no fluxo das descobertas do filme. Coordenar o ritmo da música com o ritmo do trabalho na comunidade; a capa azul do senhor que aparece produzindo corda me remete a Noir Blue (2018) e os movimentos ritmados de Ana Pi; o corpo está presente e ativo em tudo naquela comunidade senegalesa.
“Criatividade e objetividade parecem correr em conflito. O observador ansioso coleta amostras e não tem tempo de refletir sobre a mídia usada. ”- foi como consegui traduzir uma das falas de Minh-Ha, que escolhe pensar criticamente sobre o seu papel ali, ao invés de descrever o que vê. A imagem por si só já não serviria como descrição? “Para muitos de nós [antropólogos], uma maneira de ser neutro e objetivo é copiar a realidade meticulosamente. Falar sobre. ”
A certa altura a diretora diz “A realidade é delicada” e cruzar essa realidade com os conhecimentos que adquirimos ao longo da vida nos leva a produzir significados sobre tudo que experimentamos. Uma nota no caderno de campo de Trinh T. Minh-Ha e os significados que ela deve ter produzido e escolheu guardar para si mesma.
Um atravessamento de significações que a diretora compartilha fala sobre o calor e a escolha de usar um chapéu para proteger-se do sol, fato que vira chacota entre as mulheres locais. A pesquisadora assinala o fato de se perceber observada. Porque acreditamos que somos os únicos com o olhar ativo numa relação como esta? Será a câmera? Lembrar que está sendo vista também te deixa desconfortável? Voltamos ao filme. As mulheres pilando e um zoom no seio descoberto, plano que dura segundos. “Um filme sobre o que, meus amigos perguntam”. Sobre ser mulher no interior do Senegal? Talvez. Também.
Interessada, tomei esse filme como aula e uma das lições mais preciosas diz respeito a forma como a diretora define o que aconteceu enquanto esteve naquela comunidade: “O que vi foi a vida olhando para mim”. Escolher a forma de dizer e mostrar isso é o que torna tudo mais interessante.