É comum que vejamos se atribuírem às lentes concernidas com os “mundos à margem do humano” a categoria de POÉTICAS, ou ainda de SEMIDOCUMENTAIS, como se a desvinculação das tramas do desenvolvimento das emoções-ação, cujo centro é o indivíduo, significasse, como no mundo medieval, uma inclinação lunática aos pormenores astrais ou elementais capaz de desviar o olhar e o pensamento (e consequentemente a alma e o raciocínio social) em direção aos signos embriagados do mundo fenomênico. Mas um cineasta preocupado com a chuva, com a confecção de sinfonias geométricas citadinas, com a microscopia das algas ou com a população mística das neblinas não está mais próximo de um “cineasta experimental” porque a sequência de suas relações com o filmado pressupõe um fio conceitual-sensorial que melhor o alocaria num museu, galeria ou festival documental.
Ainda que não neguemos que o cinema é arte massivamente atada ao desenrolar mais ou menos concreto de episódicas humanas, isto não significa que o empréstimo de seu olho ao que indivíduo algum (que não tenha intenções estritamente científicas) se debruça, modo comum, a contemplar, lhe confira um princípio “passivo”, de registro funcional-informativo, onde nas imagens moram os espécimes fantásticos, e nos espectadores a recepção antropológica-boquiaberta. As operações do close-up, do plano de longa duração, da câmera-xamânica (simulação da vista de animais), dos ângulos improváveis, gloriosos ou arriscados, alados, todas essas tecnologias pontífices ao mundo que não alcançamos podem, com efeito, ATRIBUIR UMA VIDA ao que se (a)credita ter autonomia, repulsões, necessidades, meios, aptidões, desejos por si só concentrados na selvageria de sua existência.
N’O Planeta Azul (Il Pianeta Azzurro, 1981), de Franco Piavoli e (sua mulher) Neria Poli, a hipótese de que haja uma AÇÃO DESEJANTE inerente às substâncias todas da Terra, seus animais, elementos, fenômenos físico-ou-químicos, suas horas, “acidentes”, ritmos e estações, faz do enquadramento desse “lugar onde o olho não para para olhar” uma prece ao querer metamórfico e autônomo dos viventes que são infinitamente mais populosos que nós, nesta Terra. Com uma sonoplastia psicodélica de bolhas espaçadas que logo nos mergulha num aquário epitelial em que tomadas oceânicas, close-ups de rochas sob a luz lunar ou de superfícies saturadamente safiras remetem à falsa imobilidade alienígena de tais submundos à vista comum, os diretores nos implantam um aviso de boas-vindas tão sentencial quanto àquele que figura no Inferno de Dante: (parafraseamo-lo) “Deixai todo o saber até aqui conhecido sobre as tecnologias de vida, vós que entrais na dimensão azul”.
Ainda mais impressionante que sua catalogação das maneiras de preservação, reprodução, invenção e entropia inerentes à multiplicidade arrebatadora de organismos (captadas como se um burburinho de vivacidade por ali percorresse, incitando micro-primaveras de fecundação e renascimento) é a semelhança que essas formas de vida se instalam no nosso reconhecimento de processos físicos intimamente ininterruptos à fisiologia humana, trazendo ao olho que tudo aquilo assiste em velocidade e sons selvagens um “entendimento” de fato menos racional que pelas entranhas, uma acoplagem da força natural (de satisfação à sua própria natureza-crescimento) à nova linguagem das forças de nossos órgãos e membros, cujas realidades sabemos cada vez mais sem a necessidade integral do alcance ocular.
Em outras palavras: o filme se passa TAMBÉM pela conexão-nascimento de outras faculdades de nosso corpo entre si. Filme-molecular.
O “azul” a que ele se refere é, ademais, o do encaixe misterioso que se tece entre uma semântica de desejos que modularão as propriedades analógicas de seus corpos no encontro do percurso à coisa que os magnetiza. Todos os seres que o casal filma estão em movimento de saciação, de devorar, na plena languidez que mais os caracteriza justamente por pulsarem numa caça vocal, espaçosa, aparecidos e indômitos. Como se a câmera assumisse o papel de “madrugada”, ou ainda de luar, fomentadora das delícias subcutâneas – é de se perguntar como muitas das intimidades foram alcançadas, mesmo com o zoom –, ritos de transações cifradas em seus movimentos mas claras em suas voluptuosas arquiteturas irrompem, os músculos e geometrias cantarolando um hábito quem sabe quase indecente, não porque contenha obscenidades, mas porque não lhe acontece dar vez a nada que seja de ordem pública, traduzível.
O corpo humano desvela boxeadores vulcões, como se expelisse gases involuntários que não são tão literais… mas antes contestações-contrações oriundas de habitantes nada coadjuvantes daquele interior. A tecelagem de bandos de minhocas entre folhagens demonstra curvaturas que advém de impulsos-choques capazes de lhes percorrerem o corpo inteiro, tão ondulantes e potentes quanto as curvaturas do mar. Aos 37 minutos., uma fileira altiva de patos desfila tranquilamente sob o sol, diante de uma bodega em qualquer interior italiano. 8 minutos depois, aquele bar, que servia de banco de prosas entre dois idosos, se transforma num relâmpago de encontros barulhentos entre camaradas, jogadores, amantes e políticos, e sob a noite e madrugada adiante os destinos se repetem e se diferenciam, engenhando histórias que são próteses incandescentes de seus heroísmos enquadradas pelo jorro de luz e vocalidades que os mantém bem-aventurados.
Os diretores se evadem de maneira inquietante da presença da câmera sobre a matéria-filmada, mesmo se cogitamos aquelas que, simulando no olho da lente um olho de peixe-morto, se entregam ao corpo estranho em “radicalidade”.
A câmera d’O Planeta Azul parece fazer parte do ar. Assume nível microbial. Pior: ela é o tempo. Assume uma estase cristalina, um retrato de certa eternidade, e simultaneamente demonstra ser o alimento que traz a voracidade inventiva ao corpo, à língua, às afinidades litúrgicas que o balanceiam com suas outras naturezas na transitoriedade. Não há, entretanto, adesão ao fanatismo hiper-criativo de uma mãe-gênese: a umidade do planeta água demonstra os suores, os escorregos, os uivos e lágrimas, os saboreares descontrolados, as excreções, emulsões protetoras, os ácidos e névoas – estes seres extravasam as emergências que conduzem ao casulo que os trará, em seguida, de volta a travessia à certa totalidade liberta. Seus líquidos podem assim o ser pois são como lamentos pela inteireza que os falta, ainda que sejam cindidos por uma pele traiçoeira, oposta à unidade que deveriam performar, membranosa demais para que sejam isolados.
O hermetismo atuante dessas orquestras à beira da luz, não solar, mas da razão que implicitamente afirma os objetos a que é necessário emprestar o olhar, prolifera “visões sem os olhos”, tatos que enxergam, equilíbrios feitos por ecolocalização (projeções sonoras que sobrevoam e são devolvidas ao emissor, anunciado distâncias estrategicamente), cotovelos que medem o impulso de escavação. Um corpo de poderes dentro, ou melhor, por toda a extensão do corpo põe em orgia as fantasias mutantes com que somente o gênero da ficção-científica ou da ação podiam sonhar. Quanto mais de perto se permite assistir à procissão dos membros díspares de nossos corpos (de habitantes do Azul), mais uma sazonalidade propícia à cada mistério por trás de tantas partes para tão pouco tempo assegura essa “assemblage” (montagem) de corporeidades empilhadas numa intenção de ser só. Somos mais quiméricos do que qualquer especismo possa separar.
A intensificação da sonoplastia quando nos deslocamentos rente aos olhos de sapos acasalando ou a centímetros do festim de uma aranha sobre sua libélula-presa, essa umidade das fusões, golpes e proporções que nos remontam ao “artístico” dessas peles e patas muito antes da arte “nascer” termina por cruzar de vez as barreiras da razão, reforçando a estridência mágica quase insegura deste cinema, posto que seus coaxares, zumbidos, grunhidos e pios ganham dimensão invasiva cada vez mais enlouquecedora ao espectador que não se disponha a ser rachado para deixar outras comunicações penetrarem seu campo de possíveis. Tudo o que a memória computa, afinal, a ela é instrumental.
Mesmo quando as cenas se deslocam das naturezas animais às climáticas, humanas ou domiciliares, o apreço à invasão dinâmica dessa força de assimilação entre sons, texturas, umidades e luminosidades cria fantasmáticas e povoamentos às matérias mais sonâmbulas ou esquecidas. Piavoli e Poli dão justa vida aos acúmulos catárticos de chuva sobre vidraças, desertos de poeira historiográfica, musgo, fungos gráficos, ferrugens esfomeadas, objetos abandonados de aura totêmica, uma estratificação de sobrevidas tão interativas entre si, que seus ressoares criam um “invisível visível”, uma clareza territorial mais vestigial e mais elétrica, mais extática e condutora que qualquer arsenal de fiação em curto-circuito.
Uma vida cogitada continuando muito além de nossa humana extinção fica perfeitamente plausível, mas melancólica, se não há quem as capture, buscando nelas o mínimo interferir. Um esplendor que somente nossa simulação astronauta pode abraçar: pois terá nos considerado (ficticiamente) estranhos a esta heterogeneidade (contraditoriamente homogênea) azul.
Do fogo que incinera e da água que engole os amantes – é a natureza que consome o amor nos dois últimos filmes de Christian Petzold. Undine e Afire misturam o real com o fantástico para assombrar paixões imprevisíveis, cujo inescapável destino, no entanto, é o de se fundir, tragicamente, à paisagem natural.
Mesmo que por acaso, a própria estrutura dos filmes de Petzold emula os mistérios da natureza: da premissa inicial – seja ela o absurdo de uma mulher que diz precisar matar o parceiro que tenta acabar o relacionamento ou o clichê dos amigos que vão passar um verão à beira mar – a narrativa muda de direção sem mais explicações. Mudam também o ritmo e o tom: entre a repetitividade de uma rotina que ocupa a cidade cinzenta e a monotonia do escritor que, rodeado de belezas naturais, se limita à tela do computador, de repente, explode a tela em sopros de romance e rajadas de tragédia.
Em Undine, Berlim até parece ser protagonista: historiadora, a personagem de Paula Beer conduz visitas guiadas por pequenas maquetes da cidade, que, evocada a todo momento, pouco ocupa o foco da câmera. Entre as visões dos cartões-postais da capital, que só aparecem enquadrados pela janela de Undine, é no resquício de pântano logo ao lado que a magia do conto se constrói. O caminho estreito e os trilhos dos trens que o casal percorre com um andar sincronizado – e, rapidamente, apaixonado – leva a uma paisagem bucólica mas não menos acinzentada que a cidade.
Entre as árvores, uma barragem industrial aonde Christoph leva Undine para um mergulho. O absurdo de um encontro nas profundezas de um rio cercado por concreto se transforma em fantasia quando o bagre gigante – apelidado por Christoph e seus colegas de Big Gunther – aparece ao lado de uma inscrição do nome da própria protagonista em uma coluna submersa. Todo mistério é pouco para Christian Petzold em Undine.
O cenário de Afire é menos excêntrico, misturando clichês da tradição dos cinemas de verão. Uma dupla de amigos se vê perdida, com um carro quebrado, em uma floresta desconhecida, há alguns quilômetros da casa de praia onde passariam as férias. Terror adolescente: os sons silvestres se aproximam quando o mais inquieto da dupla é deixado sozinho no meio de uma mata prestes a incendiar-se. Quando, finalmente sãos e salvos, chegam à casa, o drama que se instala é mais próximo dos contos morais de Éric Rohmer do que dos contos fantásticos em que se inspiraram o filme anterior.
A diferença é que as praias do diretor francês não serviam muita função além da cenográfica. Em Petzold, no entanto, a tragédia ambiental é anunciada desde o título – que, em sua versão original, Roter Himmel, traduz-se literalmente como “céu vermelho”. O som dos helicópteros de bombeiros que não se veem instalam a agonia do que estaria prestes a acabar com os dilemas morais e casos amorosos que calmamente surgiam ali.
Quando os personagens se dispersam na mata incendiária, é novamente na figura de animais que o mistério da tragédia em curso se personifica. A imagem dos dois pequenos javalis queimados talvez seja a mais memorável do filme, sem que seja necessária uma interpretação grotesca sobre a metáfora que Petzold certamente não estava tentando criar ali. Como no poema The Asra, de Heinrich Heine – recitado pela Nadja de Paula Beer e recebido com surpresa pelo Leon de Thomas Schubert – aquele seria o destino dos amores recém formados: a terra “daqueles que morrem quando amam”.
Quando Undine é engolida sem retorno pelas águas do rio em que vivera o amor com Christophe, a fantasia se desfaz em uma realidade sombria, em que paixão não é o bastante para transformar em realidade o ser mágico do mito que dá nome ao filme. Assim como a tragédia do fogo não é o bastante para reacender a breve paixão de Nadja e Leon. O que resta é a lúgubre magia do amor, que se foi, e a paisagem, que fica, impressa nas imagens de cada filme.
Do cinema de Werner Herzog a relação intrínseca com a natureza é uma de suas maiores características, tanto na construção ficcional a usando com as mais diversas representações, como em sua ampla filmografia como realizador de documentários. Herzog, independentemente do dispositivo que parte, cria relações do etéreo com o material de formas que vão do sobrenatural à radicalidade selvagem. Apesar de servir como referência-máxima para o uso de diferentes metodologias no cinema do diretor alemão, é sempre pertinente lembrar da relação cruel de poder e violação que envolve transpassar um navio por uma montanha em Fitzcarraldo (1982). Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), o olhar para a pré-história e as formas de comunicação analisadas originalmente em experiência 3D completa a proposta do uso do que é natural unido ao corpo – do que escreve e do que assiste – para a comunicação feita por desenhos à priori, mas que ao longo dos tempos ganhou a forma de gesto. São diversos os exemplos de relação entre Herzog e a natureza e seus eventos (extra) ordinários como em The Fire Within (2022), Aguirre (1972) ou Lessons of Darkness (1992), porém em alguns de seus trabalhos Herzog mostra-se dono de uma crueldade singular quando rechaça a força da observação naturalista do espaço e seus personagens.
É do tempo, dos mais complexos meios dimensionais de nossa existência, que o diretor parte para a relação com seu assunto e seus protagonistas. Um díptico produzido no início da década de 2000 representa muito bem este caminho tomado pelo realizador: The White Diamond (2004) e O Homem Urso (2005), este último exemplo de retorno inesperado para Herzog, o que nos leva à relação do humano com o trágico, com a morte. A natureza do humano é estudada por este meio. Herzog, assim, usa sua câmera como o principal recurso para a quebra geral de funcionamento do tempo, da vida, do espaço. Da mesma maneira que Eduardo Coutinho sinalizava certa distância de seus entrevistados (ou seja, de sua matéria-prima) afim de evitar um desvio comportamental, como mostrado em Apartamento 608 (Beth Formaggini, 2009), Herzog o leva para outro extremo. Porém, não se trata de manipular o conceito de um filme, mas sempre de questionar o que se fala e o que se faz, uma ação sugerida tanto para quem vê e ouve como para quem fala.
Timothy Treadwell, o “homem urso” por si quebra a natureza da observação. Como operador da câmera e ciente do destino que suas imagens terão – seus documentários -, mudava a dinâmica do real ao apertar o “rec.”. Se tornava, antes de tudo, um performer. A mistura de apresentador de TV e uma estrela pop. O longa de Herzog parte da morte de Treadwell para entender, em retrospecto, o comportamento do protagonista nos últimos treze verões na natureza selvagem até o fatídico dia que Treadwell foi atacado por um urso, este que também vitimou Amie Huguenard, namorada de Treadwell. A dinâmica do natural é mudada tão radicalmente que Herzog questiona se a vítima de alguma maneira preservou a câmera para que ela registrasse o seu fim, ou seja, que o espetáculo continuasse mesmo que seu corpo fosse destruído. E, obviamente, empurra o espectador e seu gosto pelo mórbido contra a parede. Não se trata de questões moralistas, pois Herzog nunca tomara este caminho.
O Homem Urso (2005)
A metodologia de White Diamond e Homem Urso é a mesma: o comentário de Herzog se dá no silêncio e como ele também é inerente à natureza como uma forma de comunicação. Quanto maior o silêncio, mais incisivo é o comentário do realizador, e em boa parte das vezes maior é a necessidade dos personagens de agir em frente à câmera graças ao desconforto criado pelo diretor.
White Diamond exibe também uma característica de Herzog como realizador que é o de estar na experiência e não somente registrá-la. O dirigível construído por Graham Dorrington parte de um trauma particular e por pouco não cria mais um, com Herzog a bordo quando ambos, de certa maneira, prestam tributo ao cineasta alemão Dieter Plage que faleceu em um experimento com um protótipo de dirigível para filmar pela floresta da Sumatra. Já Treadwell por si cria o ritmo da obviedade: por treze anos tratou os animais como seu resguardo, mas comportava-se como um super-herói. A Herzog basta montar, contextualizar e trata-lo com respeito.
A empolgação inicial de Dorrington, que abraça rapidamente a posição de protagonismo em White Diamond para sua aventura na Amazônia, logo revela sua insegurança pelos métodos de Herzog ao falar sobre a tragédia que vitimou Plage. A dualidade de uma nova chance e a culpa do passado vira apontamento certeiro por Herzog justamente pela elasticidade do tempo. Ao dar toda atenção para o protagonista, ou seja, dar a câmera e seu tempo para ele, a matemática do cinema é fissurada quando o corte não aparece no tempo que lhe fora instituído pela linguagem clássica. O corte é o sinônimo da veracidade das palavras, da seriedade de um assunto e, principalmente, a impossibilidade de questionar o tema, o personagem, o diretor e o filme.
White Diamond (2004)
É necessário seguir e, portanto, não há porque questionar. Ao emitir o que planejara para a câmera, Dorrington é traído pelo o que não planejara. Desta maneira, o protagonista transparece uma insegurança cavalar através de comentários bem-humorados ou rápidos passos de dança para representar seu ânimo para a nova viagem. O método não é o mesmo para todos os filmados e entrevistados por Herzog, o que mostra a antecipação do realizador alemão na feitura das entrevistas, porém, se a natureza prevalecerá, o acaso é capaz de intervir em qualquer modelo. A intimidade de Herzog com a natureza selvagem lhe dá cancha para proceder de maneira que respeita o que filma da mesma forma que registra a beleza do que não é concedido pelas metrópoles. Este é, entre tantos outros, um exemplar de como Herzog busca, de diferentes formas e visões, quebrar o que nos é mecânico e se aproximar da pureza dos gestos e das palavras, da mesma forma que suas paisagens são retratadas.
A Bíblia, livro do pioneirismo quaker por excelência, é citada no início de O Atalho, filme introspectivo inspirado por Deus, o Diabo, Moisés, Emerson e Thoreau; trata-se daquele trecho da Gêneses no qual, com apascentada fúria, Deus expulsa Adão e Eva do te deum de seus olhos benevolentes e os condena a lavrar a terra com o suor de seu rosto: aqui (no versículo), está tudo consumado, como diria a Medea finalmente sacerdotisa no final do filme de Pasolini; mas para a obra-prima de Reichardt este é apenas o dístico de um duro, áspero, cadenciado aprendizado perceptivo sobre a terra, os rios, as colinas, as texturas e a profundidade de campo a desbravar neste que tem por objeto a proto-comunidade em vilegiatura no deserto, que agora também é uma casa ressoante de cumeeiras ao vento; o método está dado desde o princípio de O atalho: a diretora inventaria corpos humanos e naturais, enquanto que na banda sonora homens cochicham e mulheres sussurram, à espreita pelo que virá; as paisagens contempladas por Reichardt são possuídas pelo pneuma não mais do sopro de Deus, e sim da respiração humana solicitada pela fala diligente, sistematicamente empenhada em conhecer a topografia do lugar que lhes serve de abrigo temporário, mas cujos sulcos e cicatrizes já possuem a presença humana em sua integridade; o barbudo pioneiro de pele bronzeada (o sr. Meek do título original), que nos interpela no meio da escuridão como um rabino de Rembrandt, nos revela que “eu não estou apenas neste mundo, eu vivo inteiramente nele”; eis a chave ou révelateur da tática de Reichardt: o comentário onipresente religa o homem à terra (religare) e o homem ao homem, assim como os passos das bestas de carga, os archotes e as rodas da carroça; tudo é de indispensável valia para nos restituir a parousia deste mundo antigo, cravado na escuridão ou saturado pela ardência dos raios de sol, em todo caso modesto e humilde, andarilho mas saudoso de Casa, como nos mostra esta moça de traços desenhados a crayon magenta que recusa o guisado mas fica com o naco de pão: “Basta-nos”; o cinema de Kelly Reichardt, romântico, indômito e telúrico (mas tudo isto segundo o pianissimo do gesto esquivo que volta a figura humana para dentro, abdicando de seus contornos em nome de um sfumato cismarento de Vermeer em locação natural), é antes de tudo uma épica perceptiva que deve reconduzir o personagem à paisagem como seu habitat apofântico eminente; mas esta aventura não é mais fordiana ou hawksiana, pois se interiorizou; soterrada sob estas colinas arquetípicas, desvela para o homem o seu lugar e o seu tempo videntes: o sostenuto do ritmo, o découpage lento e adstrito ao movimento furtivo do quadro e do corpo, o contracampo distante: o corpo paradigmático não é mais a entalhadura áspera do resiliente Monument Valley, e sim o abscôndito do pastor que recita Daniel, da senhora do rebanho e do filho pródigo, talhados na pedra da colina crepuscular e do versículo vaticinante; o western revisitado por Reichardt é antes de tudo a chance de um aprofundamento ensimesmado da experiência, de um tao absorto na pegada da vaca e do companheiro de jornada, recordando-nos com suas aquarelas devaneantes que o homem, em qualquer horizonte espaço-temporal, será sempre o mesmo, o menino que é pai do homem e a errata pensante, ou a natura naturans processual de Spinoza que Klee retomou numa palestra em Iéna.
Vejamos um exemplo pontual de seu propósito: em um plano decisivo pelos trinta minutos de O atalho, Reichardt desafia a centralidade clássica para nos revelar uma personagem que corre na extremidade do cadre 1:33, resgatado do uso bárbaro que a TV, herdeira genealógica das matinés do passado, havia imprimido a ele: ela viu um índio armado, e se precipita na direção contrária, para fora do centro que os antepassados haviam eleito como a perspectiva ideal para o aparecimento da figura humana; neste trecho, a démarche, os meios e a teleologia do propósito de Reichardt como cineasta aparecem de forma paradigmática: a eclosão da ação acontece por intercessão da aparição da figura humana ou figura tout court, porque para seu olho atento à grandeur nature do detalhe revelador, tudo o que aparece no plano deve ser levado em consideração: cinema epifânico do campo aberto, do confronto entre presenças segundo a noção do contracampo primitivo (Lourcelles) como choque frontal; as consequências, no entanto (na contramão dos raccords sensório-motores do cinema paradigmático clássico) serão anti-climáticas, minimalistas, enviesadas e difusas, e vão se espraiar pelo corpo do filme como uma espécie de infiltração sempiterna cujas coordenadas serão devidamente dadas pela trajetória, um tanto capturadas segundo a norma impressionista de uma empreinte figurativa, das rondas, das pistas e dos rastros digressivos do que nos aparece, dos personagens ao longo de sua peregrinação sobre a cratera do deserto; como as falas entre irônicas e impertinentes de sr. Meek, que atormentam para saborear sua fúria tímida a Emily Tetherow (a garota que viu o índio), os versículos da Bíblia murmurados pelos personagens entre uma siesta e a amarelinha com o invisível da criança comentam, agora numa chave sub species aeternitatis, os acontecimentos narrados para projetá-los em um solilóquio com a prece, e Reichardt talvez seja a mais adequada cineasta para filmar pessoas em contato com a palavra inspirada: em primeiríssimo plano de apoteose silente, um homem lê Jeremias para escapar ao peso morto da duração estagnada, e todo o mundo se reúne em concêntrica compunção para escutar com ele; como o marulho da pedra sobre a água serena, o evento traumático (ou dramaticamente construído, pático) é capturado em suas repercussões intimistas, em um alheamento anti-climático de que as deambulações no cadre, leitmotif magistral do filme, vão estabelecer a norma de ritornello; o índio será capturado, mas as consequências narrativas interessam a Kelly Reichardt como o banho no jardineiro de Lumière ou as aparições do Diabo, metteur en scène à onipotente espreita, em Méliès: a luz, o ritmo sorumbático, o sotaque anasalado do sul e a ação inerte como um escombro na rota das alvíssaras serão a decisiva pedra de toque deste tao destinado às rondas centrípetas de uma terra abandonada pelos favores de Deus, seu amante absconditus que só nos é dado ouvir pelas linhas tortas: a sensação figural, condensação entre percepção e intuiçãonão-categoriaisque Deleuze viu em Bacon, seria antes o moto de tudo; mas estaria sendo infiel a Kelly Reichardt se não observasse com atenção as arcadas e limiares com que nos presenteia em plena locação, lugar malfazejo para a escolha de cadres: O atalho é também uma ode plástica à Natureza, uma prova decisiva de que o corpo humano é a matéria figurativa de argamassa mais elevada de que o cinema dispõe, como neste sobre-enquadramento figurativo dos pioneiros na captura abaixo.
Em certo momento perto do final, O atalho, filme tecido com as agruras digressivas de uma duração impossível (de Deus ou do Diabo: a escolher, caro espectador) nos testemunha o desregramento de todos os sentidos e de todos os signos de que o deserto, lugar da aparição de Deus e das tentações de Asmodeu, é capaz: uma desterritorialização semiótica absoluta; em que sentido? Os pioneiros veem o índio falando alto e em tom trôpego, muito agitado, e concluem que está se comunicando com outros, com estes mesmos outros que virão para trucidar a troupe de Yavé; mas um intérprete benfazejo desfaz o equívoco: ele está rezando, como todos ao longo do filme; pelo raccord da direção do olhar e posição do índio no cadre, qualquer pessoa ainda humana se aperceberia de que ele fala a ninguém, ou a este Totalmente Outro que os incautos podem tomar pelo Nihil, ou Deus; perdidos no deserto, os personagens, porém, não podem ver como são vistos, e se equivocam ao confundir uma prece entoada com fervor com um plano terrorista de fuga ou invasão: o que se dá aqui, induzido pelo cansaço, pela paranoia deambulante e pela digressão extática é uma total incomunicabilidade, a ausência de totais coordenadas que talvez seja a coordenada mor: aquela que nos conduz aos deuses, extravio ontológico por excelência; em seu livro já clássico sobre profetismo judaico “A essência do profetismo”, André Neher nos comprova com índex míticos e místicos cabais que Deus (ou D’us: o impronunciável, interdita a imagem mesmo do significante) é alteridade radical; e como ele colocou esta irredutibilidade sem remissão, este no man’s land sem saída? A cada profeta D’us exige uma tarefa totalmente contrária a seus penchants subjetivistas, como por exemplo: a Ezequiel, muito higiênico, solicita que cozinhe um frango na merda e o coma; a Isaías, muito pudico, pede que saia de cabelos desgrenhados de fúria santa e nu pelas ruas de Israel, para proclamar sua prostituição; etc.
Deus é a alteridade do deserto, do mar negro e profundo, do olhar do cão e da prece do índio, aquilo que necessariamente me exclui (ergo, cogito, no caso ocidental, branco, americano, etc); para os herdeiros quakers, leitores dos profetas excluídos da ceia pascal do Egito, Kelly Reichardt acha uma forma de instituir uma exclusão da exclusão, e nos representa o deserto em seu nec plus ultra místico como o lugar do não-lugar (ou da digressão extraviante, à toa e qualquer): o Deus do frango cozido na merda encontra aquele que o cinema americano sistematicamente se empenhou em legar ao hors champ (o autóctone): temos uma paulada política de cinema tardio que, devidamente encoberta pelo brilho do roteiro de Jon Raymond (com as elipses certas para centrar o descentrado, ou revelar agora no centro aquilo que não víramos nas bordas) e pela mise en scène e découpage de elípticas ocultações e desvelamentos, sem a necessidade de nenhum discurso, panfletismo ou clin d’oeil grosseiro para nossas plateias politicamente corretas; séculos de exclusão são invocadas e evocadas com pertinência, elegância e decoro, de acordo com esta semiótica do miserere que espera os quakers na Terra prometida do extravio divino: a Diferença também pode ser representada numa arte materialista como o cinema, e aqui trata-se da eminência de Deus e seus oxímoros escandalosos: a Diferença da Diferença; O atalho antecipa First cow, penúltimo filme de Reichardt que faz tabula rasa do balbucio anencéfalo de majoritário presente do cinema para lançar as devidas cordas e liames de nossa relação, até hoje pouco esclarecida em sua profundidade de révelateur, com o passado opressor; mas o passado, ao contrário do que certa histeria de esquerda hoje possa pensar, não é apenas o lugar da exclusão, da diferença irrecuperável, da maldição (pós-metafísica) da Origem; ele é também o lugar da Origem como destinação do presente e imagem pela qual inventamos os deuses e fotografamos o ser nas empreintes de verité das palavras (relevância absoluta da etimologia, aliás); em Intolerância, filme épico do Griffith que viu o cinema nascer, temos Lilian Gish embalando um berço imemorial ao som do ritornello do Totalmente Outro, História carnívora e Mesmo padastro; o passo para trás heideggeriano de First cow e O atalho se reapropria do passado como a imagem-mater desta paternidade clássica, tantas vezes terrível mas necessária para se fazer o luto, que nos viu nascer e morrer novamente; não é pouco para os tempos intempestivos que nos atropelam.
“Em 2020 pude assistir Luz nos Tópicos 3 vezes, em diferentes festivais, que na época estavam acontecendo em versões online por conta da pandemia de Covid-19. Imediatamente soube que para falar sobre ele, eu precisaria remontar, criar a partir dele outras imagens, destacar algumas delas, mexer com a carne do filme. E foi o que tentei com esse video-ensaio, um dos meus primeiros.
Fazendo pensar em Lucrecia Martel e Video nas Aldeias, Luz nos Trópicos produz imagens poderosas sobre a criação da América, sobre a natureza experimental dos encontros que deram origem a esse projeto de colonização, que segue sendo atualizado, às expensas dos povos do Sul Global.
Como na cena em que um passarinho é dissecado, me senti convidada a intervir no filme para tentar dar conta do quanto fui impactada por ele.
“Aqui do alto, contemplo o campo, que se estende como uma pradaria sem fim. (…) Paisagem estática, desoladora. Bem longe, um homem atravessa os campos. (…) A verdade caminha por si através dos bosques.”
Caminhando no Gelo, Werner Herzog
Dos registros de população e máquinas urbanas do final dos anos 1890 às sinfonias de cidade soviéticas e europeias dos anos 1910 e 1920, o cinema investiga sensorialmente sua ligação intrínseca com a cidade e seu movimento. No entanto, o oposto do trânsito constante citadino encontra diálogo na investigação de diversos realizadores que imaginam, retratam, debatem e evocam, a natureza e seu tempo próprio – e como os registros dela são realizados, quais procedimentos utilizados.
A natureza filmada em locação, sob diferentes códigos de uma paisagem, é das bases mais sedimentadas de cinemas como os de Peter Hutton e Apichatpong Weerasethakul, que flutuam entre a sideração e a palpabilidade da concretude natural de uma vista, do fluxo de um rio ou da neve que cai, da floresta que respira ou do mar à espera. Nessa mesma disposição pela locação, dois italianos com códigos muito particulares (e semelhantes) filmaram natureza: Roberto Rossellini criou em Stromboli uma grandiosa representante do tumulto interno de sua protagonista à espera de uma experiência de estupefação, enquanto Michelangelo Frammartino fez em As Quatro Voltas e Il Buco um desencadear de acontecimentos místicos nas ações mais mundanas, linhas mais simples e diretas da comunhão sagrada entre o humano e o natural, um continuação do outro. Ambos sob a visão de uma névoa que a natureza deixa pra trás após agir.
Também temos a natureza hostil, filmada como ameaça, palco para violências imensas e alegorias políticas. John Boorman em Amargo Pesadelo cria um filme de guerra em microcosmo, com seus homens da cidade que vão à caça. Já Nelson Pereira dos Santos e Jim McBride em Quem é Beta? e Glen e Randa propõem utopias de novas organizações amorosas diante do pós-apocalipse e da terra arrasada, como se a falta da suposta civilização da cidade nos liberasse para lidar com a vida sem tabus. Kelly Reichardt, entusiasta do retrato natural como seu mentor e amigo Peter Hutton, filmou em O Atalho um velho oeste de travessias nada explosivas, que vencem pelo cansaço, cujo sobrevivente mais apto será aquele que entende a história da terra onde pisa.
Há também diretores que preferem filmar a natureza artificial, recriada e filmada em estúdio, para diversos efeitos – seja realçando a ilusão, como Powell e Pressburger em Narciso Negro com suas construções impossíveis e planos cuja magnitude da natureza, evocativa das pinturas de paisagem de artistas românticos como Caspar David Friedrich e mesmo revisionistas como Turner; seja para um controle maior da estrutura de produção, como Erle C. Kenton em A Ilha das Almas Perdidas, e no tanto que essa escolha se reflete em tela, do filme como resultado estético desse modelo de filmagem, da selva domada do estúdio servindo de palco direto para um cientista que cravou uma cicatriz a seu desejo no meio da natureza intocada, reflexo direto do colonialismo tratado pelo filme – assunto esse também tratado por Chantal Akerman em A Loucura de Almayer, mas sob o calor da locação, que encarna o natural como um pesadelo do colonizador em febre, a umidade sentida na pele, nas embarcações ruindo.
James Benning já filmou a natureza indo de um extremo de humor ao outro em filmes diferentes, das paisagens alienígenas de Sogobi à aridez se Equinócio de Outono, enquanto Herzog geralmente concebe esses extremos dentro do mesmo filme: em Aguirre, a grandiosidade contemplativa da paisagem rivaliza diretamente com sua implacabilidade, a loucura megalomaníaca do humano que brinca de Deus numa natureza indiferente. Em Claire Denis, a natureza desértica do passado de Bom Trabalho contrasta diretamente com o movimento da cidade do presente. Em James Grey e David Lean, essa megalomania do ego que se estende para conquistas da natureza ganha uma dimensão mais épica, cuja escala e aparato cinematográfico buscam a vocação (e construção) clássica dessas jornadas.
São formas que se interpolam e dialogam entre si, sempre sob um véu de dúvida e mistério, como exemplos da nossa própria comunicação tortuosa com a natureza. Buscando entender o idioma desconhecido do que o vento fala, ou o comportamento de quem passa por aqueles lugares, cineastas ao longo do século apontam suas câmeras para o mundo natural atrás de perguntas. Essa edição propõe investigar algumas delas.
When I speak of time, it’s not yet When I speak of a place, it has disappeared When I speak of a man, he’s already dead When I speak of a time, it already is no more – Raymond Queneau
Nós somos fascinados pelo fantasma de uma realidade integral, pelo alfa e ômega da programação digital. O real é o leitmotiv e a obsessão de todos os discursos. Mas não somos muito menos fascinados pelo real do que por seu desaparecimento, sua inelutável desaparição? – Jean Baudrillard
Uma das grandes questões que afligem a arte de modo geral desde o princípio e perpassam gerações de pintores, teóricos e até mesmo espectadores é a questão de verossimilhança da imagem. Seja em movimentos como o suprematismo ou o cubismo, nas artes, seja com o cinema experimental ou com a poesia concreta, a necessidade de uma representação de mundo tal como ele é, é uma porta entreaberta, um mistério sem solução. Afinal de contas, tudo depende do interlocutor e de como vemos. O mundo, em geral, é formado de grandes mistérios imagéticos e cabe a nós sabermos interpretá-los.
Há quem se confronte com as peculiaridades entre o mundo real e o mundo imaginário, o natural e o humano ou o real e o virtual. Esses questionamentos tem tido uma grande prevalência no cinema atual, principalmente com o advento do digital como matéria primordial de fazer fílmico. Fomos do assombro em captar o movimento das folhas ao fundo em O Almoço do Bebê pelos irmãos Lumière em 1895 até ao assombro da recriação do movimento das folhas e das paisagens em videogames com um grau de realismo exacerbado. Na fronteira entre o real e o maquínico, se encontra Harun Farocki, cineasta alemão que se põe em frente às máquinas para botar a câmera em cena, como uma espécie de figura anônima em uma estrutura mecânica; uma engrenagem em uma máquina.
Nesse caso, em Parallel I-IV (2012-2014), há um ciclo de filmes com foco na construção de um simulacro de mundo real em meio a ambientes virtuais, como os videogames e representações gráficas. Não é novidade que o confronto entre o homem, a máquina e o mundo das coisas é algo presente em grande parte dos filmes de Farocki; no entanto, o questionamento quanto à representação do mundo natural como simulacro e a interação entre simulacro/realidade e espectador é uma fórmula essa que vai se repetir em outras instalações, principalmente nas obras derradeiras (como em Serious Games e Eye/Machine). [1]
Em Parallel I-IV, a historiografia apresentada vai desde as primeiras formas de animação até os últimos avanços dos videogames, como a jogabilidade e a interação com o espaço se tornam figura central de questionamento do aparato cinematográfico; tanto os Lumière quanto Farocki almejam a mesma coisa, buscar um retrato do mundo, mas a intenção do segundo é questionar se, no realismo simbólico da natureza construída pelos jogos, uma árvore representa de fato uma árvore, apesar de não ser feita da matéria orgânica. Afinal de contas, na voz de Antje Ehmann por entre as paisagens computacionais, se torna a regra a emulação de mundo através da animação, oferecendo uma possibilidade de superação do cinema como retrato do real. No entanto, ela nos diz: Nos filmes, há os ventos que sopram e os ventos que são produzidos por um ventilador. Nos mundos animados, o vento sopra em uma única direção. E como considerar um mundo construído como algo natural? Ao mesmo tempo, como não dizer que aquele não é um mundo?
O que rege Parallel I-IV é a noção de que a representação natural de mundo pelo cinema e pela virtualização da natureza e das paisagens é uma espécie de retomada ao ímpeto inicial renascentista – onde a técnica e a ciência estavam à serviço da arte. Parece uma afirmação bastante controversa; porém, considerando um mundo em que a água se torna mais reluzente e as árvores são colocadas em coordenadas e tudo, absolutamente tudo, é formado por pontos e vírgulas e coordenadas cartesianas, talvez não seja de tão absurdo. Afinal, o plano achatado e o nada além da superfície das coisas é uma noção pré-helênica de mundo.
De toda forma, essa espécie de mistério representacional do mundo e da natureza, a água composta por algoritmos, um horizonte plano infinitamente finito e um mar sem fundo ou função causa um assombro. Quantas vezes, ao ver um retrato de um videogame ou de uma emulação, não se diz ‘isto é mais real que o próprio real’? Será mesmo? Se este é o mundo real, ele deixa de existir quando eu não o vejo? Onde é que esse mundo termina? E esse é o ponto central de Parallel: A natureza virtual é composta de um vazio e pontos de fuga inexistente. O mundo que se vê pode parecer, mas não o é e sua ideia de infinitude e o que há além do alcance mostram que talvez não tenha sido o movimento das folhas ao fundo do quadro que interessem nas emulações do mundo, mas sim, o seu desaparecimento. Queremos saber o que há por trás da montanha, para além do mapa, fora do horizonte. É uma necessidade sobre-humana: Alcançar o inalcançável.
Disse Jean Baudrillard: ‘Por trás de cada imagem, algo desapareceu. E isso é a fonte de sua fascinação. Por trás da realidade virtual em todas as suas formas, o real desapareceu. E isso é o que fascina a todos. Segundo a versão oficial, adoramos o real e o princípio da realidade, mas — e isso é a fonte de todo o suspense atual — é, na verdade, o real que adoramos, ou seu desaparecimento?’
De fato, o desaparecimento é a única constante real e virtual de mundo e Parallel I-IV reforça um mundo fadado ao constante desaparecimento e que tudo isso flutua no vazio.
Isso só evidencia que a diferença entre o mundo dos jogos e o mundo vivente é a regra primordial da finitude; se na Terra tudo nos é finito e regido por leis da física, no mundo virtual, a noção de infinito no simulacro só define o quão limitado é a existência dos seres nas telas e nos filmes. Isso possibilita infinitas representações de mundo dentro de um só local; no entanto, o horizonte é oco. O fundo do mar é o vazio. As criaturas são regidas pelas suas próprias regras, mas ao mesmo tempo a sua existência é somente entre si próprias, sendo eles mesmos obliterados por um poder invisível. A natureza que as cerca transpõe barreiras anti-naturais, obstáculos invisíveis. Tudo desaparece, até mesmo o infinito artificial.
[1] No caso de Serious Games e Eye/Machine, o questionamento da imagem cinematográfica vai além da simples manipulação imagética, mas sim, das implicações sócio-políticas de um mundo virtualizado; afinal de contas, segundo Farocki, na representação da guerra o sol somente brilha em tanques e personagens animados americanos, enquanto os personagens do Oriente Médio até de sombra são desprovidos, dada a desumanização entre invasor e invadido.
Falar de maternidade e gozo no cinema é um ato disruptivo. Encarar essa problemática com responsividade pode significar muitas coisas, mas todos os caminhos passam pela contradição. O longa-metragem de estreia de Ana Carolina Marinho elabora uma jornada que segue Letícia Bassit, performer e escritora de São Paulo, em seus caminhos depois de uma gravidez não planejada.
Eu também não gozei (2024) é realizado numa pegada investigativa ao estilo “documentário observacional” que bombou nos festivais recentemente – para o bem e para o mal. No entanto, o filme evita fragilidades típicas desta tendência contemporânea, como a falta de uma ideia ou gesto de montagem capaz de criar caminhos de fruição para os registros. Aqui entra a força da montadora Cristina Amaral nesta obra.
A premissa do documentário é simples: a personagem descobre que está grávida e não sabe quem é o pai de Pedro, o neném. Esta situação dispara toda a movimentação: a mãe resolve buscar o pai biológico da criança. Para isso, realiza testes de DNA, processos que a documentarista segue de perto. São quatro possibilidades de paternidade. Quatro homens surgem no fora de campo através de seus diálogos com Letícia por telefone.
A fala tem um lugar central nesse documentário. O longa procura dar voz à sua interlocutora, ao mesmo tempo que a persegue em suas passagens entre prédios institucionais, espaços domésticos e o interior de carros em movimento. Apesar de ser um filme que busca seguir os movimentos de Bassit em São Paulo, a cidade não aparece. Isto revela um desinteresse do filme em dar forma à relação entre o corpo da protagonista e o ambiente que ela rasga com seu vai e vem.
Impossível não falar dos dedos de Cristina Amaral nesta fita. A montagem bagunça tempos, sentimentos, temas – traço caligráfico do trabalho de Amaral, como vemos em Serras da Desordem (2006) e Mato Seco em Chamas (2022). O material fílmico e sua cronologia são redimensionados em espirais, o que cria um magnetismo em torno do encadeamento das cenas – seus intervalos e seu ritmo.
Mas, ainda assim, algo causa frustração no espectador. Apesar de dar voz ao discurso de Bassit em torno de problemas que são cotidianamente escamoteados na sociedade brasileira, o filme não consegue criar uma imagem expressiva desta vivência. A protagonista fala com clareza e transparência, com controle da cena. A impressão é que, ao mesmo tempo que o filme acolhe a personagem, também a enclausura numa redoma.
Não falta coragem à Eu também não gozei, mas falta estranhamento. Dar a voz significa dar forma? Em seu esforço por criar uma instância acolhedora para fazer ecoar a voz da experiência, acerta a transparência e a clareza – a comunicabilidade “universal”. Fico pensando o que seria desta obra se as cenas em que Bassit quebra a moldura da Razão com performances e improvisos tivessem mais espaço. E se o filme se perdesse um pouco no caos e no delírio? Aqui, a voz não vira cena.
Laser groove pois eu também sou ciborgue e quero dançar
por João Paulo Campos
Volume é drama.
Tantão. Drama.
O que vemos com os olhos em Aquele que viu o abismo (Gregorio Gananian & Negro Leo, 2024) é um homem que caminha por linhas tortas aqui e alhures. Perambula e vira estátua, para iniciar, novamente, seus passos convulsionados. Entre movimentos e petrificações, duas presenças fortes: o laser e o groove. Acontece uma trama, sem dúvidas, mas me esqueci do que se tratava. Algo entre Alphaville (1965) e Blade Runner (1982), mas com Negro Leo e Ava Rocha e a voz de Clara Choveaux falando coisas entre São Paulo, Xangai e Pequim. Mas o que ficou forte no meu corpo foi a memória do… laser e o groove.
E o que escutamos? O filme vai tecendo ritmos e arranjos no que parece uma jam session dos passos de Negro Leo entre o Brasil e a China. Passarinhos cantam bufadas de trompete e carros buzinam solos de bateria. Rasgando a malha urbana intercontinental, acompanhamos os cortes curtos do protagonista – desmemoriado e neurótico ao estilo film noir -, que performa em escrita-automática através de enquadramentos acrobáticos – pura variação de vistas e escutas.
A paranoia é esboçada em voice over através de meditações que, amalgamadas a todo resto, sugerem uma fuga contra tudo e contra todos – novamente reforçando a atmosfera do filme de gangster. Alquimistas, os realizadores remontam palavras, música, corpo e ambiente sem compromisso com a comunicabilidade clarividente das grifes artísticas atuais. O performer caminha no (des)compasso da música preta experimental, bagunçando nossos sentidos – na contramão do verniz de universalidade dos labs e incubadoras criativas. Se é Bebop em Xangai ou Free Jazz em Pequim, eu não sei. Mas parece que, depois de quase 10 anos de sua morte, Ornette Coleman performou na China.
E a luz? O corpo de uma mulher surge no escuro, desenhado por lasers azuis ou vermelhos ou os dois. Ela cai morta e me lembra, de forma inequívoca, uma replicante de Blade Runner, aquela que morre em slow motion na multidão neon depois de levar uma sapatada de tiros de Harrison Ford – clima chuvoso. A imagem retorna em diferentes momentos do filme, tal qual um bug no sistema nervoso de computadores.
Quando o filme começa a ficar maçante e talvez difícil de seguir-sentindo, surge uma aparição: é a personagem de Ava Rocha. Presença que carrega uma energia mística sui generis, a figura aparece para recalibrar o ritmo das imagens e sons – desacelera para depois (re)acelerar a fita. Isso em planos fechados que vão cortando vistas do corpo da performer, ressaltando a vibe ritualística da cena – o rito necessário para encararmos a parcela final da obra.
Coisa louca: o Abismo de Gananian e Leo não é filme para se identificar, mas acabei sentindo empatia pelo protagonista e seu jeito de andar. Já mencionei que não me lembro da trama, mas me recordo da presença de Negro Leo em cena – quebrado, rasgado e operante. Pois eu também sou ciborgue e não sei dançar. Tenho dois pinos de metal no joelho direito, algo que ganhei por me empolgar demais num show de música experimental em Minas Gerais.
Existem pessoas que confundem o futuro com o passado. Isso pode nos deixar tortos no caminhar. Mas tem um charme. Pois o segundo longa-metragem de Tiago A. Neves é torto e destemperado – e parece querer fazer o tempo explodir no caos coreografado em cena. Maçãs no escuro (2024) tem lá seus problemas – som estourado, tremores “meio doidos” de câmera, iluminação “ruim”. É um filme “desequilibrado”, para alguns colegas da crítica. Mas isso faz parte do show dos caras. Vida sem atrito é como pele sem cicatriz – se isso é bom ou ruim, bonito ou feio, cabe ao público escolher.
Numa pegada fantasiosa, o filme investiga a vida e obra de Edson Aquino, dramaturgo underground da cidade de Diadema, no ABC Paulista. Mas para isso, foge completamente do que assistimos em filmes de “retrato de artista” mais tradicionais. Num trato com seu interlocutor, Neves inventa uma história que serve de armação ou “dispositivo” a partir do qual todo o experimento do longa se desenrola: uma dupla de documentaristas estrangeiros, que nunca mostram seus rostos, chegam ao Brasil para fazer um documentário sobre a vida de um importante dramaturgo brasileiro. Toda a obra é um vai e vem caótico por uma Diadema noturna, sempre no encalço de Aquino, que no filme não é underground, e sim VIP.
A montagem (des)organiza os encontros com Aquino num ritmo marcado por trancos e saltos, bem ao estilo épico já esboçado no longa anterior do diretor, exibido na Mostra Aurora do ano passado, Cervejas no escuro (2023). Tem um caos coreografado aqui, mas que segue a pulsão da rua. Ou melhor, das ruas que o dramaturgo varre com seus passos.
Apesar das semelhanças entre os dois filmes, percebo uma radicalização dos aspectos lúdicos que já haviam sido semeados neste trabalho anterior. Mire veja: em Maçãs no escuro, a doideira é mais pesada. O ambiente também é muito diferente: a cena urbana, asfaltada, morros e becos, sombras e cigarros. As presenças que habitam essa Diadema estranhamente escura também são outras. Uma trupe de teatro que encontra suas formas de existir em cena entre o riso e o luto, o escárnio e a meditação existencial. Dos vultos dessa Diadema entre o pesadelo e o bacanal, a aparição de Edson Aquino dando uma “bongada” em sua maçã na escuridão de seu bunker é a que mais impregnou a minha memória.
Os filmes de Tiago A. Neves parecem surgir de uma obsessão do realizador com cidades e seus habitantes, mas não a partir de uma sociologia escolar, mas da perspectiva do desejo, sonho, delírio. Paraibano que foi viver em Diadema, fez do vai e vem marca estilística. Cada pessoa merece um filme na escuridão. Uma Comédia Humana entre a Paraíba e São Paulo parece estar surgindo nesses filmes baratos e escuros da trupe interestadual de Neves. Tentativas de fazer o riso driblar a morte.
Confesso que na noite da sessão de Lista de desejos para Superagüi (Pedro Giongo, 2024) durante a Mostra de Cinema de Tiradentes eu não dormi – fiquei a perambular pelas ruas e, naturalmente, terminei a noite no Vortex. Mas quando finalmente adormeci, sonhei com o movimento dos barcos. No meu sonho, uma senhora me sussurrava palavras que escutei na sessão deste filme. Era Dilma, uma das personagens do longa que, em dois momentos da história, toma a função de narradora. “Antes era melhor…”. Esta aparição sussurrante surge das sombras das praias azuis de Superagüi para enfeitiçar o espectador: “Não me acorda, Superagüi… Ainda tô dormindo”, diz ela baixinho para quem quiser escutar. É personagem ou veio para hipnotizar-nos? Os dois, sem dúvidas.
O filme dirigido por Pedro Giongo parte do registro da vida na ilha de Superagüi, no Paraná. Mas vai muito além de um documentário informativo, uma vez que consegue construir um universo que amalgama as promessas não cumpridas da Constituição de 1988, tensões do mundo atual como, por exemplo, a destruição do meio ambiente em escala global e, o que só a arte consegue conjurar, um mundo delirante de sonho – os sonhos dos habitantes da ilha azul-vermelho-fogo de Superagüi (sempre que escrevo ou digo ou penso nessa palavra, meu corpo arrepia).
Isso pois, como lemos na primeira cartela da obra, intitulada Lista de decretos, a vida por ali é fortemente impactada por leis federais, uma vez que a região é, desde a redemocratização do Brasil no fim dos anos 1980, uma Reserva da Biosfera e Patrimônio da Humanidade respaldada pela Unesco.
Das regras do jogo, ressalto duas: 1. É proibido plantar no solo da ilha; 2. Durante a época de reprodução dos peixes, é proibida a pesca. Isso impacta fortemente a vida na ilha, cuja principal ocupação é a pescaria. A última regra que mencionei também tem um efeito sobre a ossatura formal do filme, que se divide em duas partes. Primeira parte: Abertura da Pesca. Segunda parte: Inverno. Com pesca e sem a pesca. Entre um e outro: o movimento dos barcos e pessoas e seus desejos.
O filme consegue inventar a partir das idiossincrasias dos habitantes, mostrando muito mais que um registro do cotidiano da região. E o faz desde um compromisso com a beleza que parece nascer das tripas da ilha. O belo toma forma a partir da atenção para elementos da vida que escapam às observações apressadas de pesquisadores e jornalistas, agentes governamentais e turistas. É o jeito de falar e andar, o estilo de sonhar e fazer farra das pessoas de Superagüi que se metamorfoseiam em cena de cinema nesta alquimia sensual de imagens e sons. São as canções, acordes, batuques, cores, roupas, saberes e histórias que roubam nossa atenção e se infiltram em nossas memórias – verdades e mentiras que tem um estilo de ser e se refazer em filme.
Os enquadramentos muitas vezes pegam as cores pulsantes entre frio e quente das casas, barcos, roupas, instrumentos, pescados e fogueiras, mostrando belezas insuspeitadas em planos longos, serenos. Não preciso mencionar que é um filme atmosférico, sensorial. Isso sem dúvida nos ajuda a navegar por Superagüi – uma navegação imaginária que lembro ao dormir e relembro acordado. Estarei dormindo ainda?
A montagem do filme merece atenção, naturalmente. Pedro Giongo é, além de diretor, um sábio montador, tendo realizado, neste ofício, trabalhos como Casa Izabel (Gil Baroni, 2022), para ficar com um dos mais recentes. Giongo e Bruno Carboni (que divide a edição com o diretor) tecem ambientes entre a calmaria e a festa, o lamento da tempestade e sonhos de futuro por vida digna e felicidade coletiva. E isso tem um ritmo e também constrói um cromatismo singular. O ritmo acompanha o movimento dos barcos: cinética ondulante que faz subir e descer num flow sereno, mas não sem turbulências. As cores entram numa mistura entre o frio e quente: o azulado das praias entra em confluência com um vermelho incendiário das fogueiras, lanternas, cigarros, crepúsculos. O vermelho da aurora. Um esfria-esquenta gostoso de sentir.
A interrupção e o desvio encontram lugar na Lista de Desejos. De repente, a sombra vira luz. Um gesto de montagem interrompe a imagem em movimento e faz aparecer uma série de fotos em 35mm de quadros esculpidos de animais. As artesanias logo dão lugar para uma farra muito louca: uma música efusiva embala retratos de gente jogando cadeira pra cima, abraços e beijos, bebidas e saltos. A felicidade toma o filme de assalto para voltar ao claro-escuro do presente. Depois, um álbum de família, uma saudade bate forte. Sinto que os personagens da ilha são nostálgicos, de certa maneira: “antes era melhor…”.
Encontramos outros desvios nas cenas em que Martelo e seus companheiros e amigas da ilha buscam, num prédio na Justiça Federal alhures, provar a atividade profissional de longa data do velho pescador diante de um juiz, para que este consiga o benefício da aposentadoria. “Carente ajuda carente”, diz Passarinho para o juiz. Martelo já é velho de guerra, precisa descansar. “Superagüi não me acorda”. Mas talvez o atalho mais bizarro e belo do filme seja o momento em que Martelo conta a história do ouro enterrado muito tempo atrás em terras vizinhas. De repente o filme toma a forma do delírio do pescador. Ele e o comparsa traçam na areia o mapa do tesouro. Os amigos corsários partem na noite azul em busca do malote. “Dividir meio a meio”, repete Martelo para o outro pirata. Mas a cobiça toma conta: num mangue, o homem encontra o ouro cavando um barro-preto-escuro. O jovem dá o calote no velho e desaparece correndo por planos alucinantes na mata.
Antes de mais nada, Lista de desejos para Superagüi constrói um clima desejado, uma vibe indescritível. Obra que nasce, sintomaticamente, no tempo das catástrofes climáticas. Vem para oxigenar nossa imaginação e, quem sabe, contribuir para a desaceleração do mundo. Mas, como sabemos, isso já é papel de outros profissionais e o cinema, por si só, jamais salvará o mundo. Uma história criada a partir dos desejos de muita gente – pessoas que sonham e nos apresentam suas listas de desejos em imagem e som, cores, palavras e muita música.
Voltarei a dormir logo mais para, quem sabe, sonhar novamente com a ilha azul-vermelho-fogo. Desejo reencontrar Martelo, Cajá, Dilma e as outras pessoas e ambientes que vem voltando em minhas memórias num claro-escuro que tomou conta de meu corpo desde a sessão deste filme. Dessa vez, vamos encontrar o ouro debaixo da terra para dividir em partes iguais.
Um dos planos que melhor encapsula o jogo central de May December, novo filme de Todd Haynes, provavelmente é o que mais inspirou os cartazes do longa: um médio conjunto das duas protagonistas femininas olhando para a frente, com a câmera – e, nisso, também o espectador – representando um espelho. Nele, a atriz Elizabeth Berry (Natalie Portman) observa a boleira Gracie Atherton (Julianne Moore), personalidade real que interpretará em três semanas num filme, maquiar-se. Ela reencenará o polêmico início do romance entre Gracie e seu marido Joe Woo (tocantemente frágil na interpretação de Charles Melton), quando ele tinha apenas 13 anos e, ela, 36; um caso manchete de todos os tablóides nacionais à época. O filme de Todd Haynes se passa durante o “processo criativo” de Elizabeth para o papel, em que ela convive com o casal e seus filhos gêmeos em período de graduação enquanto entrevista as pessoas envolvidas e visita os lugares-chave do caso. A tensão é latente desde a primeira vez que Gracie e Elizabeth se encontram porque ambas representam, ao mesmo tempo, o combate a uma narrativa e o seu eterno estatuto de comoção popular. Por mais ambígua que a atriz deixe sua opinião sobre o caso, ela agita o pó da polêmica em âmbito local (a cidadezinha que vira seus olhos à figura da televisão corporificada) e lembra que o mundo logo voltará seus olhos ao caso.
De um jeito ou de outro, as duas protagonistas são mulheres que são imagem pública. Gracie, à sua maneira, é uma sorte de ícone geracional, uma imagem vertiginosamente reproduzida e já fixada no imaginário coletivo como um misto entre o arquétipo lilithiano da corrupção da pureza, e a santa punida pelo seu “amor ingênuo” (a pose quase virginal segurando o bebê de Joe, parido na cadeia, é uma das que Elizabeth tenta imitar de frente ao espelho). E muito interessa que a personagem de Portman seja constantemente mostrada posando em frente a um espelho que é a câmera. Esteja ela conversando ao telefone, esteja ela testando imitações: não vemos o reflexo, a imagem produzida. Vemos a pose deslocada de um crivo de ficção, de um contexto de encenação – vemos a pose em meio ao que entendemos, no filme, como o “mundo vivido”, o extracampo dos tabloides. Elizabeth suga em tempo real sua fonte original e, por isso, sua presença é intrinsecamente vil, vampiresca. Ela habita os espaços à volta do casal como a câmera de um reality show, próxima o bastante para um ângulo privilegiado, mas distante o bastante para abster-se da responsabilidade de sua presença. Seu ofício é o subterfúgio de seu fetiche.
A lacuna é gritante entre a atriz e o casal não só pela sua presença de invasora, mas pelo que ela busca e o que se apresenta em sua frente. Ela revira águas passadas e ressecadas, em busca do contexto para o fogo entre mulher e menor, mas o momento atual é o fim de um ciclo. A iminente partida dos filhos vira em Joe uma melancolia profunda; ele sente o luto do seu objetivo direto de viver até então – as crianças -, e parece perceber que os gêmeos entram agora no início de uma fase que ele renunciou permanentemente por um amor que ele jamais pôde questionar pela integridade pública do seu par. Joe parece tão alienado ao ponto de sequer saber expressar seus sentimentos em palavras; ele gagueja e soluça impotente. Em sua pureza de criança grande, Joe é uma ferramenta tanto para a esposa quanto para a atriz. Para Gracie, ele é um ponto a se provar; para Elizabeth, um objeto de desejo.
É inevitável falar de fetiche ao adentrar um pouco mais em Elizabeth, pois é sua forma de se relacionar com o mundo. A ligação safada com o diretor casado, o flerte muito frontal com Joe em toda oportunidade, a resposta que vira monólogo sexual a um público adolescente em espaço escolar, o sexo simulado sozinha na despensa da loja de animais onde o Gracie e Joe fizeram sexo pela primeira vez. Sua relação com o mundo é fortemente – senão inteiramente – filtrada pelo potencial sexualizante das coisas. Sua relação com o caso que encenará, naturalmente, também é contaminada pelo fetiche, de forma que Elizabeth parece uma potencial reprodutora do comportamento de Gracie (como nos sugere o plano final do filme). Aqui voltamos ao plano comentado no início: ambas estão de frente ao falso espelho. Gracie começa em foco, se maquiando, enquanto Elizabeth apenas observa ao fundo, ligeiramente turva; as duas se olham pelo reflexo implícito do espelho. Então Gracie a convoca ao mesmo plano focal, “é melhor se eu fizer isso em você”. Ambas passam a se olhar de frente e , pela primeira vez, Gracie é quem faz as perguntas sobre o passado de Elizabeth. As duas começam uma troca estranhamente confortável. Os subterfúgios de Elizabeth não conseguem evitar: ambas estão equiparadas.
May December é um filme que poderia facilmente alimentar-se da profusão de reflexos, duplos, e demais jogos de espelhamentos envolvendo as duas personagens principais em suas composições cênicas. Mas a obra parece preferir que elas se manifestem quase unicamente pela sua presença, pelas implicações da trama. Ao contrário, o mundo é que parece um reflexo (a imagem de Joe soltando a borboleta sobre a janela da casa; uma libertação unicamente simbólica, sublimada no insetinho. Só lhe cabe assisti-la.) dos seus mecanismos de manipular a própria imagem. A pergunta que se levanta quando Haynes rejeita o jogo dessas opacidades é “o que sobra dessas mulheres sem as imagens que lhes sucedem e precedem?”.
“O universo é eterno, os astros são perecíveis e como formam toda matéria, cada um passou por bilhões de existências. A gravitação, com seus choques ressuscitadores os separa, os mistura, os sova e modela incessantemente, com tanta maestria que não há um só que não seja composto da poeira de todos os outros. Cada polegada do chão que pisamos fez parte do universo inteiro.
Mas é apenas uma testemunha muda, incapaz de contar o que viu na Eternidade.”
(Louis Auguste Blanqui em A Eternidade Pelos Astros).
Em um ensaio sobre “A História do Olho” de Georges Bataille, Júlio Cortázar descreve um dia quente em Grignan onde, à beira de um plátano, olha o movimento da rua e observa uma ciclista a andar com graça em sua bicicleta. Em algum momento, a jovem ajusta sua saia e todo o cenário que cerca Cortázar se isola e se torna uma única coisa: esse leve remexer deixa à mostra as coxas em contato com o selim da bicicleta, criando um movimento hipnótico e sexual sob um sol imperdoável. O mundo se isola e se define naquela curva entre a saia e o selim, como se fosse a expressão de um momento divino – e proibido. Essa é uma digressão.
Há também quem diga que há duas impossibilidades primordiais no cinema: A representação da morte e do sexo. Há quem diga que a presentificação do ato sexual é inconcebível em uma arte onde se morre dez vezes em sequência. Também muito se discutiu o ato voyeurístico de ir ao cinema nas academias e na prática, ao bisbilhotar por entre as frestas nas madrugadas pela TV ou em quartos escuros o ato da nudez em nossa frente. A palavra ‘abjeta’ é usada em ambas as situações, em diferentes contextos. Há quem discuta todas essas implicações. Há quem discuta a necessidade do sexo no cinema. E todas essas questões são válidas. Se não as fossem, eram tão somente conjecturas. Mas essa é outra digressão.
Porém não cabe aqui a digressão. O que talvez caiba aqui é algo da ordem material e das coisas e não das ideias: Se nada disso é possível, se o sexo é abjeção na tela, se o isolar de um momento é um ato voyeurístico, como se explica, então o ato de trazer dos mortos o sexo de espectros e isolar essa única cena, um único detalhe, uma única circunstância e tornar o sexo o momento presente e eterno? Como trazer ao mundo imagens que mediam o desejo da carne e o desafiar do tempo? Como pode o sexo sair da conjectura do abjeto e se tornar algo cósmico?
Esse é XCXHXEXRXRXIXEXSX, de Ken Jacobs, onde duas mulheres colhem cerejas em uma árvore e são tomadas de assalto por um homem e iniciam uma verdadeira aventura sexual. Uma cena que dura horas e que é esmiuçada até o fim: vemos planos abertos, planos fechados, pernas abertas, pernas fechadas, bocas, mãos, duas mulheres indo em direção a um homem, levantar de saias e um verdadeiro êxtase pornográfico. Tudo isso em uma única ocasião: Mulheres colhendo cerejas. Não há nada mais do que isso. Não há uma trama ou um ponto de virada, um ato de sedução: O que há é o sexo, o corpo e a materialidade pura e simples. O que pode parecer algo comum na mídia corrente, nas mãos de Jacobs é, por assim dizer, um assombro: são utilizadas imagens de arquivo do início do século XX de um filme pornográfico chamado Cherries. Nada disso está vivo. E ao mesmo tempo, tudo está vivo e pulsante. E como pulsa.
É como se houvesse uma decomposição imagética do mundo e do ato sexual em partes, um breve chamariz de que o isolar do mundo em uma centelha de imagem durante minutos e minutos torna o ato sexual não somente algo da ordem do voyeurístico – afinal de contas, vemos a mesma cena milhares e milhares de vezes por minuto, ao ponto de a mente ir vagar em outros cantos do quadro que não nos corpos nus. Já não nos importa mais os corpos, mas sim, o que eles fazem, como eles se movem, como eles são compostos. Eles se desintegram, se reintegram, se esfacelam e se unem. Isso se eleva à ordem do divino, onde das coisas mais pecaminosas aos olhos humanos surgiu uma divindade, uma centelha do eterno, de algo que se repete e se extingue ao mesmo tempo. O que você vê ali são espectros, fantasmas, mediados pelo eternalismo – a técnica em que se alternam fotogramas próximos em sequência mediados por um plano negro, realçando a profundidade e um movimento 3D vivo. É como se as imagens estivessem em um constante indo e voltando, continuamente em um ato sexual desmedido, presente e ausente, infinito e avassalador.
A sensação de ver XCXHXEXRXIXEXSX é o prato de leite na história de Bataille, é a mulher de bicicleta em Grignon, é ver um corpo nu pela primeira vez. É uma sensação visceral. Nada te prepara para isso, porém uma vez visto, jamais esquecido.
Ken Jacobs mostra que a unidade primordial do mundo está em três coisas: No sexo, na morte e no que há entre os dois – o frame negro. O infinito do sexo está entre esses fotogramas semelhantes, escondidos no frame negro como uma espécie de mistério, o mistério da carne e do mundo. É como se ele nos dissesse que essas cerejas colhidas por essas mulheres seminuas transando com um homem em meio a uma floresta tivessem sido colhidas em um Éden. O fruto proibido, as cerejas, residem nesse frame escuro que realça o ato e a imagem. O frame escuro é o mistério da carne e do mundo. E abençoado seja esse mistério.
Era um dia quente de fevereiro de 1970, regado a chope gelado e enevoado pela fumaça dos cigarros de todos os presentes. O jovem cineasta Rogério Sganzerla, de 23 anos, espinafrava o Cinema Novo na ocasião do lançamento de seu novo filme, A Mulher de Todos – um dos grandes títulos do Festival de Brasília de 1969, incompreendido por parte da crítica durante o evento. Ao seu lado, comandava a entrevista em posição de igualdade a esposa Helena Ignez, atriz baiana que fora musa cinemanovista antes de passar a ser um elemento chave do que viria a ser chamado de “Cinema Marginal” ou “Cinema de Invenção” – um núcleo que vinha sendo gradualmente estruturado a partir dos anos finais da década de 1960, e que se agrupava em torno de um projeto estético e ideológico radicalmente diferente daquele que marcara época no período do Cinema Novo.
“Eu não acho que é perigoso. Se fosse perigoso eu acharia interessante também. A civilização do século XX já cansou de cultivar o perigo, o perigo hoje é uma coisa obviamente bacana. Talvez eu até nem goste do perigo, mas eu acho bacana.”, dizia acerca do Cinema de Invenção o entusiasmado Sganzerla, já consagrado como o autor de O Bandido da Luz Vermelha, rodado por ele em tenra idade, dois anos antes. Entre um e outro gole de chope, disparou: “Então, nós estamos vivendo uma fase agora onde você pode, por exemplo, como a gente estava há três meses atrás, falar bem da chanchada e falar mal do Cinema Novo. O que era antigo em [19]59, a chanchada, hoje é um dado de criação, um dado inventivo e o que era novo, o Cinema Novo, virou um dado conservador”.
É difícil imaginar o curto-circuito que a entrevista dada pelo cineasta e pela atriz aos jornalistas Millôr Fernandes, Sérgio Cabral Sênior, Tarso de Castro e Jaguar, d’O Pasquim[1], pode ter dado aos leitores menos familiarizados com a situação do cinema brasileiro naquele momento. Afinal, o Cinema Novo estava chegando a seu momento culminante: após denunciar radicalmente a situação do “Brasil profundo” em suas obras, que circularam amplamente pelo país e pelos festivais internacionais ao longo da década anterior, o movimento liderado intelectualmente por nomes como Glauber Rocha e Carlos Diegues finalmente conseguira firmar o pacto fáustico com os militares do regime ditatorial que então governava o país na fundação da Embrafilme, companhia de capital misto que fomentava a produção e distribuição de filmes brasileiros, responsável por um período irreconhecivelmente regular na produção de longa-metragens de ficção nacionais de projeção comercial e boa bilheteria entre 1969 e 1990 – quando, já agonizante, a empresa foi dinamitada pelo governo Collor. Naqueles primeiros meses do ano de 1970, estavam sendo gestados, sob faustosos orçamentos, os primeiros grandes filmes rodados por diretores oriundos do Cinema Novo para a Embrafilme, que nem sempre resultariam em produtos finais verdadeiramente interessantes, mesmo que bem-acabados – ver Barão Otelo no Barato dos Milhões (1971), de Miguel Borges, rodado com orçamento estelar para a época, com Grande Otelo no papel principal, película colorida e trilha sonora composta por Edu Lobo, e que mesmo assim entrega um resultado medíocre, para dizer o mínimo.
Fato é que, no mesmo período em que o Cinema Novo se dissolvia com a fundação desse cinemão industrial chancelado pelos militares, algo novo vinha sendo maquinado em São Paulo. Antigas lideranças do núcleo cinemanovista tentaram barrar a penetração de O Bandido da Luz Vermelha, de Sganzerla, no circuito nacional e europeu de festivais em 1968, temendo que a exposição de um filme radicalmente novo como o Bandido caísse à crítica e ao público como um atestado de óbito do reinado cinemanovista. O caminho das pedras, ademais, já era explanado pelo próprio Sganzerla em sua fita de estreia: o que havia de verdadeira novidade, naqueles emblemáticos anos finais da década de 1960, vinha da Boca do Lixo.
Contexto: a Boca do Lixo é uma região do centro de São Paulo, marcada sobretudo pela emblemática rua do Triumpho e pela rua Vitória, onde as majors internacionais de distribuição cinematográfica fixaram-se no início do século XX. Dali, os grandes lançamentos norte-americanos eram levados, cidade afora, por trabalhadores que carregavam as pesadas latas de filme em carrinhos de mão – quando o destino era mais longínquo, os rolos eram despachados em trens. Eventualmente, o local começou a entrar em decadência, tornando-se ponto de prostitutas, vagabundos, bêbados e marginais – e ainda assim, o ethos cinematográfico não largou o osso daquele quadrilátero. Nos botequins da rua do Triumpho, reuniam-se operários que transportavam as latas para cima e para baixo, técnicos que trabalhavam nos filmes brasileiros que vinham sendo gravados na capital paulista, diretores e roteiristas de obras de baixo orçamento e, marcadamente, uma nova geração de críticos e cineastas formada pela Escola de Cinema São Luiz, com bagagem diferenciada e avidez por fazer e acontecer, que encontraria naquele manancial um ambiente de trabalho propício para suas ambições. Ali, jovens promissores como o supracitado Sganzerla e Carlos Reichenbach trocariam ideias com nomes como Jean Garrett e Ozualdo Candeias – “paus para toda obra” mais experientes, e que trabalhariam como diretores, fotógrafos e até mesmo atores em um sem número de fitas gestadas entre uma e outra garrafa de cerveja nos bares da Triumpho. Aquele ambiente efervescente seria registrado por Candeias nos curta-metragens Uma Rua Chamada Triumpho 1969/70 (1970) e 1970/71 (1971), e relembrado posteriormente em longas como As Bellas da Billings (1987).
Já na entrevista dada a’O Pasquim, quando aponta a chanchada como um dado de criação, Sganzerla parece estar traçando o mapa da mina para o entendimento do cinema que vinha sendo feito na Boca do Lixo. O caráter sisudo e professoral das produções cinemanovistas dava lugar a uma linguagem despojada e, por vezes, francamente debochada. As personagens trágicas que serviam como avatares para as mazelas do povo brasileiro eram substituídas por atores e atrizes recorrentemente entregues a interpretações brechtianas, em longas que se importariam muito mais com a experimentação visual do que com uma narrativa clara e moralizante. Os cineastas da Boca, através dessa metodologia (que não era necessariamente uma cartilha a ser seguida à risca por todos), poderiam finalmente filmar com olhos livres[2], sem tabus. Isso pode ser visto já em A Mulher de Todos, sobretudo na forma como o filme lida com o erotismo.
Ângela Carne e Osso, a “mulher de todos” vivida por Helena Ignez, já se impõe e mostra sua atitude ao espectador desde o (emblemático) cartaz do filme: expressão de desprezo no rosto, cigarro pendurado na boca, mãos na cintura e braguilha da calça aberta. Apesar do título sugestivo, em momento algum a personagem é mostrada por Sganzerla como um mero objeto de desejo: o grande apelo de seu longa está na constatação de que, cobiçada por todos os homens que cruzam por seu caminho, a personagem faz deles gato e sapato a seu bel prazer. Esse exemplar prematuro de filme do Cinema Marginal a lidar com o sexo e a sexualidade de forma mais direta (ainda que sem trazer o apelo necessariamente para o físico de suas personagens) segue a trilha de obras como As Libertinas, longa episódico rodado na Boca em 1968 por Carlos Reichenbach, João Callegaro e Antônio Lima, e precede trabalhos como O Pornógrafo (197), de João Callegaro, e Audácia! – A Fúria dos Desejos (1970), de Reichenbach e Antônio Lima.
É de se pensar de onde o cinema da Boca do Lixo teria tirado sua “aptidão” ao erotismo. Pode-se argumentar que é um movimento compreensível, uma vez que o contato cotidiano com as manifestações da sexualidade no Brasil tornaria o tema naturalizado (ainda que tal visão perigue cair na perspectiva datada e passível de questionamentos de que o brasileiro seria um “povo sensual”, vide Gilberto Freyre), mas nunca antes no cinema brasileiro ele havia sido tratado de maneira tão despreocupada (obras cinemanovistas que lidam com o sexo e a nudez, como Os Cafajestes [1962] de Ruy Guerra, não exploram a sensualidade, mas sim os jogos de poder e a miséria existencial; em Walter Hugo Khouri, autor fora da curva e da grei dos “movimentos” cinematográficos, o erotismo é um elemento que articula as tensões de seus sofisticados jogos psicológicos, passando a ocupar papel cada vez mais determinante em seus filmes mais tardios). Talvez tenha sido das fitas do Zé do Caixão, dirigidas por José Mojica Marins, autor cultuado e tido como mentor pelos expoentes mais significativos do Cinema Marginal. Talvez tenha sido, mesmo, uma retomada da linha evolutiva da chanchada, onde desde a década de 1930 verificava-se uma sexualidade “bem-comportada” nas esquemáticas dos casais mocinha-galã e nos números musicais, mas com destaque para grupos de vedetes apresentando marchinhas carnavalescas e trajadas em maiôs justos, com as pernas à mostra — seria ingênuo não considerar o dado da exploração da imagem do corpo feminino como um dos fatores para a comédia musicada ter se tornado, a rigor, o primeiro filão de bilheteria do cinema brasileiro. A Boca do Lixo viria a (re)descobrir esse filão, seguindo nesse sentido um caminho bem diferente daquele trilhado por expoentes do já dissolvido Cinema Novo (Carlos Diegues, por exemplo, parece ter aprendido todas as piores lições da comédia musicada em Xica da Silva [1976], que não obstante logrou grande sucesso comercial, enquanto Joaquim Pedro de Andrade subverteu os signos visuais da chanchada de forma mais iconoclasta em trabalhos como o seu Macunaíma [1969]).
O Cinema de Invenção desenvolve-se em vento de popa ao longo daqueles primeiros anos da década de 1970, com Sganzerla passando uma temporada no Rio de Janeiro com Júlio Bressane, onde os dois gravam os seis míticos filmes da efêmera produtora Bel-Air; cineastas como José Agrippino de Paula, Andrea Tonacci, João Silvério Trevisan e Carlos Coimbra, além dos já mencionados Reichenbach e Candeias, seguiam trabalhando na Boca. A partir de dado momento, pode ser notada uma maior profusão das fitas que lidavam, de modo frontal, com o sexo – este passava a tornar-se o principal interesse de alguns realizadores, em detrimento de um elemento a ser explorado pelo experimentalismo do grupo do Cinema de Invenção. Desenvolve-se, na Boca do Lixo, uma eficiente cadeia de produção e exibição do tipo de filme que viria a ser chamado de “pornochanchada” – por uns pejorativamente, por outros, nem tanto (certos cineastas chegariam, mesmo, a abraçar o termo). Esse ciclo da pornochanchada paulistana foi em muito estimulado por um dado fundamental: à época, alguns dos mais prósperos homens de negócios da Boca eram donos tanto das companhias produtoras que financiavam aqueles filmes, como também de algumas salas do parque exibidor local. Para o cineasta que trabalhasse naquela lógica de mercado, isso apresentava vantagens e desvantagens: se, por um lado, seu longa já contava com a garantia de que seria exibido em um número inicial de salas, por outro o mesmo tornava-se refém das exigências do produtor-exibidor. Como é de se imaginar, as exigências do produtor-exibidor eram, grosso modo, a de que as fitas onde seu dinheiro estava investido fossem as mais lucrativas possíveis. Para eles, isso significava, necessariamente, a inserção do erotismo: da nudez e do sexo entre as personagens nos filmes à escolha de títulos sugestivos (que hoje, para um espectador não familiarizado, podem soar kitsch) e a elaboração de cartazes que exaltassem os atributos físicos das atrizes presentes na obra. Para exemplificar à perfeição esse perfil de produtor-exibidor tão característico daqueles anos da Boca do Lixo, pode ser citado o nome de Antonio Polo Galante, que notoriamente exigia de seus contratados fitas que contivessem uma minutagem mínima de nudez ou seminudez, conforme relembrado por Carlos Reichenbach em seu depoimento para o documentário O Galante Rei da Boca (2003)[3].
Alguns diretores manejaram contornar as regras desse sistema e utilizá-lo a seu favor, seguindo as regras cuidadosamente enquanto, em paralelo, conseguiam realizar obras que estavam longe de explorar o erotismo meramente como um filão comercial (Reichenbach, por exemplo, conseguia fazer de uma fita intitulada A ilha dos prazeres proibidos um filme sobre exilados políticos e utopias perdidas, rodando-o em meio à ditadura militar). Outros, invariavelmente, tinham suas ambições esmagadas pela máquina e frustraram-se ao ver seus projetos originais retalhados pelas demandas mercadológicas da Boca. E haviam aqueles que abraçavam o sexo e a sexualidade enquanto as forças motrizes de suas produções. Falemos um pouco sobre os últimos.
Os primeiros trabalhos do catarinense Ody Fraga podem fazê-lo parecer uma figura insuspeita. Ele é creditado como roteirista em Conceição (1960), thriller com Helio Souto e Norma Bengell, e foi um dos três diretores a rodarem O Diabo de Vilha Velha (1966), o faroeste de produção conturbada regido por José Mojica Marins – seu primeiro crédito de direção. Já em 1967, surge como diretor de Vidas Nuas, em uma guinada definitiva ao erotismo da qual jamais voltaria atrás. A partir de então, passou a marcar território na Boca do Lixo como produtor, roteirista e diretor (exercendo de forma perceptivelmente competente as três funções, diga-se) de numerosas fitas que lidavam com o sexo em primeiro plano. Ao longo dos anos 1970, emplaca uma sequência de filmes eróticos com títulos como Adultério: As Regras do Jogo (1975), O Sexo Mora ao Lado (1975), Reformatório das Depravadas (1978), Terapia do Sexo (1978) e A Dama da Zona (1979), apenas para citar alguns (durante aqueles anos, Fraga trabalhava num ritmo incansável) – todos longa-metragens. Gostaria de trazer a atenção, ademais, para uma frutífera parceria travada entre Ody Fraga e outros dois nomes da Boca do Lixo, representativa para ilustrarmos a transição entre o erótico e a pornografia explícita na Boca e sobre como tal movimento precedeu sua irremediável decadência enquanto polo cinematográfico.
Natural do Mato Grosso do Sul, David Cardoso chegara à Boca do Lixo já como um rosto conhecido; como ator, ele trabalhara com diretores de renome como Walter Hugo Khouri e participara de sucessos comerciais como Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1968). Isso, porém, estava longe de saciar suas ambições. Atuando como produtor, financiou e estrelou três filmes de Ozualdo Candeias: A Herança (1970), adaptação cabocla e sem diálogos do Hamlet shakespeariano; Caçada Sangrenta (1974), aventuresco e de longe o longa mais “comercial” dirigido por Candeias em toda a sua carreira; e A Freira e a Tortura (1984), drama político com uma veia exploitation que é a marca registrada de boa parte das fitas produzidas por Cardoso. Enquanto atuava nos filmes de cineastas como Garrett e Reichenbach, ele tocava os negócios da DaCar, sua produtora (e habitual co-produtora de uma série de filmes em que marcou presença como ator entre os anos 1970 e 1980). Galã nato da Boca do Lixo, os filmes produzidos (e sobretudo os dirigidos) por Cardoso valorizavam seu físico, sobretudo nas sequências onde haviam a nudez ou as relações sexuais. O entendimento com Ody Fraga, um dos maiores (e melhores) artífices do erotismo na Boca, parecia natural. Não é difícil entender o porquê dos dois terem firmado parceria.
Para fechar o trio, aquele que talvez tenha a trajetória menos clara e mais enigmática dentre os três. Nascido em Chongqing, na China, Chien Lien Tu chegou ao Brasil aos 8 anos de idade com sua família. Os primeiros bicos no cinema, área na qual passaria a ser conhecido pela alcunha de “John Doo”, foram trabalhando em filmes de Mazzaropi durante a década de 1960. Somente em 1978 ele se lançaria como roteirista e diretor, com Ninfas Diabólicas, seguido de perto por Uma Estranha História de Amor, no ano seguinte. Nas duas obras, o horror e o fantástico – elementos fundamentais de seu cinema – já se mostram presentes. Além, claro, do sexo à moda Boca do Lixo, constante em rigorosamente todos os filmes que assinou enquanto autor.
O filme que sacramenta a parceria entre Ody Fraga, David Cardoso e John Doo não poderia ter outro título se não “Pornô”, puro e simples. Lançada em 1981, essa produção compartilha o zeitgeist com uma outra, incontornável para discutirmos o paradigma da Boca do Lixo naquele momento. Será necessário discorrer brevemente sobre este, para que possamos elaborar melhor sobre Pornô e a trinca Ody/David/Doo posteriormente.
Naquele começo da década de 1980, estreou em São Paulo um longa-metragem de três episódios, co-dirigido por Raffaele Rossi (antes conhecido por assinar fitas sobre lobisomens ou cultos satânicos apimentados) e Laente Calicchio. Coisas Eróticas seria, ironicamente, o começo do fim para o erotismo da Boca do Lixo: tido como o primeiro filme brasileiro de sexo explícito, ele abriria o caminho para que os produtores-exibidores da Boca enxergassem na pornografia um potencial de lucro maior do que o já tradicional erotismo vinha oferecendo. O filme fora idealizado por Rossi na esteira da liberação do polêmico O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, por parte da censura brasileira – a produção japonesa passara anos retida de circular por aqui graças a sequências consideradas por demais incidentes e imorais pelas canetas dos milicos. O Império dos Sentidos nada tinha de pornográfico, mas serviu como pretexto para diretores ambiciosos, como Rossi, esticarem a corda e verificarem até onde ela ia. Essa é, resumidamente, a história de como nasce o explícito no cinema brasileiro[4].
Esse sinal dos tempos já pode ser sentido no Pornô de Ody Fraga & companhia. A nudez e o sexo aqui já são mostrados sob um olhar diferente daquele que orientava o grosso das fitas eróticas da Boca; a ênfase na performance sexual entre atores e atrizes ganha maior destaque, com uma encenação que beira o naturalista. Ainda estamos, porém, longe de replicar o Coisas Eróticas de Rossi, onde um fiapo de trama mal costurada serve como mero pretexto para engendrar as longas sequências sexuais. Aí é que encontramos o que há de mais interessante nas produções de Cardoso/Ody/Doo: a aptidão, dos três, para produzir filmes narrativa e visualmente inventivos e interessantes. Pornô, por exemplo, é todo calcado no drama de personagens de classe média ou média-alta que precisam contornar as barreiras impostas pela classe para conseguir executar seus desejos – o que compreende, inclusive, ludibriar os empregados que estão sempre trabalhando em suas casas, olhos atentos e vigilantes. O longa é dividido em três episódios, com cada integrante dessa trinca de ases da Boca ficando a cargo da direção de um deles, atuando nos demais como produtor ou roteirista. O destaque da antologia inevitavelmente vai para O Gafanhoto, segmento dirigido por John Doo e uma das melhores demonstrações da potência de seus jogos de cena que exploram o horror, o suspense e o absurdo.
Filmes como Pornô tornaram-se grandes sucessos de bilheteria para o cinema brasileiro – na esteira de Coisas Eróticas – e comprovam não apenas o potencial daquele erotismo tardio da Boca, já com um pé no explícito, como também o êxito obtido pelos três cineastas ao arquitetar esse ecossistema de trabalho, onde cada um assinava um dos episódios do longa antológico e todos ajudavam uns aos outros.
No mesmo ano de Pornô, chega também aos cinemas um dos maiores sucessos empreendidos pelo grupo, A Noite das Taras, estrelado pelo astro do erótico/explícito Arlindo Barreto. Com este, o trio bota por terra qualquer dúvida sobre a capacidade comercial daquele cinema que vinha sendo produzido na Boca do Lixo no início da década de 1980: ultrapassa as barreiras dos “cinemas poeira”, salas menores e destinadas ao público operário que geralmente eram destinados a filmes de ação-aventura ou eróticos; A Noite das Taras chega às maiores e mais luxuosas salas de cinema de diversas capitais do país[5]. Narrativamente, ele segue a mesma linha de Pornô, com a estrutura de vinhetas, os flertes com o suspense, o terror e pitadas do fantástico.
A “trilogia” – toda produzida, frise-se, pela DaCar de Cardoso – seria completada pelo que talvez seja seu componente mais emblemático: Aqui, Tarados!, também de 1981 (a produtividade dos cineastas da Boca parece ainda não ter encontrado par na história do cinema brasileiro). Os segmentos comandados por Ody Fraga e John Doo entregam o que é esperado deles; o que se destaca nessa última antologia, no entanto, é o filmete dirigido por David Cardoso: O Pasteleiro. Aqui talvez tenhamos o apogeu dessa parceria entre o “trio parada dura” da Boca do Lixo, episódio estanque desses três longas realizados por eles. Trata-se de uma das melhores, mais criativas e legitimamente perturbadoras fitas de terror produzidas pelo cinema brasileiro naquele período. O destaque, evidentemente, deve ser dado ao pasteleiro titular, vivido por John Doo – que, além de cineasta, também foi ator de ocasião nas produções de amigos e companheiros da Boca, mesmo depois de aposentar-se do cinema em meados da década de 1980 (seu último crédito como diretor é Volúpia de Mulher, de 1984, mas após isso ele ainda marcaria presença em trabalhos de diretores como Carlos Reichenbach e Guilherme de Almeida Prado)[6].
Após isso, a parceria entre Ody Fraga, John Doo e David Cardoso – pelo menos, nos moldes dos três filmes onde todos efetivamente escrevem, produzem e dirigem – chegaria ao fim. A DaCar ainda lançaria um A Noite das Taras 2, com direção de Ody Fraga e Cláudio Portioli, e já sem o envolvimento de Doo – elemento indispensável para que filmes como o primeiro Noite, Pornô e Aqui, Tarados! funcionassem tão bem. A estrutura do longa episódico, vastamente utilizada durante o período da produção erótica, torna-se um molde para a era do sexo explícito. Quando a pornografia – e é necessário sempre ressaltar que existe uma clara diferença entre produções eróticas e pornográficas – toma a Boca de forma irremediável, os cineastas e técnicos que ali trabalham logo veem que precisam se adaptar aos novos tempos ou pendurar as chuteiras.
Diretores como Ody Fraga, que nunca esconderam seu entusiasmo em relação ao sexo e à pornografia, fariam a transição ao explícito sem pestanejar. Por outro lado, cineastas do calibre de um Jean Garrett, a essa altura já o autor de A Mulher Que Inventou o Amor (1979) e Tchau, Amor (1983), teriam fins de carreira melancólicos dirigindo filmes muito abaixo de seu potencial enquanto artistas, unicamente para suprir as demandas do explícito, como Entra e Sai (1986) e o paródico O Beijo da Mulher Piranha (1986). Mesmo nessas condições de trabalho, por vezes um diretor como Garrett conseguia imprimir respiros de autoria a obras que não pareciam dar margem para tal: Fuk Fuk à Brasileira (1986) talvez seja o melhor filme da fase explícita da Boca do Lixo justamente por ser aquele em que Garrett consegue levar a narrativa rocambolesca ao absurdo e ao lúdico de forma admirável, ainda que eventualmente precise voltar à realidade para cumprir as cartilhas da pornografia, que a essa altura já exigiam planos fechados em sequências de penetração e sexo oral, além da nudez quase absoluta de boa parte das personagens (sobretudo das femininas) durante a maior parte da minutagem dos filmes. Em Fuk Fuk à Brasileira, já os créditos iniciais são sobrepostos a closes de penetração em uma sequência de orgia. É o explícito mostrando, sem preliminares, ao que veio.
A saturação da Boca do Lixo viria com a avalanche de pornografia de estrangeira, trazida de forma barata para o Brasil e que tomaria cada vez mais o espaço do produto nacional. Na metade final da década de 1980, a decadência do quadrilátero das ruas Triumpho e Vitória, como polo cinematográfico e também como espaço urbano, já parecia irreversível. Esse triste desfecho para o berço do Cinema de Invenção e do ciclo da “pornochanchada” paulistana serve para demarcar com nitidez as distinções entre o erótico e o explícito em nossa cinematografia, sobre as quais tentamos discorrer, de maneira mais ampla, nessas últimas páginas. Com o erótico, a Boca prosperou e serviu de laboratório para alguns de seus maiores gênios. Com o explícito, se de início encontrou faturamento farto, logo viu-se sufocada pelo esgotamento de suas fórmulas e pela avalanche da concorrência internacional. Uma das sinas seculares enfrentadas pelo cinema brasileiro.
[1] A antológica entrevista de Helena Ignez e Rogério Sganzerla a’O Pasquim, publicada na edição 33 do periódico (5-11 de fevereiro de 1970), pode hoje ser lida na íntegra graças à preservação e digitalização da edição promovida pela Hemeroteca Digital Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional. A entrevista está disponível em: <memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=124745&pasta=ano%20197&pesq=Rog%C3%A9rio%20Sganzerla&pagfis=503>.
[2] Expressão cunhada pelo crítico e cineasta Jairo Ferreira, autor do seminal livro Cinema de Invenção (1986), e utilizada recorrentemente por Carlos Reichenbach para designar um olhar cinematográfico despido de preconceitos e sempre interessado em expandir seu conhecimento.
[3]O Galante Rei da Boca, documentário média-metragem de Alessandro Gamo e Luís Rocha Melo que explora a influência de Antonio Polo Galante e sua companhia, a A.P. Galante, na Boca do Lixo paulistana, está disponível on-line legalmente na plataforma Vimeo, através do canal de um de seus diretores: <vimeo.com/135767497>
[4] A produção, a recepção e o impacto do Coisas Eróticas de Raffaele Rossi na Boca do Lixo e na cinematografia nacional são dissecadas no documentário A Primeira Vez do Cinema Brasileiro (2013), de Denise Godinho Costa, Bruno Graziano e Hugo Moura.
[5] Vale mencionar o registro histórico encontrado pela pesquisa do cineasta Kleber Mendonça Filho para Retratos Fantasmas (2023), seu longa que explora, dentre outros tópicos, uma cartografia e historiografia dos cinemas de rua da cidade do Recife. Uma das imagens recuperadas por KMF mostra uma das mais requintadas salas da capital pernambucana, com letreiro e anúncio gigantes promovendo a exibição de A Noite das Taras.
[6] Para uma crítica mais aprofundada sobre O Pasteleiro, ver: <planoaberto.com.br/critica/o-pasteleiro-1981>