Por um cinema falado

Éric Rohmer[1]

Tradução: Bernardo Moraes Chacur

O cinema passou mais de trinta anos aprendendo a prescindir da palavra. É natural que, dezoito anos depois[2], ele ainda não tenha encontrado a forma de utilizá-la. Estou me referindo à desconfiança, disseminada entre os melhores diretores, com relação a esse poder da linguagem que lhe é essencial, o de significar. Se o filme falado é uma arte, é necessário que a palavra desempenhe nele um papel condizente à sua natureza de signo, ao invés de figurar apenas como um componente privilegiado entre os elementos sonoros, mas de importância secundária com relação ao elemento visual. Ainda é muito difundida a crença de que o valor de um filme seria proporcional à sua independência das palavras e de que uma obra cinematográfica digna desse nome perderia muito pouco ao ser assistida sem dublagem por um público estrangeiro. Pode-se admirar o excelente Farrapo Humano porque Billy Wilder consegue iluminar as intenções mais sutis de seus personagens com métodos puramente visuais – ou sonoros. Mas lamenta-se, enfim, que eles falem. A palavra ou é supérflua ou indispensável. Não se pode adicioná-la sem necessidade ou subtraí-la sem prejuízos.

Farrapo Humano (The Lost Weekend, Billy Wilder, 1945)

Em resumo, não é exagero dizer que, até hoje, há apenas um cinema sonoro. O erro dos cineastas de 1930 foi acreditar que somente a questão do tratamento cinematográfico do som era importante, enquanto a solução para o problema secundário da palavra (a introdução de um modo autônomo de significação, que é a linguagem, em uma arte de expressão visual) seria encontrada como decorrência lógica da primeira. Todos os esforços posteriores conduziram ao enfraquecimento da potência própria à palavra. Logo compreendeu-se que a palavra era som antes de ser signo e admitiu-se que ela deveria ser tratada como um modo de ser e não de revelar. A fala de cinema não se apoia somente sobre os diálogos que a precedem ou que a sucedem, ela está no tempo e não no texto. Simples instante no desenrolar de um filme, ela requer a sustentação de outros instantes, inclusive dos silenciosos. “O problema principal para os roteiristas”, escreveu André Malraux, na Verve em 1940, “é saber quando os seus personagens devem falar”.

Não se trata de trapacear. O problema do cinema falado não é apenas de encenação e o papel cada vez mais especializado que, na maioria dos casos, é relegado aos diretores, é certamente uma das causas desse equívoco. Eu sei que alguns dialoguistas compreendem muito bem que devem escrever para as telas de modo diferente do que fariam para o teatro ou para a página impressa. Pode-se inclusive repreendê-los por introduzir modificações absolutamente desnecessárias em suas adaptações, sob o pretexto das exigências próprias ao cinema. Mas esses remanejamentos se concentram muito mais sobre os modos de apresentação do que sobre o sentido. A maioria dos diálogos escritos para o cinema até aqui podem ser definidos como falas de teatro ao estilo de romance. Em geral, sob a forma escrita, eles pediriam naturalmente o “disse ele”, que, em um romance, delimitaria as frases dos personagens a um intervalo específico de tempo. Ainda assim, seu conteúdo jamais atinge a naturalidade dos diálogos dos romances americanos, por exemplo. Estes, conforme suficientemente demonstrado pela experiência, não podem ser transpostos para as telas sem perdas. Tais diálogos só são eficientes, aliás, porque conseguem trazer à vida todo um mundo à sua volta. No cinema, esse mundo existe. A frase pronunciada não precisa evocá-lo, mas somente encaixar-se nele e, desse modo, possuir uma densidade de sentido capaz de salvá-la da destruição. Os dialoguistas com aptidão para o cinema tentaram viabilizar de diversas maneiras essa junção entre palavra e mundo filmado. O texto de Prévert costuma ser um comentário poético ou humorístico sobre a imagem, mas o erro é precisamente confundir a imagem com um elemento do filme, como se fez tantas vezes desde o começo do cinema falado. Griffith, Sjöström, os expressionistas alemães, Chaplin, Gance e Eisenstein criaram – por meios muito diferentes – uma linguagem que se mostrou quase tão rica e sutil quanto a fala. É compreensível que a palavra tenha surgido como um elemento parasita, a ser mantido sobretudo às margens, e que a presença simultânea das duas linguagens tenha enfraquecido consideravelmente a capacidade expressiva de ambas. Não apenas a palavra foi tratada como som, conforme já mencionado, mas também a imagem foi reduzida a simples quadro ou cenário. A imagem nunca foi tão intrinsecamente bela, tão amorosamente trabalhada por seus especialistas quanto nos anos entre 1930 e 1940, uma verdadeira era de ouro para esses profissionais, sobretudo na França. No período, os diretores legavam a esses especialistas a maior liberdade possível com relação à determinação da posição dos atores no quadro e à distribuição das massas de sombra e luz.

Em nossa opinião, a relação entre o elemento visual e a palavra deve se estabelecer de forma totalmente diferente. Vários filmes permitem entrever como a linguagem poderia recuperar sua verdadeira função, precisamente aqueles que, passada quase uma década, indicam o rumo para uma nova concepção de decupagem. Talvez devamos exigir menos dos dialoguistas do que dos próprios diretores, que frequentemente tratam os diálogos como um material desimportante, enquanto aplicam toda a sua engenhosidade à procura de ângulos de câmera ou de um ritmo sutil nas transições entre planos e contraplanos. Não será, tampouco, com personagens enunciando máximas de La Rochefoucauld enquanto consertam rádios ou dirigem por vias engarrafadas, entrecortando seus discursos com interjeições e balbucios, que se falará a uma autêntica linguagem de cinema. A arte da direção não existe para obscurecer o que os personagens dizem, mas, pelo contrário, para permitir que não percamos nenhuma palavra. Os melhores diálogos de Cocteau estão em As Damas do Bois de Boulogne, assim como os melhores de Prévert estão em O Crime de Monsieur Lange, porque Bresson e Renoir só lhes permitiram incluir o essencial à compreensão do filme (e não estou me referindo à sua dimensão anedótica). Com o uso do plano-sequência, tal exigência se torna ainda mais evidente e o ponto fraco de Cidadão Kane, é que nele a palavra ainda é tratada como barulho. Em Soberba (que considero superior), por outro lado, até a palavra mais breve tem peso, porque ela nos revela aspectos dos personagens ainda não evidenciados pela narrativa. Os dois melhores exemplos são sem dúvida o plano fixo na cozinha e o longuíssimo travelling ao longo da rua. Um jogo entre plano e contraplano teria certamente enfraquecido o caráter expressivo de ambos. A imobilidade do ritmo (caso possa-se assim dizer), a fixidez obstinada dos dois personagens, o “não coma tão depressa”, da tia, desempenham um papel bem oposto ao realismo mundano que o cinema costuma oferecer com condescendência. Retomando a distinção clássica, eles estão ali por necessidade e de forma alguma por verossimilhança. O travelling ao longo da rua, por sua vez, exprime pelo seu desenrolar monótono o vazio de uma conversa que não será concluída. Não é com a imagem que a palavra mantém uma relação, mas com um elemento totalmente cinematográfico: a dinâmica do plano, ainda que nesses dois casos, ela seja obtida por uma tensão na imobilidade.

Soberba (The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

Assim, é preciso encontrar uma maneira de integrar a palavra ao filme e não ao mundo filmado, seja ao plano em que ela é enunciada ou à uma sequência anterior ou subsequente. Na cena do hangar em Portas da Noite, a falha do texto de Prévert (no diálogo entre Yves Montand e Nathalie Nattier) é evocar um imaginário exterior ao filme, como em uma narrativa teatral.  Já a sequência de O Crime de Monsieur Lange, na qual René Lefèvre relata a Maurice Baquet como passou sua manhã de domingo, é excelente pela dupla razão de aludir diretamente a uma outra cena e porque esse relato é mentira. Não se mente o suficiente no cinema, exceto talvez nas comédias (pode-se considerar que René Clair, Lubitsch e Capra dirigiram os filmes de maior valor do período entre 30 e 40, as raras obras que não nos forçam à nostalgia pelo cinema mudo). Para atenuar ou controlar a potência formidável da palavra não é necessário, como se acreditou, tornar a sua significação indiferente, mas enganosa. No teatro, nunca se mente. Isto é, seja na tragédia ou na comédia, a palavra nunca é simplesmente modo de ação de um personagem sobre os demais e sempre possui um valor intrínseco – ou atemporal se preferirem. Não há lugar no teatro para aquela ambiguidade própria aos diálogos de Dostoievski, Balzac ou Faulkner. Por outro lado, encontramos essa ambiguidade nos melhores filmes realizados nos últimos dez anos: A Regra do Jogo de Renoir, As Damas do Bois de Boulogne de Bresson/Cocteau, na obra de Preston Sturges, em alguns policiais americanos como O Falcão Maltês de Huston/Hammett ou À Beira do Abismo de Hawks/Faulkner. Em Orson Welles, esse hiato entre a significação da palavra e a do elemento visual, o contraponto entre texto e película (que é totalmente diferente do contraponto sonoro outrora preconizado por Pudovkin e Eisenstein) tende a seguir a via do comentário. Nos últimos anos, diretores muito diversos têm usado com frequência esse procedimento – talvez um pouco simplório – evidenciando a inegável necessidade de restituir à palavra a sua função legítima dentro de um filme.

As Damas do Bois de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne, Robert Bresson, 1945)

A distinção que podemos estabelecer entre o cinema e o teatro não recai de forma alguma sobre a importância respectiva que cada um confere à palavra. Temos, sobre os cineastas de 1930, a imensa vantagem de não sermos mais assombrados pelo espectro do teatro filmado e será possível, de agora em diante, dedicar toda a nossa atenção ao problema essencial: escrever diálogos realmente feitos para o filme no qual terão lugar. Isto pressupõe, da parte dos dialoguistas, um conhecimento perfeito da linguagem visual com a qual o diretor pretende se expressar e, da parte do segundo (caso não sejam a mesma pessoa, como desejável), a disposição para considerar a palavra como parte constitutiva de sua obra.

Até tempos recentes, enquanto se contentava em adaptar de forma mais ou menos hábil os procedimentos que outrora compensaram a ausência das palavras, não se podia dizer que havia um verdadeiro estilo do cinema falado. Para a elaboração desse estilo, deverão ser aproveitadas as explorações das vanguardas dignas desse nome, apesar das dificuldades materiais. Já esperamos demais pela prova de que a era do cinema falado já começou.

Le Temps Modernes, setembro de 1948 (Retirado da coleção Le Goût de la beauté, Cahiers du cinéma, 2004)                              

Conto de Verão (Conte d’été, Éric Rohmer, 1996)


[1] Na verdade, o artigo é assinado por Maurice Schérer, que só passaria a usar ‘Éric Rohmer’ a partir de 1955, já na Cahiers du Cinéma.

[2] O texto foi originalmente publicado em 1948.

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