Do jogo de incontinência à mania da origem

Por Felipe Leal

    Na língua inglesa, quiet vem a traduzir tanto aquilo que está “quieto”, no sentido da pouca vibração, digamos, molecularmente falando, como também significa a ação que se faz num volume baixo, discretamente, em oposição ao que é loud, barulhento – de forma que estes Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018) e Um Lugar Silencioso: Parte II (A Quiet Place Part II, 2020) remetem inicialmente a uma forma de território inóspita, como veremos, a) no que diz respeito a uma lógica avessa ao manuseio “pesado” de qualquer objeto, situação dramática ou rotina de existência, e b) no que é preciso desenvolver de uma linguagem particular de sinalizações para crescer enquanto família. 

Aviões de brinquedo, os gestos da cozinha, a repreensão de um filho: desde que a misteriosa avalanche de monstros cuja visão está no barulho invadiu aquela incerta dimensão de mundo, o que se assiste como estando resumido, a princípio, à sobrevivência de uma família, está cercado e plenamente dependente de um jogo entre a vida e o som. Vida além do fator biológico; vida sob a régua da concepção, da expectativa que solda hábitos.   

    Às cegas sobre o futuro, continuamente em busca de sinais de vida alheia ou de uma sobrevivência mais bem equipada, e vendo seu microcosmo ruir em nome destas ausências mesmas, aquela família composta de quatro membros (melhor diríamos “cinco menos um”) não viveu sempre num território de inexplicáveis bestas com superforça e supervelocidade. Isto nos será atestado, em inteligente lance de economia diegética, por alguns jornais de conteúdo premonitório, profilático e massivamente emergencial, e pelos quadros simplificados com informações parcas e pouco úteis sobre os tais inimigos inumanos, ambas as formas de comunicação “coletiva” não fazendo mais do que duplicar, em palavras frias e gordurosas, a desesperança que os consome no “dia 89” ou no “dia milésimo” de um calendário já apocalíptico. 

Horror, então, de fim de mundo? Suspense de gatilhos sonoros? Ficção científica ou filme-dispositivo? Talvez, mais do que estes compossíveis, um só, contendo todos os outros: um exemplar family movie

Pois o que sabemos, agora, depois desta continuação minimamente ineficaz, ser a “franquia do lugar silencioso” não fez por seus andamentos e tesouradas diegéticas senão elaborar o slogan nuclear uma vez proferido pela senhora Abbott (Emily Blunt) em uma série de artimanhas paternas e maternas para educar aqueles dois filhos através dos ensinos extremos da proteção calculada. Em outras palavras: de uma ascese pelo som “de dentro”, pela ausência de som (esperança) que deve ser aceita e reelaborada no mundo da quietude que é agora seu lar. E como é comum às éticas televisiva e cinematográfica, hoje, que toda a sabedoria de certos antepassados seja invocada como um poder da boa persistência obsessiva edipiana, o que se poderá dizer de qualquer expectativa de continuidade aos filmes, que de fato despontaram numa premissa requintadamente original para as sensações, é que a marcha do amadurecimento filial é longa e patética o suficiente para aniquilar qualquer engajamento que ultrapasse dois pulinhos de horror.  

 “Quem somos nós, se não pudermos protegê-los?”, ela pergunta ao marido, e entremeados aos procedimentos de sobrevivência estarão tentativas de uma transmissão de sabedoria que consiste, por exemplo, em fazer o filho vê-lo pescar com as mãos, gesto em teoria escandalosamente barulhento, no limite de um “não-estresse do ambiente”, como se lhe pedisse para entender o som-do-peixe, o peixe tão-somente pelo que ele não será perceptível – e não temer o possível urso. 

No primeiro dos filmes, em particular, precisamente pela conquista de um frescor auditivo capaz de determinar o ouvido sobre a visão, e portanto criando o aberto no fechado, a exigência de um tipo específico de corpo espectatorial como pré-requisito para a duração integral da obra é sem dúvidas o maior dos triunfos, se pensamos num enraizamento para o gênero do horror como localizado no desenho sonoro, mesmo ali quando nos filmes do primeiro cinema o acompanhamento de orquestrações era matéria pensada mais ou menos em conjunto à fílmica. O que chamamos, na dimensão prática da confecção, de foley, a replicação de uma sonoridade a partir da captação de um barulho não necessariamente vinculado a seu “objeto de origem” – um crânio esmagado, por exemplo, se produz com uma melancia, uma porrada, um microfone –, constitui, mais do que o acesso ao filme, o próprio terreno da experiência pela qual estamos, de alguma forma, atados àqueles outros acontecimentos invisíveis, in-anunciáveis, monstruosos.

Literalmente incluídos numa malha codificada de regras, na singular posição do estrangeiro que cala para deixar a sobrevivência perceptível e em fogo médio, vemos ser quicada uma espécie de linguagem que opera não exclusivamente pelo entendimento, mas por velozes avaliações dos pesos envolvidos na união, que é a viva metáfora celular, racional, ontogenética do familiar. A máquina do filme – ou melhor, a máquina-filme – extrapola o “acontece-ali”, e esse organismo propriamente coordenado, no que um time de futebol americano se assemelha às trupes de dança, quando se trata de fascinar nossos olhos, esse organismo acrescenta ao imprevisível um grau de ESPÍRITO DE EQUIPE. Os itens de supermercado ganham relevos semi-eróticos, pois é necessário da ritualística do toque para alcançá-los, mais do que simplesmente consumi-los. Disto todos sabem, ainda que a lição deva ser repassada e repassada.

A linguagem se dá entre o sinal e o sussurro. Os gritos estão abolidos, as peças do mundo que disparam altas frequências ainda mais proibidas. Pode-se dizer que, em surpreendentes 90 minutos, o seu, o meu corpo humano acostumam-se com um mundo externo baseado em pegadas, abafados, roçares de gramíneas, tecidos, sutis reverberações de barulhos ocos. Que a mão corte o ar para “escrever” “você ficará bem”, antes da partida do filho para os treinamentos com o chefe-pai, as coisas só podem receber um literal desenho sonoro, porque não demorará muito para que quem assiste ao filme se aperceba destacado, a lápis, de onde está, para estar no que centenas de yoguis nos suplicariam, em vida, para que sentíssemos: o estar-na-atenção. Na fabricação do estado falso de repouso para o qual tudo se OUVE em sua propriedade particular. 

Mesmo que a retórica da família familiar tente se reintegrar aos ocorridos todos, dando-lhes o todos-por-um necessário para que o gênero amplie a suspensão do suspense (sob o custo do batido drama sacrificial), aqui, exatamente no que John Krasinski desenvolveu com outros dois roteiristas um plano legislativo de onde as regras partem, não se poderá negar que é inédito o poderio do cinema em recriar as máquinas corpóreas. O que eles sabem por ostensiva precaução, nós simultaneamente descobrimos e vivenciamos no ouvido (não esqueçamos que, para o corpo, a ótica ainda é o sentido de significação majoritário), por um desejo de antecipação do visto no que se ouve. 

Esse truque da densificação entre um caractere sabido e um outro, antecipável, sempre em “latência de”, tão bem cristalizado no Festim Diabólico (Rope, 1984), de Hitchcock, Krasinski leva ainda à outra dobra de confusão. Pois não é o prego pontudo e acidentalmente erigido na escada do porão onde eles habitam que irá engatilhar o urro de dor, mas a bolsa estourada que anuncia o parto, que traz como consequência a saída inventada pelo núcleo familiar para abafar um dos episódios mais barulhentos da vida, e, em especial, a previsão de que eles estarão unidos para dar cabo ao plano

Mulher sentada em frente a espelho

Descrição gerada automaticamente com confiança média

    Cinema, arte da desunião aditiva. Mais da metade do filme, dali em diante, tratará do estado emergencial do barulho, ponto em que todo o inesperado se desova numa caixa de Pandora partida ao chão. Pode-se dizer que há uma sequência inteira, uma provação só, unindo todas as não desejadas. A mais especial delas fica sob responsabilidade do filho, que, mais unido à escolástica materna, mune-se da sabedoria de dizer ao próprio pai que é preciso que ele DIGA, à filha, do amor que sente por ela. O professar, neste caso implícito na tentativa de criar para ela um aparelho de aumento de audição, deve ser atado a um praticar ainda mais sacrificial. Mas tentar apaziguá-la do problema auditivo já não era suficiente? Não nos parece ficar posta em evidência a suposição de que nem a mais pornográfica das caridades é suficiente, se parte dos olhos do pai para aqueles de um filho? 

É um filme, afinal, de morais. E para as morais perderá o horror. 

“O que o papai fez – está em você”, passa a ser o mesmo outro lema do segundo capítulo da franquia. Sabemo-la uma franquia, aliás, por isto: o evidente é transferido para o final, para uma catarse paupérrima de complexo edipiano cuja função já foi proferida por dezenas de vencedores de Oscar: “nós vendemos histórias”, o poder de atravessamento que uma superação provoca no indivíduo que precisará se superar, mas primeiro moralmente, abaixando-se ao poder que deve lhe servir de fonte. Não tratarão mais de uma ética do som espraiada nos acontecimentos de um jogo com (agora) quatro jogadores fragmentados, nem de uma estratégia do contra-ataque condizente com a SAÍDA de uma primeira etapa do silencioso, mas encontrarão na obsessão pela origem esse mesmo espírito de encarnação familiar que se espera “do vizinho”, politicamente falando. O vizinho estenderá ou não, a ajuda? Quando cessar os cadernos do passado, quando não enumerar mais os mortos e não contabilizar mais seus desesperos, ele ainda será o bom Emmett (Cilian Murphy)? O bom vizinho? 

A mania de origem, de encontrar o agora no passado, presenteia-nos com um prólogo inteiro dedicado ao que já se esperava que o espectador “qualquer” tivesse lido na tática dos jornais, no filme anterior. Uma entrada, convém explicitar, menos sobre a família, menos sobre as regras ou sobre os horrores adaptativos “do começo”; menos sobre o começo de tudo, em si, e mais sobre o caráter colecionável e industrial da cosmogonia. A que ela serve?, tampouco poderíamos responder. O que é definitivo ao filme é que o som, de ausência cultural, torna-se falação, do mesmo modo que as grandes sagas eventualmente se tornam bonecos, quebra-cabeças, camisas, canecas. A ambição é a de identificá-los com maior profundidade ao tipo de heroísmo que se prova ininterruptamente, em tudo e em todos os dias, e que para tal apenas precisa rememorar a bravura-pai. O passado é a Ideia que se amarra com a fita da boa lembrança, a Única.

Se tivesse argúcia o suficiente para beirar a crise de deus, este estaria envelopado perfeitamente na ética do pai-ressuscitado-que-por-nós-deu-tudo. No professar praticado desta ética. Do começo ao fim, o que se acusa, PRATICAMENTE, é que o armamento inventado por aquela família, a perturbação nervosa causada nos monstros pelo borrão sonoro dos transmissores, tão-somente recebe um dado extra de transmissão, advinda de um acontecimento do fundo do peito. É o fenômeno do rádio no Lugar Silencioso, e também o fenômeno da conversão filial – fim. É como descobrir que uma xícara levemente quebrada pode servir de cinzeiro, e ver neste um santo. E como a apoteose final é uma irrupção da dimensão pela qual eles se munem contra um número (só aparentemente) cada vez maior de monstros, quem sabe a saga não precise de dezoito continuações para que eles cheguem a algum encontro à altura do descanso e da troca de inteligências. O som, o conceito do som, o espaço extrassensível imantado pelo som, sabe-se lá se não encontra, adiante, uma maneira menos letal de ressuscitar também a Wi-Fi. 

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