Por Geo Abreu
Grata surpresa conhecer Imo, de Bruna Schelb Corrêa, três anos após sua estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2018. Ignorante das críticas feitas ao filme nesse primeiro momento, passei por ele, feliz em testemunhar os exercícios de experimentação e a clara adesão ao surrealismo como escolha nas representações, fato raro no cinema feito por mulheres no Brasil dos anos 2000.
De cara, o som em Imo chama atenção. Ele transforma a atmosfera de uma casa no interior de Minas Gerais em fundo plural de vozes que alteram a qualidade do silêncio desejado (ou imposto?) às personagens. Através do uso do som diegético, da edição de som e foley, o filme apresenta diálogos que não são pautados por texto e incorporam à encenação as diferentes expressões de vida ao redor daquela casa, apresentando cenas nas quais o que está no centro da ação são os animais ou objetos com os quais se relacionam aquelas mulheres.
Som de passos na sala de estar, na qual estão presentes apenas um canário e uma samambaia. O canário cumprimenta a mulher que chega alterando o espaço e pondo a samambaia, velhinha e de folhas amareladas, na cadeira de balanço. O pássaro, inquieto, faz perguntas e é ignorado. Sua voz e presença perturbam a atmosfera que está para ser criada: um cômodo com paredes esquecidas em que o principal ponto de cor é o corpo da mulher em frente ao espelho a se observar cuidadosamente. O peru, com seu vozeirão, faz um comentário do lado de fora da casa, algo que soa como reprimenda. A mulher tenta seguir com seu ritual e ignora o falatório.
A escolha formal da ausência de diálogos tem sido apontada em vários textos sobre o filme como alusão às táticas de opressão aos feminismos no mundo cisheteronormativo. Muito pouco se falou a respeito das necessidades das mulheres que apreciam o silêncio. Ou, como o filme demonstra, se não há silêncio, pois tudo é vida e pulsa ao redor, será que podemos gozar de períodos na ausência de voz e julgamentos humanos?
O telefone toca. A mulher observa o desespero por atenção e não o atende. Ao invés disso, bate com os tamancos no chão a fim de tirar uma música qualquer daquele dia. No plano em que Mc Xuxu está à mesa cortando maçãs enquanto é cercada por diversas mãos, que surgem do nada para perturbar sua tarefa de ignorar o telefone, lembramos Jeanne Dielman e a performance do cotidiano capaz de transmitir verdades indizíveis. Nessa mesma sequência, passamos de Chantal Akerman a Luís Buñuel entre as diversas tentativas que finalmente promovem o encontro entre o fio da faca e a mão que, decepada, se transforma em lembrança em uma caixa. Alguma mudança no comportamento da mulher enclausurada em casa é produzida a partir dessa associação, na passagem da aceitação repetitiva das tarefas domésticas à violência encenada como absurdo nesse corte que figura a raiva acumulada de séculos. É assim que Imo explora referências fílmicas e a vivência feminina do mundo, apresentando ações cotidianas em tons absurdos e conduzidas ao clímax em performances de violência envolvidas numa aura de irrealidade e signos reconhecíveis, aliados ao usos cruzados de referenciais clássicos.
Só na terceira visualização percebi que a moça que se oferece em banquete pode ser vista como profissional do sexo. Ou não. Pode ser apenas uma mulher curiosa: “Como deve ser estar nua na mesa com aqueles quatro homens ao meu redor?” Nunca saberemos onde Bruna Schelb quer chegar e ainda assim aquele conjunto de performances nos atravessa. O envenenamento do grupo no último ato faz pensar na redistribuição do trauma, feridas abertas, vulnerabilidade e violência no espaço da intimidade; histórias que quase nunca viram conversa e seguem seu ciclo se transformando em rancores que vão se acumulando em nossos corpos e envenenando a todes que nos tocam.
O casarão de aspecto abandonado parece sinalizar estruturas falidas, pactos rompidos. Nos três atos, observamos as personagens presas àquela estrutura colonial que, mesmo desgastada, perdura como um lugar fora do tempo e expõe continuamente quem o habita às suas armadilhas. A diferença se fará sempre que, conscientes dessas repetições, as mulheres escolham responder aos desafios de maneiras inesperadas, como em um jogo quando optamos por um movimento não calculado, que altera o rumo previsto e incita a próxima jogada da inteligência artificial e a instauração de uma outra margem. A abertura de novas quebras é habitada nessa lenta, contínua e aparentemente inesgotável guerra de posições.
Na tentativa de marcar posição no debate crítico e se opor à norma vigente na recepção de filmes realizados por mulheres em circuitos de presença majoritariamente masculina, outras normas parecem estar sendo definidas para classificar o cinema feminino hoje. Falo aqui a partir de alguma recepção de Imo após a exibição em Tiradentes. Apesar de recebido como boa surpresa no âmbito do cinema de experimento, o primeiro longa de Bruna Schelb acabou alvo de críticas a respeito do uso de figurações de um feminismo que se apontou como anacrônico e raso (a ambientação doméstica das ações e o silêncio; a encenação do corte da mão masculina como gesto fraco do que se poderia entender como uma ruptura com o patriarcado; a fonte do sangue que envenena as pessoas no último ato, etc) A recorrência no uso destes signos ligados à opressão feminina não os tornam menos eficientes, principalmente se a eles forem ligadas imagens que denotam a agência daquelas personagens e a possibilidade de desestabilizar os jogos de poder ao optar por caminhos e soluções inesperados.
A dúvida aqui é se todo filme realizado por mulheres hoje deve necessariamente atender às demandas dessa outra norma: estar em dias com a agenda do debate feminista atual para ser considerado “válido”. Aliás, válido para quem? Ressalto que essa atualidade das teorias é informada por pesquisas acadêmicas que levam o tempo das diversas mediações necessárias até se tornarem de conhecimento público e, portanto, apontar anacronia no uso dessa ou daquela figura que porventura tenha sido superada no âmbito dos estudos de gênero desqualifica a vivência cotidiana das opressões, que tal como na cena da mão decepada, não desaparecem apenas porque desenvolvemos outras formas discursivas de abordá-las. Então, em quais parâmetros éticos se baseia a abordagem de uma produção como Imo, partindo de suas fragilidades formais ou de repertório para justificar uma adesão fraca do filme a um discurso de expressão dos feminismos existentes?
É difícil acompanhar realizadoras brasileiras que tenham a oportunidade de mergulhar em suas pesquisas, partindo de erros e acertos para amadurecer um estilo. É preciso ser livre para experimentar por experimentar, sem que pese sobre a realização uma agenda a cumprir, o que não significa dizer que cinemas engajados e militantes não sejam importantes. Cada uma deve se sentir à vontade para localizar as lutas feministas em seus discursos e formas, e escrevendo essa frase me sinto estúpida por sublinhar algo tão óbvio. É patente que a cada marcador, cada categoria ligada à realização de filmes classificados como feministas, realizado por mulheres, que performam a luta feminina por igualdade de direitos, outros muitos filmes tão importantes quanto para a representação das mesmas causas ganhem menos visibilidade em mostras, festivais e circuitos de exibição devido às formas não tão óbvias de apresentação de suas lutas pela expressão/representação feminina no mundo. A que serve, afinal, essa patrulha?
Imo, filme de experiência, de tatear mundos mais do que impor qualquer ideia fechada sobre como devem ser as representações a partir de um outro olhar, é o tipo de filme que me interessa ouvir e dar olhos, encorajar a continuidade da pesquisa, o amadurecimento do estilo, esperar pelo próximo.