Atlantique (Mati Diop, 2019): paixões (des)possuídas

“Essa febre é um invasor noturno que atinge o paciente durante o sono profundo.
Ele pula da cama e corre para a ponte.
Lá, ele acredita ver além das ondas,
árvores, florestas, prados floridos.
Sua alegria explode em mil exclamações.
Ele sente o desejo mais ardente de fluir para dentro do oceano”

(Atlantiques, Mati Diop, 2009)

 

I – Despossessão

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As cenas iniciais de Atlantique (Mati Diop, 2019) nos jogam em uma briga dentro de um canteiro de obras. Souleiman e seus companheiros de trabalho exigem dos encarregados o pagamento atrasado há três meses, e os encarregados argumentam que o patrão viajou e não deixou o dinheiro. Para os jovens trabalhadores, não há o que fazer, apenas pegar o transporte de volta à cidade e abandonar a obra. Da caçamba do carro, as torres imensas em construção são o símbolo de uma derrota anunciada, de uma negociação impossível, de distâncias intransponíveis. Indiferente, explorando outros trabalhadores, as torres continuarão a crescer.

A montagem por oposição dos rostos derrotados dos jovens trabalhadores e da torre futurista inacabada é uma apresentação quase direta demais do conceito de acumulação por despossessão, proposto por David Harvey para descrever o funcionamento do novo imperialismo neoliberal. Se a expropriação das terras e do direito sobre os próprios corpos das pessoas originárias de África e de América pelos colonizadores europeus foi o sustentáculo inicial do capitalismo, o neocolonialismo contemporâneo mantém e expande a despossessão fundadora. Contratos de trabalho, direitos trabalhistas, bem estar social são promessas ilusórias, enquanto a torre é concreta (e cada vez maior). Mas estamos no quase, pois entre os rapazes e as torres, a montagem nos mostra o mar de Dakar. E o desânimo vira cantoria e excitação entre os jovens.

Essa é a primeira faceta das múltiplas do mar em Atlantique: entre os despossuídos (de terras, de direitos, de dinheiro, de perspectiva…), o mar é também uma fuga. O sonho do emprego melhor na Espanha, de uma vida a recomeçar – além das ondas. O Atlântico evocado pelo título é então uma presença constante no filme: dessa incerta esperança, ao temido pesadelo do naufrágio, passando pelo enigma do retorno assombroso. Mais do que uma paisagem, o mar funciona no filme de Diop como um recorrente contraponto, descontinuando a especialidade do filme para uma imagem de imensidão simbólica – um portal do tempo-espaço de África e da afro-diáspora.

Atlantics: A Ghost Love Story - Image Courtesy of Netflix

Com Souleiman encontramos Ada. Entre Ada e Suleiman, a paixão.

Mas… “Você só fica olhando para o mar”.

Ada está às vésperas de um casamento arranjado com outro homem. Pressionada pelos pais, a negociação parece ser simples: esquecer a paixão adolescente, manter-se virgem até o casamento e submeter-se a uma união sem amor e/ou afetos com Omar. Ainda mais despossuída na cena do capitalismo global, o desejo de Ada está fora da transação comercial, assim como qualquer vislumbre no contrato econômico, social e familiar da possibilidade de possessão dela de seu próprio futuro e corpo. Como o quarto nupcial branco cenograficamente decorado para ostentar uma negociação fria e calculada do matrimônio de Ada e Omar, não há lugar para a vida e suas pulsões nesse arranjo – no máximo para algumas selfies posadas.

Se a paixão de Ada está fora dos cálculos de risco, os contratos sociais, econômicos e familiares se dissolvem quando esta arde: queimando a cama não usada na transação jamais consumada. A partir de então algo se conjura na narrativa do filme, no momento que esse intenso desejo não pode mais ser contido. E ainda que uma parte do enredo dedique-se a uma investigação policial do que não pode ser explicado (com a sordidez de exames médicos para aferir virgindade e interrogatórios abusivos), Atlantique é um filme devotado a atmosferas e sensações – a febre como invasora noturna e devaneio (e não como sintoma). Ao fim, diante do inverificável, o investigador não pode mais do que apenas (e já) encontrar a si mesmo.

II – Possessão

“Alguns pescadores voltaram do mar com a rede tão cheia que todos correram para ver o que eles tinham pescado. As pessoas gritavam que haviam pescado um peixe enorme. As crianças e toda vizinhança foram ver. Mas, quando se aproximaram da rede, não viram um peixe, mas o corpo sem vida de Souleiman”.

No momento de virada do filme, os jovens despossuídos (agora também da própria vida) retornam para enfim obterem as suas possessões – de vinganças e de paixão.

Sem mais promessas, o mar é então apenas um perigo no contracampo de cada sonho, cuspindo de volta o espírito dos despossuídos. Conclamados por aquilo que na expropriação capitalista não se pode conter – a raiva pela exploração e humilhação cotidiana, a paixão não consumada – os jovens retornam como assombrações febris.

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E então, algo se complica na ficção especulativa proposta por Mati Diop, pois as fronteiras de morte em vida e da vida na morte são borradas. Afinal, como podem em morte possuir aqueles que em vida não possuíam nada? Um corpo, uma vingança, a consumação da paixão: quais os limites da possessão despossuída?… Essas assombrações não são zumbis ou fantasmas tradicionais desse gênero narrativo. Com exceção de Souleiman, os jovens rapazes tomam posse dos corpos das suas amigas, irmãs e namoradas. É assim que esse corpo feminino possuído pelos espíritos dos rapazes pode enfim reverter (ainda que temporariamente) o sentido da expropriação – e fazer o patrão cavar a cova para seus corpos perdidos no fundo do oceano. O topo da torre é também o fundo do mar.

Em Atlantique, a possessão é assim, ao mesmo tempo, assombro e triste reencontro, acerto de contas com o patrão explorador e reparação financeira para as que ficaram. O sobrenatural que o filme mobiliza não é então marcado pelo terror ou pelo medo, mas por paixões incontroláveis que não se podem evitar: irão queimar.

III – Exorcismo e Renascimento

“(…) o corpo da mulher negra conserva a possibilidade de um Outro desejo. Um desejo que não pode alimentar a maquinaria do capitalismo global ou as críticas ao mesmo tempo porque o texto político fundamental aos dois campos não a contempla. Fora do Patriarcado e fora da História (as narrativas do sujeito transparente [a coisa da interioridade e da liberdade]), o desejo prometido pelo corpo sexual feminino continua como um guia ainda por ser delineado para uma práxis radical (…)” (Denise Ferreira da Silva, A Dívida Impagável, p. 77)

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O reencontro de Ada e Souleiman marca por fim a última possessão do filme: a do sexo. Temos uma comunhão que é a entrega e a despedida de duas trajetórias: o espírito que pode enfim partir e da adolescente que assume sua autonomia na vida adulta. Uma posse de si para Ada que constrói-se lenta, mas continuamente: na recusa de entrar no carro de Omar, na negociação persistente da venda do iphone, na atenção às instruções do novo trabalho no bar. Não é irrelevante que esses reposicionamentos digam respeito ao seu (não lugar) na acumulação por despossessão capitalista – ocupando as fendas de informalidade e da precariedade do trabalho, mas também da amizade, do amor e dos experimentos de beleza (para lembrarmos da expressão da Saidiya Hartman).

Ada: a quem o futuro pertence, olha enfim para a câmera. Afinal, possuir a si é possuir sua própria imagem. Um olhar desconcertante para exorcizar também o filme como possessão.

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O mar é também renascimento.

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