As Canções (Eduardo Coutinho, 2011)

Assistir a um filme de Eduardo Coutinho se tornou há algum tempo mais do que uma experiência imagética e sonora, mas também um confronto com o cinema como teoria – mais precisamente, com o campo do documentário. Isto porque a filmografia de Coutinho se confunde com a história do documentário contemporâneo brasileiro: Cabra Marcado para Morrer, é a gênese; de Santa Marta a Peões temos a consolidação da entrevista como local de encontro privilegiado; O fim e o princípio marca a crise desse método (no qual o filme que se procurava não acontece como se previa); finalmente, temos a reinvenção do campo e do dispositivo em Jogo de Cena e Moscou, trazendo para frente da câmera a encenação. Há ainda nessa trajetória um pouco visto e subversivo Um dia na vida, feito a partir de imagens da televisão – paira sobre o filme toda uma questão sobre os direitos autorais dessas imagens e é pouco provável que este venha a ser lançado comercialmente.

Por isso, quem chega em As Canções pode a princípio se frustrar. Não, Coutinho não vai mais uma vez revolucionar o campo documental, não vai questionar a encenação, os jogos de poder entre entrevistador e entrevistado ou as nossas relações com a imagens. Ao contrário, o dispositivo do seu novo filme já estava presente em vários dos seus filmes anteriores, neste seus entrevistados cantam músicas que marcaram sua trajetória de vida de alguma forma. Já havíamos visto isso em Edifício Master, quando um senhor interpreta My way emocionadíssimo, ou em Jogo de Cena, em que a entrevistada volta para encerrar sua participação com Se essa rua fosse minha. Aliás, de Jogo de Cena Coutinho pega emprestado também o cenário: um palco de teatro com a câmera enquadrando apenas uma cadeira, que será ocupada por seus personagens cantantes.

Ainda assim, e talvez justamente por isso, há muito não se assistia a um filme tão belo do diretor. Instalados no dispositivo, mergulhando na memória dos entrevistados e nas nossas memórias reviradas pelas letras da canções flui-se livremente pelo filme e por suas emoções – sem tantas amarras aos procedimentos do diretor. O próprio Coutinho parece esquecer-se de seus métodos para em uma deslizada ou outra cantarolar algum trecho de canção.

As Canções acaba assim sendo um filme bastante singelo, que se interessa profundamente em ouvir e ver seus personagens. Mesmo os que só aparecem por pouquíssimos minutos, apenas para cantar uma música, ou um trecho, sem que possamos saber mais sobre a sua história. Ficam as vozes, quase sempre mais expressivas do que afinadas e os closes dos rostos. Nesse sentido, os rostos enrugados, marcados, são tão narrativos quanto as letras das canções e as histórias de vida.

Se em Jogo de Cena, o que perpassava as entrevistas era o universo feminino, aqui a temática – com poucas exceções é a dos relacionamentos amorosos. Nesse sentido, um dos filmes que mais dialoga com As Canções seria a divertida comédia romântica musical de Alain Resnais, Amores Parisienses. Se o terreno de Coutinho fica entre o samba e uma MPB mais consagrada, com algumas brechas para as composições autorais, Resnais apela para a música pop francesa sem o menor medo de fazer os seus personagens soarem ridículos. O que ambos os diretores sabem é que nas nossas vidas o que há de mais íntimo, de mais doído, de mais saboroso, não deixa de caber perfeitamente na letra daquela canção que todo mundo conhece. Nossas memórias afetivas não deixam de ser a música que faz parte do imaginário coletivo, que todos sabem de cor. E não há do que se envergonhar – pois assim como Coutinho, nós espectadores também nos pegamos cantarolando baixinho.

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Dario em dez mortes

Um breve passeio por algumas das belas cenas concebidas por Dario Argento e suas ideias de cinema (isto não é um top 10).

1. O Pássaro das Plumas de Cristal (1970)

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Aos personagens de Argento não é permitido o privilégio de virar o rosto. A chamada trilogia degli animali, apesar de ser claramente um laboratório para ideias levadas a cabo nos anos seguintes, traz já na primeira morte assinada por Argento o gérmen de sua obsessão e vício: uma imagem como ponto fecundante que dará corda ao giro dos personagens e suas ações, uma imagem que precisará ser pensada, relembrada, desconstruída, para que se possa progredir na diegese. Uma chave (a despeito da gasta associação). Na cena, Sam Dalmas vê do outro lado da rua o que parece um homicídio em curso. Ao atravessá-la, ele fica preso entre duas portas de vidro, entre a rua e a galeria onde a mulher sangra, golpeada no peito com uma faca. Ele não pode entrar para ajudá-la, e não pode sair correndo. Os protagonistas de Argento não têm escolha a não ser acomodarem-se no espaço a que pertencem: entre o mundo que deixam para trás, insípida realidade, e o mundo à sua frente inaugurado pela mão do assassino, belo e misterioso como uma tela de cinema. A este olhar é dada a responsabilidade de mover a roda argentiana, um olhar que não pode agir, mas que também não pode se desviar da ação. Um olhar cujo único poder é o de ver, examinar, remontar.  É o que Argento demandará de seus protagonistas e espectadores ao longo de toda a sua obra.

2. Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971)

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A cidade e o caos são corpo e espírito na obra de Argento. Em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, a morte de Nina é esse fundir de carne, metais e vidro quebrado quando o carro que ela dirige entra embaixo de um caminhão. É ao mesmo tempo à beleza e à ironia que Argento tributa o slow de uma morte que ocorre em décimos de segundo, mas que dilata-se pela mão do artista e pela trilha elegíaca de Ennio Morricone. À beleza porque a hiper-estilização da morte é o que energiza e revolve a mise-en-scène de Dario, sempre disposta a sabotar a narrativa, a inverter a lógica se conveniente for ao efeito que a imagem invoca. À ironia porque é a falta de um pudor maior (inclusive consigo mesmo) que permite a Argento transitar impune por entre a concepção de algumas das maiores atrocidades que se viu em um filme, como conferir lirismo e poesia a um acidente de trânsito, a mais banal das mortes. É o apetite pelo absurdo que faz do cinema uma arte que não imita, mas que compete com a vida.

3. Prelúdio Para Matar (1975)

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De todas as cenas extraordinárias de Prelúdio Para Matar, do petardo surtante do Goblin e da ópera épica e maldita que Argento dirige, é esse vulto de imagem entre os créditos iniciais que mais merece atenção. Uma fagulha do que está por vir. Das heranças do cinema clássico, de Hitchcock e de Tourneur, é certamente um elemento do western de Anthony Mann a peça mais recorrente do cinema argentiano: o passado, esta assombração. Um fato do passado marca e redefine os personagens, que passam a viver em função da lembrança que os atormenta. A diferença, claro, é que em Mann são os protagonistas homens desgraçados que devem superar seus traumas. Em Argento, são os assassinos. Mesmo assim, há aí uma similaridade elementar: como em O Homem do Oeste, Winchester ’73, O Homem dos Olhos Frios; como em Era uma Vez no Oeste (roteirizado por Argento), o trauma é uma licença para matar, e não pode haver nada mais faroéstico do que isso. Com que estranha benevolência Mann, Leone e Argento tratam a morte: em ambos os gêneros (que a têm como objeto) ela não é nunca arbitrária. Aceita-se que Harmonica mate Frank e seus capangas por reparação; aceita-se que o assassino mate em Prelúdio porque ele não tem motivos escusos para tal. “Ele só tentava me proteger”, diz o psicopata para David Hemmings na última cena. Mesmo nas mais violentas formas de cinema do séc. XX, os três diretores cuidaram para que o primeiro sentimento que aquele que mata inspirasse fosse a piedade.

4. Suspiria (1977)

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A limitação do espaço físico surgiu no horror como solução para as condições modestas de filmagem geralmente atreladas ao gênero, mas logo impôs-se como trunfo na impressão do medo e no espelhamento entre espectador e personagem, que, encurralado pelo que o ameaça, divide com o primeiro a aflição de não ter defesa ou possibilidade de fuga. Suspiria se passa quase que inteiramente dentro da escola de dança, e seus personagens são cercados por uma onipresença maligna aonde quer que vão. Ainda assim, mesmo que não haja para onde correr, a ilusão da escapada permanece, a curva seguinte do corredor sempre mente com a promessa de que logo ali haverá uma saída. Por isso é apropriado que a morte do cego ocorra onde tudo o que há sejam espaços por onde fugir. Ele é captado no centro da praça de Königsplatz, em Munique, como se fosse a última alma viva sobre a Terra, sozinho, preso na vastidão do mundo inteiro com o mal que o ronda, tal qual estivesse preso num armário. Num desses arroubos cínicos de Argento, é morto pelo próprio cão-guia, a 30 centímetros de distância. Toda a ideia por trás da “trilogia das mães” (os assassinatos que ocorrem por intermediação de qualquer pessoa ou coisa influenciada pelas bruxas) é o pretexto para criar mortes não necessariamente vinculadas a um indivíduo, independentes de um ponto de vista que se deva representar como o ponto de vista de um assassino serial, uma pessoa. Isso significa concessão para pôr a subjetiva em um pássaro (Terror na Ópera), um mosquito (Phenomena) e até no próprio vento (como é o caso aqui). É uma noção muito romântica de cinema, a crença antes no correr incontido da imagem do que no que quer que seja que a devesse sustentar. Experimenta-se assim uma exponencial rarefação da câmera, desencarnada de um recipiente rígido (seja o corpo de outrem ou o próprio espaço do campo que ocupa), livre feito um espírito para realizar voos e mergulhos (Terror na Ópera, Tenebre). Como ocorre também na cena seguinte.

5. Mansão do Inferno (1980)

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A cor é signo da estilização do horror italiano, marca dessa noção inconcebível de que pode haver beleza em um assassinato, paradigma inventado por Mario Bava e que serviu de liga para todo o desenvolvimento do gênero. É natural portanto o exagero, a feitura de planos impraticáveis, o grafismo das mortes, o azul, vermelho e violeta; porque o campo de ação de um filme de Bava ou de Argento (ou Fulci, Martino, Barilli, Soavi) não pode jamais ser confundido com qualquer coisa exterior à tela que ocupa. O farsesco serve de licença à criatividade do artista e à consciência do espectador. Apesar de a cor no horror italiano ter aparecido no distante A Gota d’Água (segmento de As Três Máscaras do Terror, de 1963), Argento só veio a utilizá-la em Suspiria, e como simples marcação do fantástico, já que se tratava de sua primeira incursão no horror sobrenatural. O uso em Suspiria é primitivo, quase infantil. Somente a partir de Mansão do Inferno que Argento confere às cores a qualidade imaginada por Bava: a de sofisticar um ato por mais grotesco que ele virtualmente seja. Se de O Pássaro das Plumas de Cristal (70) a Suspiria (77) vale a inquietação da câmera no que Argento faz de melhor (guiá-la pelo ambiente), em Mansão do Inferno todas as mortes aproveitam-se antes da força do espaço fílmico e das cores que o inflam a serviço da plasticidade e de nada mais. Todas com exceção de uma (nas imagens acima). No que os demais assassinatos são belos, coreografados, substâncias de um quadro fluxível (e Mansão do Inferno tem as mais belas composições de Argento), a morte de Sacha Pitoëff ocorre num esgoto. Ele deixa para trás a arquitetura irretocável de Roma, deixa os belíssimos enquadramentos que serviram de moldura ao filme até então, e protagoniza uma morte avessa a qualquer apelo estético. Enquanto tentava matar uma porção de gatinhos indefesos, Pitoëff cai na água e começa a ser devorado vivo por ondas e ondas de ratos que vertem dos esgotos. Ele grita por ajuda. De longe, um vendedor de cachorro-quente sai correndo para tentar salvá-lo. Acompanhamos a angústia da espera, o close nervoso de Argento nas centenas de ratos que borbulham uns sobre os outros contra o plano estático do homem que, de longe, apressa-se para chegar a tempo. Quando chega, crava a faca na nuca do desgraçado, rola seu corpo para dentro do esgoto e sai andando tranquilamente. No céu, entre os prédios, a lua é um olho que a tudo assiste; incluindo o leve sorriso do espectador.

6. Phenomena (1985)

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Contra a dureza dos centros urbanos que lhe serviram de universo de O Pássaro das Plumas de Cristal até Tenebre (82), Argento devolve, em Phenomena, o prodígio da morte à sua artífice original: a natureza. A todo o momento os personagens se evadem para longe de uma cidade. Como quem retorna ao útero, o filme repetidamente abandona um cenário urbano em direção a um bucólico, a uma floresta úmida, a uma gorda cachoeira. Assim, como se vê na cena acima, deixando o asfalto de lado para seguir por um pictórico caminho de terra, a câmera não escala telhados de casas e arranha-céus (Tenebre, Suspiria), mas flutua por sobre as copas das árvores mais altas feito folha levada pelo vento. Não há mais o tráfego sujo e confuso de O Pássaro das Plumas de Cristal (correria pelas ruas de Roma), Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (o acidente na cena final), O Gato de Nove Caudas (o atropelamento pelo trem), Prelúdio Para Matar (arrastado pelo caminhão de energia); a perseguição agora transcorre talhando mata e montanha. No final, a rima entre o slow do vidro que se estilhaça com o slow do acidente em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, a cabeça que rola por sobre o asfalto e a cabeça que rola pela correnteza do rio; o final de um filme, o prólogo de outro, como duas pontas que se acham após uma longa curva de 14 anos.

7. [The Black Cat] Dois Olhos Satânicos (1990)

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Em 1985, Argento tentou levar aos palcos de Roma a irônica Rigoletto, de Verdi (após desistência de Scorsese). Seria o início do que o diretor esperava se tornar uma bem-sucedida carreira na ópera, mas as “distorções” propostas por Argento no libreto do séc. XIX chocaram o tradicional Sferisterio di Macerata. Dario recebeu pelo correio a carta de dispensa, e foi substituído pelo também diretor de cinema Mauro Bolognini. Foi sua primeira decepção pública com a arte. Não por acaso, dois anos mais tarde, Terror na Ópera era lançado. No filme, quem comanda a produção é um diretor de filmes de terror com ideias ultrajantes, o fetiche do assassino é forçar a protagonista a assistir a suas obras, e, no ápice do espetáculo, corvos voam pelo teatro atacando as pessoas da plateia. O filme mais caro produzido na Itália até então foi um fracasso de público e de crítica, selando a crise de confiança dos estúdios nos diretores de horror do país e decretando o fim do cinema fantástico italiano enquanto objeto de apelo comercial. Sua segunda e talvez definitiva decepção; uma nova fase para o horror e uma nova fase para Argento, desde então o único diretor com algum prestígio para continuar trabalhando no gênero. [com o perdão da longa introdução] É essa fase que The Black Cat (a segunda parte de Dois Olhos Satânicos) inaugura. É natural começar a assistir Argento por Prelúdio Para Matar e Suspiria, dois de seus filmes mais histriônicos, e decepcionar-se com sua fase noventista. É certo que não há mais o mesmo brilho nas lâminas, certo que se gasta a vivacidade das cores. É inevitável a evolução do artista. The Black Cat é esse marco de um Argento mais áspero e não menos genial.  O conto de Poe já fora adaptado setecentas e noventa vezes (a melhor versão é de Lucio Fulci), e embora sempre amargo, nunca com a crueza e o requinte minimalista que Argento imprime. Nas imagens acima isso fica muito evidente. O crime central de The Black Cat é uma cena banal de violência urbana, digna de figurar em páginas policiais: uma briga de casal. Não mais psicopatas megalômanos, bruxas milenares que planejam trazer o inferno à Terra. Aqui, o marido se descontrola e mata a esposa com um cutelo de cozinha. Nada mais. Os planos são escuros, erráticos. Keitel parece não caber dentro do quadro. No detalhe, a lâmina que abre e desliza pela carne vagarosamente, único virtuosismo (ou nem isso) a que Argento se permite. No final, o que sobra é um elemento ignorado por toda sua obra e que a partir daqui passa a tomar perturbadora relevância: o corpo sem vida. Até Terror na Ópera, ele não interessava a Argento. O corpo como objeto de seu cinema é aquele dos momentos que precedem a morte, quando mais agitado e vivo do que nunca. É o corpo que debate-se, que luta contra a própria extinção, que sangra e exaure suas forças para permanecer vivo. Há qualquer coisa de belo nesse prelúdio, uma graça inespecífica que sempre fascinou Argento e que ele buscava reproduzir. Em The Black Cat, do primeiro ao último golpe do cutelo se passam exatos dez segundos. São dez segundos contra toda a metade do filme que se desenvolve a partir daí em torno do cadáver: escondido, assombrado, emparedado e, por fina ironia, origem da morte de seu próprio assassino. Definitivamente algo muda no cinema de Dario Argento.

8. Síndrome de Stendhal (1996)

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Se antes a estilização e vigor absurdos das mortes lhes emprestava qualquer coisa de impossível, de fabuloso, a nudez da violência em Síndrome de Stendhal (a grande obra-prima pós-Opera do diretor) é a nudez da própria máquina fílmica de Argento, mais narrativa do que exatamente gráfica, mais chocante do que propriamente bela. A tortura é o elemento centralizador da ação, não mais o assassinato em si. Se o cinema acostumou o espectador à encenação da morte, certamente não o preparou para o estupro. É a linha que Argento cruza em Stendhal. A cena em que o estuprador tira uma lâmina de barbear da boca e corta os lábios de Anna é simples e arrepiante como sua referência em Um Cão Andaluz. Não há o distanciamento sempre tão bem determinado entre o que é fantástico e o que é próprio do universo do espectador. É da inversão que Argento opera. Se no giallo típico nos vemos naturalmente do lado do assassino (porque a finalidade do giallo é a conclusão do ato que ele enseja. A falta da morte é um coito interrompido), em Stendhal é na posição de Anna que Argento nos coloca, sempre montando o estuprador sobre a câmera como se o montasse sobre o espectador. É esse ângulo inferior, em parte subjetivo, que muda tudo em Stendhal. Quando a câmera volta à sua posição original, desaparece o Argento de Tenebre ou Prelúdio, some o senso estético, o prazer fílmico. Só olhamos porque somos forçados a olhar. Cada movimento do estuprador e cada grito de Anna são de um desconforto que as mais violentas mortes de Argento não tencionaram provocar. Na cena acima essa ilustração: o serial killer força Anna a vê-lo estuprando e matando uma mulher. No detalhe, o olhar através do buraco da bala.

9. Jenifer (2005)

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Não costumam funcionar as tentativas de encaixar Jenifer e Pelts em uma análise de filmografia de Argento. Os médias não parecem ter sido feitos há apenas alguns anos, mas também não poderiam jamais ser filmados nos anos dourados do terror italiano, quando cada milímetro de película era fruto de uma ideia meticulosa de cinema que o diretor defendia. Assistindo a cenas como o passeio pelo casarão em Prelúdio Para Matar, ou a organização das fotografias em Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza, percebe-se um Argento comprometido até a alma com seu conceito de uma arte sensorial acima de tudo e uma arte que deve remontar-se, refletir-se, para poder contar a si mesma, diletante e espontânea. O cinema de Argento é o do reprojetar a imagem na memória para ressignificá-la. É o único modo de se progredir no filme. Em Suspiria, por exemplo, Suzy sabe que viu algo importante na noite em que chegou à escola de dança, mas não consegue lembrar o que é. Quando estanca em sua investigação diante de uma parede aparentemente sem saída, ela repassa na cabeça a imagem da estudante gritando. Ela disse alguma coisa, algo fundamental. Como não pôde ouvir, devido à tempestade, ela lê os lábios e adiciona o som à imagem (De Palma fez o contrário em Um Tiro na Noite), podendo finalmente seguir em frente na trama. Este é o tronco do cinema de Argento e está presente, em maior ou menor grau, em todos os seus filmes (incluindo Giallo), com exceção exatamente de Jenifer e Pelts. Mas era essa mesma a proposta da série Masters of Horror: dar aos diretores convidados uma válvula de escape para qualquer compromisso que precisassem manter com estúdio, produtor, público ou, talvez acima de tudo, com eles mesmos. E assim acontece: Jenifer é cinema que simplesmente flui com a leveza dos filmes que parecem se fazer sozinhos. Talvez por isso mesmo ambos sejam as obras mais próximas do gore que Argento já dirigiu (a morte na armadilha em Pelts é inacreditável). Mesmo assim, mantem-se uma sofisticação imanente, e é essa classe que lhe confere de verdade, em estado puro, o que se pode chamar de terror. Na cena acima.

10. Giallo (2009)

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Se falamos até aqui do papel do trauma e da remontagem na obra de Argento, pode-se dizer que Giallo é o único filme que desenvolve-se sobre estes elementos. Não com base neles como todos os outros, mas sobre, a respeito deles. Uma reflexão de Argento nem tanto sobre o giallo em si, mas sobre sua contribuição ao gênero. Há duas cenas dispostas nas imagens acima (cinco imagens cada): a primeira se passa na memória do investigador (anos 70/80), a segunda no presente. A morte, na primeira, é a morte dos primeiros anos de Argento: há uma preocupação atmosférica, ângulos fantásticos, o assassinato através da lâmina da velha faca dos gialli setentistas. Tudo, do filtro amarelo às velas, rosas, candelabros (até a fenda do vestido), sugere o óbvio: o passado é belíssimo. A lembrança do protagonista, um elemento que atravessou toda a filmografia de Dario, é a lembrança do próprio diretor. Giallo só permite a Argento respirar a velha fase pré-Opera através desse fio de recordação. Como grande esteta do horror, época das cores bavianas, das falsas subjetivas e das mortes sonorizadas pelo Goblin, resta o que já há muito se passou. A esse Argento jovem e louco para experimentar, Dario reserva o trauma do protagonista, um relicário. Mas Giallo não foi feito ou tampouco se passa nos anos 70. Do lado de fora desse abrigo, Argento não registra nenhuma perseguição furiosa do assassino por sua vítima. “Yellow” (nome do psicopata) não mata: captura as lindas mulheres para trabalhar vagarosamente seus corpos numa gélida mesa de cirurgia. Sua obra consiste justamente em arruinar o que é belo. O instrumento não é mais a lâmina da faca, mas tesouras, seringas e alicates, e o mais importante: Argento priva o espectador da ação. O único momento em que vemos o resultado do que o psicopata opera é quando ele próprio as aprecia: por fotos digitais abertas num monitor. Volta o interesse pela carne apenas, pela imobilidade; o corpo e nada mais que o corpo é o objeto de fetiche do assassino, o trabalho sobre a pele como se fosse uma tela ou uma pedra para o escultor. Extirpando o valor do movimento e trancafiando-o no porão da memória, Argento diz alguma coisa sobre o cinema que fazia e sobre o cinema que faz. Não há sequer o interesse pela morte. Como se vê na última cena, Yellow não mata a personagem, apenas a tranca num porta-malas. A morte dela é consequência das decisões do investigador, encerrando assim um sombrio paralelo com Prelúdio Para Matar (filme-síntese do olhar argentiano): o protagonista transformado em assassino, e os créditos, secos, postos sobre a poça de sangue de sua vítima.

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Jam Session #1 – Prelúdio para Matar

Daniel Dalpizzolo e Robson Galluci debatem a obra-prima Prelúdio para Matar, um dos principais (e certamente o mais influente) filmes do mestre do horror italiano Dario Argento. Como o próprio nome do artigo, roubado das sessões musicais improvisadas de jazz, insinua, é um artigo sem uma estrutura exata, que através de seus desvios temáticos e da linguagem despojada tem por objetivo proporcionar um exercício livre de pensamento e de exposição de ideias, apresentado na íntegra aí para vocês.

Daniel: Provavelmente não existe maneira melhor de começarmos a falar sobre Dario Argento do que tratando sobre Prelúdio para Matar. Não por ser o filme mais popular do diretor, mas sim porque é a partir dele que percebemos em Argento um real diferencial em relação aos demais cineastas ligados aos filmes de horror e suspense ou aos gialli e aos filmes policiais. É a quinta obra para cinema dirigida pelo italiano, mas os trabalhos anteriores, mais especificamente os três filmes que compõem a Trilogia dos Bichos, são filmes predominantemente narrativos, o que não os torna maus filmes, claro, mas os diferenciam daquilo que, ao nosso entendimento, Argento faria a partir de Prelúdio para Matar — e que se tornaria a essência autoral, o diferencial deste diretor tão peculiar. O Pássaro das Plumas de Cristal, por exemplo, o primeiro de Argento, é completamente dependente da sua história e da tensão que esta história cria pra resolução do mistério, e também da própria resolução desse mistério. Mas essas coisas pouco importam a Prelúdio para Matar. Importam ao protagonista, sim, mas a Argento e ao espectador muito pouco, e menos ainda ao resultado do filme enquanto experiência. Se a velha é a assassina ou se fosse um alienígena doidão, simplesmente não faz diferença. A história soa mais como um pretexto pra que o filme nos envolva numa atmosfera específica, que nos leve pelos fluxos sensoriais que ele constroi através das imagens e da trilha sonora brilhante do Goblin, que combinadas causam um efeito quase indescritível, embora a gente se esforce a todo instante para colocá-lo em palavras. E são esses fluxos que fazem os filmes do Argento serem experiências tão intensas e tão empolgantes.

Robson: E a história é tanto um pretexto que há aquela enorme volta ocasionada pela inserção do livro no enredo — absolutamente do nada —, com os objetivos muito claros de incluir mais um assassinato e culminar na sequência em que o Hemmings explora a mansão, uma das mais emblemáticas do filme. Mas o interessante é que, por mais que dessa vez toda essa quebra da narrativa, esse desrespeito à lógica sejam meramente utilitários, com função de preparar terreno ou fornecer pretextos pra algumas cenas, mais tarde o Argento vai começar a usar isso conscientemente, transformar em outra marca do seu cinema. Começa já no filme seguinte, Suspiria, construído em torno daquela espécie de vazio narrativo, um prólogo, um epílogo e só. Quebrar o filme no meio vai acontecer em Phenomena. Mansão do Inferno tem aquela estrutura de dois jogos de resta-um consecutivos, que como que ajeitam as peças para que a narrativa aconteça, mas os dois jogos são a única coisa que constitui o filme — de certa forma, a narrativa acaba quando está pronta para começar. E nem é preciso falar de Tenebre. Então Prelúdio, conscientemente e inconscientemente, já traz em si praticamente todas as questões e procedimentos que vão nortear o cinema do Argento dali em diante, e, para mim, na maior parte do tempo é a instância mais bem acabada desse cinema.

Daniel: As próprias grandes cenas de Prelúdio para Matar (de Argento de uma maneira geral, mas em especial nesse aqui) me parecem, cada uma delas, composições trabalhadas de maneiras particulares, e como você diz, já usadas de um jeito conscientemente desconexo, como se cada uma tivesse vida própria, como se não importassem ao todo da forma como a gente vê tradicionalmente nos filmes (se alguém quiser arriscar falar do “roteiro” de Prelúdio para Matar vai dar com a cara no chão, porque é um traçado cheio de becos sem saída). Os assassinatos e as sequências de tensão de Prelúdio se constroem muito mais por suas lógicas específicas de ambientação (a relação do personagem e da câmera com o cenário em que se encontram etc.) do que pela lógica tradicional das narrativas de cinema — como por exemplo o filme te preparar uma personagem por quem “torcer” antes de sua morte, seja por alguma ligação dela com o protagonista ou com a história central, seja por alguma simpatia que se crie com essa personagem. Aqui não há isso. As vítimas entram em cena e logo depois morrem, e são sequências extasiantes, que convertem a violência em algo prazeroso e que fazem você querer ver mais gente morrendo, por mais indecente que isso possa parecer (e o plus do filme talvez esteja aí, em seguir um protagonista mas te dar essa oportunidade de ansiar pelas mortes e vibrar com elas, e ao mesmo tempo também dilatar ao máximo o tempo entre uma morte e outra, te deixando ali na tensão à espera delas).

Robson: Inclusive usando o artifício da câmera talvez-subjetiva, que é um grande insight e serve tanto pra criar suspense, na oscilação que indica que o personagem pode estar sendo observado, quanto pra colocar o espectador nessa posição que se confunde, por vezes, com o assassino. E mesmo quando não faz isso, ao evidenciar a presença física da câmera dentro da cena, o Argento no mínimo intensifica o papel de voyeur do espectador — não há como escapar de uma parcela de “culpa”, seja na identificação visual com o assassino (explicitada no plano final), seja na consciência de que o fato de o espectador estar ali pra ver é o que possibilita a imagem e assim por diante. Claro, isso vem do Hitchcock, mas o Argento encontrou uma solução formal muito boa pra colocar a questão em seus filmes sem nem ignorar a precedência do Hitch, nem simplesmente copiá-lo. E outra coisa que me chama a atenção nas grandes cenas de Prelúdio — para falar a verdade, nas grandes cenas de vários dos gialli do Argento — é como ele sempre tenta evitar a artificialização da imagem que se baseie em qualquer coisa que não a câmera (nem sempre com sucesso, é claro). Nos gialli ele não usa, por exemplo, a iluminação estilizadíssima do Bava, ou os cenários meio barrocos (e sim em Suspiria e Mansão do Inferno). Não que a abordagem do Bava seja pior ou qualquer coisa parecida. O ponto é que o Bava foi um dos fundadores do giallo, uma influência com que o Argento teria que lidar de alguma forma, e é um aspecto notável como ele se esforça em vários sentidos pra encontrar, criar um estilo próprio em Prelúdio e que depois ele segue praticando no gênero. Citações ao Edward Hopper à parte, na maior parte do tempo a mise en scène (estava demorando pra usarmos a expressão) é criada unicamente a partir do modo como os elementos são posicionados no quadro. É estranho falar isso se referindo a um filme do Argento, mas dá uma impressão de naturalismo em certo sentido: tem um piano e um banco ali, não são um piano e um banco notáveis, são absolutamente comuns, e a iluminação também é comum, discreta — até elegante, fazendo uso inteligente de luz e sombras, mas nunca beirando o expressionismo como em Olhos Diabólicos, do Mario Bava —, e o Argento encontra o ângulo exato de onde filmar aquilo e tornar a imagem única, incomum, e nem um pouco naturalista. Ou não propriamente o ângulo, porque a câmera se mexe muito, mas o fluxo ideal, como ir de um plano a outro da forma perfeita. É um cinema de movimento puro, objetos em movimento e o movimento da câmera registrando isso. Dá até pra traçar um paralelo maluco com o John Woo.

Daniel: O paralelo que eu traçaria com maior facilidade é mesmo com Sergio Leone. E essa sequência do piano é perfeita pra exemplificar no que Prelúdio para Matar tanto se parece com Era uma Vez no Oeste, por exemplo, um filme que embora seja um western classicão, com todas as características do gênero presentes e sendo utilizadas com muita força, é quase que algo à parte nesse gênero. De um modo geral por serem filmes em que tanto os resultados estéticos quanto o efeito que eles causam no espectador, cada um à sua maneira, me parecerem ser semelhantes — de uma forma quase lírica. Mas também por ambos serem filmes que utilizam a montagem dos planos, o corte de uma imagem pra outra, não exatamente como um ponto de corte da imagem (não me refiro a elipses, mas à mera progressão da ação que é encenada no filme), mas como uma equação de adição, que vai fazer com que a sensação de tempo daquela sequência se dilate (e é interessante o que você disse sobre ser um cinema de movimento puro, pois esse movimento no caso do Argento — e de Leone — está em como o diretor enxerga/filma a cena, e não exatamente na ação filmada, como geralmente deve ocorrer). Por alguns momentos, soam como se fossem diferentes recortes de uma ação congelada (o fato de o primeiro assassinato ser visto por nós muitos minutos antes de ser visto pelo protagonista no filme também ajuda a fortalecer essa sensação). A troca dum plano pro outro não necessariamente significa que a sequência avançou; a ação pode permanecer exatamente onde está, e conforme isso se acentua a tensão de cena também se acentua. No caso da sequência do piano (também um baita exemplo pro que já foi comentado a respeito de grande parte das cenas serem quase inúteis umas às outras, sobreviverem sozinhas etc., afinal a sequência é mais uma que não acrescenta absolutamente nada ao filme, mas que é fatal pra nossa experiência com ele), que é realmente a minha favorita nesse sentido: o David Hemmings tá lá tocando o piano dele, a câmera invade a janela, observamos ele anotando notas, as teclas as executando (os closes são excepcionais, os recortes da ação fazem praticamente perder a noção do todo por alguns segundos, naquela busca pelo ângulo ideal que você comentou), a câmera deslizando pela partitura até que ele ouve um barulho estranho, o pó de reboco caindo sobre o piano, a câmera subjetiva deslizando sobre a laje como se fosse a visão do assassino… enfim, e tudo que se segue (rola até close em gotas de suor na face). A cena se sustenta em uma ação que parece durar o dobro do que ela de fato deve durar, e é algo que prende o olhar duma forma impressionante. Pode parecer bobagem pra alguns, mas são nesses detalhes que alguns grandes filmes se distanciam dos trabalhos médios: um diretor como Argento (ou como Leone) pode se dar ao luxo de pegar uma cena que pode ser descrita em cinco linhas de roteiro e transformar em cinco minutos de cinema pulsante, que não se restringe a simplesmente contar uma história (que é uma das funções do filme, mas nem sempre é a principal, e aqui definitivamente não é), mas sim a envolver o espectador nessa áurea particular em que o filme se instala. Praticamente todas as cenas de Prelúdio para Matar me causam esse efeito, e não tem nada mais prazeroso que se perder em um filme assim.

Robson: Sergio Leone é um paralelo mais próximo mesmo, e como o Argento trabalhou com ele em Era uma Vez no Oeste, é certo que o modo como Leone abordava a tradição do gênero teve seu efeito no Argento. Era uma Vez no Oeste é um western despido de tudo que não seja a essência do gênero, é exatamente essa busca pelo western essencial. Qual é o formato mínimo de um western? O homem em busca de vingança, o vilão mercenário, a consciência do ‘”fim do western” como gênero (que já tinha se tornado um elemento comum na época de Era uma Vez no Oeste) etc. Fora essa estrutura mínima, não há nada, e aí se abre espaço pra tudo isso que você citou, a distensão do tempo, o olhar detalhista pra cada grão de poeira, pra cada rosto marcado, um filme que transcorre em slow motion sem que haja nenhuma sequência de fato em slow motion. Outro filme assim é Corrida sem Fim, do Monte Hellman, que é o road movie mais primordial que se pode imaginar, não resta nada além da estrada (inclusive no título original, Two-Lane Blacktop), nada além de seguir pela estrada. Essa coisa toda de essência e tal é fugidia, é claro. São tentativas cujo sucesso é incerto, mesmo depois de concluídas, vai que algum dia alguém consegue ir mais fundo no que define um desses gêneros, ou talvez não seja sequer possível chegar a um fundo, nem exista um fundo — mas isso é outra questão. Voltando ao Argento, me parece que Prelúdio é isso, essa busca pelo giallo mínimo. Lembro que conversamos uma vez sobre como, fora o sangue vermelhão, as mortes no filme são muito pouco gráficas, e nem são tantas assim, considerando a sua duração de mais de duas horas no corte original. Prelúdio é, quase em sua totalidade, atmosfera. E são filmes — os três, e devem haver outros exemplos, quem sabe algo do Jean-Pierre Melville, mas conheço pouco sua filmografia pra afirmar — que se destacam muito pela sua estética. Se pensarmos, é natural: despojando o filme de tudo que não seja absolutamente necessário pra conformá-lo em um dado gênero — de qualquer ligação com a realidade, da necessidade de encadeamento lógico, de explicações psicológicas etc. — é preciso trabalhar a imagem pra preenchê-lo. Não tem como se esconder atrás de outra coisa, da complexidade narrativa, filosófica, da trama intrincada. E é um procedimento que se firmou — não necessariamente buscar a essência, mas usar elementos já previamente codificados, até mesmo excessivamente codificados, e que portanto não exigem nenhum trabalho adicional, como muletas pra armar um esqueleto mínimo do filme e se concentrar sobretudo na forma. Por isso o cinema de gênero, pelo menos desde os anos 60, se transformou num lugar acolhedor pra diretores que queriam fazer experiências estéticas. O homem atrás de vingança é sempre o mesmo, vem de uma tradição, não importa arranjar-lhe um motivo pra vingança que seja melhor, que tenha mais nuances que o motivo dos antecessores, e sim filmá-lo de uma forma única. O assassino de luvas pretas também, basta estar ali, com suas luvas pretas (mas alguns diretores e produtores de gialli custaram a entender isso, dadas as longas e elaboradas e inúteis explicações que surgem no final de muitos filmes da época, inclusive no próprio Prelúdio para Matar). Com uma série de elementos assim já dados de antemão, o diretor se vê livre pra se preocupar sobretudo com a imagem, e o Argento foi um dos caras que ajudou a solidificar isso, a legitimar essa abordagem, antes de a crítica dar qualquer atenção a ela. Transcender o gênero mergulhando fundo nele. A peculiaridade é que Prelúdio para Matar, diferente de Era uma Vez no Oeste, foi feito com o gênero a que se conformava ainda no auge, o que provavelmente é a causa de alguns erros de julgamento do Argento e de problemas no filme (como a própria explicação psicológica e certos problemas de ritmo que sabotam parcialmente a jornada do diretor em direção ao núcleo do giallo).

Daniel: E por mais que seja um filme de certo modo revolucionário para o próprio giallo ou para os filmes de horror (lembro que John Carpenter, por exemplo, diz que pensou em Halloween depois de ver Prelúdio para Matar; e todos já devem saber da importância de Halloween pro gênero slasher e pra quase tudo que envolve o cinema de horror norte-americano dos anos 80, talvez o que mais obteve sucesso diante do grande público, e que é a base maltratada pelos filmes genéricos de serial killer que surgiam em calhamaços em Hollywood até pouco tempo), o maior beneficiado com essas experiências estéticas/narrativas/sensoriais que o Argento fez aqui é justamente o próprio cinema do Argento. Isso de buscar a essência da experiência com um filme, e trabalhar cada sequência até que o limite da relação entre a imagem e o espectador fique a ponto de se estilhaçar, é uma característica que se vê nos melhores filmes de Argento, especialmente os dessa fase prolífica entre Profondo Rosso e Terror na Ópera, e que, aliás, encontra um ponto máximo no próprio Terror na Ópera, que talvez seja o filme do Argento com a concepção estética mais surtada e emblemática, levando algumas questões do cinema dele às últimas consequências — em especial isso que também já foi colocado de as origens do ponto de vista adotado pela câmera se confundirem entre o olhar do assassino, o nosso olhar/desejo, ou um olhar neutro, de um terceiro observador, que no caso seria a própria câmera, da forma como geralmente é trabalhada. Em Prelúdio para Matar já existem vários planos-ensaio que nos lembram daqueles longos travellings pelos corredores do teatro, ou da cena do apartamento, que talvez seja a mais longa do filme e que é o grande ápice de Terror na Ópera (e onde mais fica evidente essa habilidade de dilatar/confundir o tempo e misturar essa sensação de desconforto com a própria tensão da ação). É um filme que merece uma conversa especial só sobre ele, até por delimitar um marco na filmografia de Argento. Mas, pra finalizar, o fato é que a discussão sobre Prelúdio para Matar ser ou não a obra máxima de Argento (por vezes penso que sim, mas o cara fez Terror na Ópera e Tenebre e isso não me permite afirmar nada) é ínfima diante do que realmente interessa quando se vê o filme: é uma obra-prima fundamental pro cinema, por todas essas discussões que possibilita e pela intensidade da experiência que nos permite viver.

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Do You Like Hitchcock: A influência de Hitchcock na obra de Dario Argento

Em mais de um momento já tentaram tachar o italiano Dario Argento de “novo Hitchcock” ou ao menos de um de seus sucessores cinematográficos. A afirmação não diz muito porque o diretor se insere mesmo é dentro de uma longa tradição do cinema de horror italiano (e por tabela, europeu) que passou a se desenvolver com força a partir de meados dos anos 50. O interessante é observar como Dario Argento trabalha toda uma herança deixada pelo legado da obra de Hitchcock depois que ela foi reavaliada pela crítica (o próprio Argento foi crítico no jornal Paese Sera) e assimilada por diferentes realizadores em diversos filmes subsequentes. Parte da obra de Argento estaria ao lado da de Brian De Palma como as que mais fundo refizeram algumas das obsessões do cineasta inglês, partindo de materiais que por vezes eram grandes pastiches dos filmes de Hitchcock, além dos jogos de perspectiva e simulações, e manipulação do olhar e dos elementos de suas tramas para mexer com os nervos do espectador e construir thrillers nos quais possam se deleitar com as estruturas da técnica e linguagem cinematográficas. O próprio Argento desde os seus primeiros filmes cultiva um gosto pelo suspense mais acentuado que o de outros mestres do terror italiano de sua época. De certa maneira, alguns de seus títulos (e outros de De Palma) lidam em relação ao suspense hitchcockiano algo próximo do que os westerns de Sergio Leone (lembrar que Argento foi co-roteirista de Era uma Vez no Oeste) fizeram com o faroeste clássico norte-americano, levando essas respectivas influências a níveis extremos, como que irrompendo um cinema que devia antes ser reprimido ou apenas insinuado, e amplificando o choque e a violência.

Mas é no Antonioni de Blow-Up – Depois Daquele Beijo que Argento deve, em parte, mais tributo. Os primeiros filmes dele nos anos setenta já evidenciam essa referência fundamental. Entretanto, não é preciso se esforçar muito para recordar que Blow-Up foi a mais importante assimilação do cinema europeu de algumas questões hitchcockianas derivadas nas especulações sobre as aparências e na busca e reconstrução da imagem a partir de uma premissa de suspense. O que influenciaria nas pesquisas formais dos três primeiros trabalhos de Argento (O Pássaro das Plumas de Cristal, O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas no Veludo Cinza), cujas variações seriam aperfeiçoadas até a depuração absoluta que resulta em Prelúdio Para Matar, a obra-prima do italiano, e um dos tantos filmes inspirados diretamente em Blow-Up (como A Conversação e Um Tiro na Noite). Por tabela, todos partem do legado deixado por Alfred Hitchcock. Outro marco do suspense (e terror) europeu que também encontra correlato com a obra de Hitchcock (e antecipa um bocado os filmes de Argento) é A Tortura do Medo, com toda a sua obsessão pela imagem, o caráter doentio, as mortes em série, a figura do psicopata, o voyeurismo.

Já em Hitchcock, o cinema de horror de fato se mostra visível em seus primeiros filmes nos anos sessenta, Psicose e Os Pássaros. Desapontado pelas repercussões relativamente mornas de alguns de seus filmes mais ambiciosos (os imediatamente anteriores O Homem Errado e Um Corpo Que Cai), o diretor compreendeu que o público àquela altura clamava por espetáculos de horror mais explícitos. Com um orçamento modesto e parte de sua equipe de televisão (não parece coincidência que todo mestre do suspense/terror contemporâneo como o próprio Argento ou John Carpenter terminem cedo ou tarde por rodarem seus trabalhos na televisão, onde pode existir mais liberdade para lidar com algo próximo do que seria o verdadeiro filme B e mais enxuto e livre das amarras do cinemão atual), Hitchcock criou nos estúdios da Universal um modelo como Psicose (bem como o horror apocalíptico de Os Pássaros) que seria incontornável para o gênero pelas décadas seguintes. Os já mencionados títulos que compõem a chamada trilogia dos animais de Argento compartilham de algumas das obsessões do cinema de horror de Hitchcock, como a presença constante de animais como figuras ameaçadoras ou como centros de um mistério (os pássaros empalhados que decoram o ambiente mórbido em que vive Norman Bates em Psicose; os predadores em Os Pássaros).

Alusões ao mestre do suspense podem ser encontradas ao largo da filmografia de Argento, porém elas apenas se escancaram na homenagem brilhante que é Do You Like Hitchcock? (título internacional de Ti Piace Hitchcock?), um de seus trabalhos mais recentes. Do You Like Hitchcock? é um thriller paranóico e um filme cinéfilo como nenhum outro do mestre italiano. Seu personagem é um estudante de cinema, seu quarto é repleto de cartazes clássicos e mais de uma cena importante do filme se passa na videolocadora do bairro em que mora. Argento mistura idéias e recria cenas dos filmes de Hitchcock numa quantidade ainda maior que Brian De Palma tenha feito em qualquer um de seus trabalhos inspirados no diretor inglês. Do You Like Hitchcock? é a versão bem particular de Dario Argento para Janela Indiscreta conjugado com elementos de outros títulos clássicos de Hitchcock. Giulio, o protagonista, gosta de bisbilhotar fazendo seu olhar penetrar, por meio de um indiscreto binóculo, nas janelas do prédio em frente, onde numa dessas janelas enxerga uma bela garota que nunca tinha visto antes. Ela percebe que está sendo observada, mas pouco se importa. Argento se deleita nas composições e cruzamentos entre a arquitetura de cada espaço e a geografia local, sobretudo nos dois prédios vizinhos e nas visitas a locadora, onde Giulio se esbarra com a moça, chamada Sacha, que dialoga com uma outra garota, loira, sobre Pacto Sinistro, que na Itália é chamado de “Delitto per Delitto”.

Quando a mãe de Sacha é morta (numa cena de assassinato cuja preparação e consumo é filmada e decupada de maneira espetacular), Giulio não resiste em investigar por conta própria o crime não solucionado pela polícia. É quando as referências aos filmes de Hitchcock vão se tornando cada vez mais abundantes: as sequências em que Giulio trafega pelas ruas perseguindo alguma das personagens femininas (que remetem a Um Corpo Que Cai), a cortina do banheiro (Psicose) e um desfalque na empresa em que trabalha uma das personagens (Psicose e Marnie),  Disque M Para Matar perto do final, ou quando o protagonista levado pelo jogo de aparências das imagens com que se depara em sua busca ligando os pontos da trama chega a conclusões derivadas da premissa da troca de favores de Pacto Sinistro. Alucinação, prova, impressão?  O que faz o personagem central é interpretar, de uma janela a outra, as aparências que lhe oferecem à visão, e ao longo do filme, numa intrincada relação homem-mulher equacionada em termos de ação e suspense,  provar para a sua namorada que as suas suspeitas sobre as duas garotas procedem, ou seja, que ele interpretou corretamente as cenas que observou nos eventos que ocorrem no prédio em frente e em suas jornadas investigando e vigiando as moças (as duas garotas não deixam de ser um equivalente feminino das duplas de homossexuais que ocupam o centro dos crimes de Festim Diabólico e Pacto Sinistro). Sacha começa como pura fantasia masculina para se converter como a projeção do mal pela instância de culpa e crime, expondo-se a um desnudamento moral completo. Idéias tiradas de outros filmes de Hitchcock vão se alastrando no de Argento, mas a composição é original: ele sempre encontra formas de usá-las de maneira bem particular dentro de seu refinamento estilístico e sofisticação estética e visual combinados com níveis de delicioso entretenimento. Vale mencionar também que a ótima trilha é composta pelo veterano Pino Donaggio, ex-colaborador de Brian De Palma em alguns de seus filmes mais hitchcockianos, e cujos acordes por vezes emulam os de Bernard Herrmann (o compositor clássico dos filmes de Hitchcock).

Do You Like Hitchcock? é uma grande brincadeira em cima da obra de Alfred Hitchcock empreendida com toda a seriedade e domínio narrativo do diretor italiano, que desde o começo de sua carreira foi capaz de trilhar seu cinema sem sentir a sombra da influência de mestres como Hitchcock que tanto marcaram a formação de seu estilo. Mas tampouco Dario Argento se furtou à herança deixada pelo vasto repertório de imagens que o realizador inglês nos legou e que o tornaram possivelmente o cineasta mais citado, estudado, analisado e imitado de todos os tempos.

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As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008)

Por Vlademir Lazo

As Praias de Agnès começa enunciando uma autópsia. Ao escolher falar de si mesma, Agnès Varda resume seu mais recente (e, segundo ela, último) filme da seguinte maneira: “Se abríssemos as pessoas, encontraríamos paisagens. Mas se abrissem a mim, encontrariam praias.” A realizadora francesa normalmente filmou ao longo de sua carreira sobre os outros, os que a intrigaram, motivaram, ou lhe apaixonaram, quase sempre documentando vidas comuns em filmes de ficção (ou em documentários como Os Catadores e Eu). Dessa vez, do alto de seus 80 anos, preferiu falar também de si mesma, montando um ensaio sobre sua vida (e mais que isso, um painel de mundo desde sua infância e juventude) e obra. As praias de Agnès Varda.

É o caleidoscópio de diversas épocas, ou como a série de espelhos estendidos ao livre na praia logo no início do filme. Uma sucessão de viagens por uma máquina do tempo através de praias remotas ou próximas: as origens de Agnès na Bélgica, o período numa comunidade de pescadores, a adolescência no Mediterrâneo (seu habitat depois que a família se retirou de Bruxelas durante a Segunda Guerra), a saída da casa dos pais, o trabalho como fotógrafa, o começo no cinema e na Nouvelle Vague e os encontros com outros realizadores, os percursos pelo mundo, o engajamento às lutas feministas e o matrimônio com Jacques Demy. Porém, mais do que compartilhar dados e informações particulares, As Praias de Agnès nos convida a contemplar os fragmentos que formam os retalhos de vida das personalidades em cena, colando memórias pessoais, intimas e coletivas, fazendo um mosaico plural e individual ao invés de uma autobiografia. Uma autópsia de seu mundo e sua existência.

Há que se ressaltar que em toda essa entrega não existe o menor traço de narcisismo ou auto-indulgência por parte da realizadora, por mais que no final saiamos do filme com a impressão de que sua existência foi notável. Um trabalho escrito sobre a trajetória especifica da cineasta que tivesse unicamente como fonte As Praias de Agnès não teria mais que um parágrafo ou um punhado de linhas. Pois em seu filme, Varda se interessa menos por páginas de seu passado que por imagens, sempre o imaginário como um sentido de beleza ou estilo, um olhar para fazer cinema. Um olho, uma câmera, uma imagem, como é proferido em dado momento perto do final de As Praias de Agnès.  Em Os Catadores e Eu, onde já aderira à tecnologia digital, Varda se autointitulou como “catadora de imagens”, à procura de pessoas e personagens, ao mesmo tempo em que filma o seu próprio envelhecimento ─ o que mencionaria em Dois Anos Depois, onde também recorda as lembranças das filmagens de Jacquot de Nantes, o trabalho que fez em homenagem ao marido Jacques Demy, que, já doente, escrevera suas memórias de infância e juventude e pedira que ela as filmasse (em As Praias de Agnès a cineasta fala de como alguns acontecimentos da infância de Demy podiam ser claramente vistos em cenas de filmes dele). São esses os núcleos emocionais da maioria dos trabalhos mais recentes de Varda (dedicada a restaurar e preservar a filmografia do marido e realizar documentários sobre as obras dele) e de pelo menos quase toda a metade final de As Praias de Agnès.

O casal se conhecera no Festival Internacional de Curta-Metragem de Tours, em 1958, onde ambos apresentavam alguns de seus primeiros trabalhos, e permaneceram juntos até o falecimento de Demy em 1990. As Praias de Agnès em parte é um diário de viagens pelo tempo e a memória de Agnès Varda por antes, durante e depois de sua convivência com o marido. Muitos outros filmes de memórias ou cineautobiografias ganhariam muito (em termos de amplitude e extensão de fatos e informações) se tivessem saído em livros, porém As Praias de Agnès não poderia existir se não como cinema. Sejam as praias, as fotografias, recriações de lembranças antigas ou a sua própria casa que muito serviu de locações para filmes seus e do marido, são todos esses espaços privilegiados para os seus emaranhados de jogos e poesia pura, e que pode ter como síntese, a construção de uma espécie de instalação onde uma casa tem as paredes feitas de filme. É quando Agnès Varda diz se sentir em casa.

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