Planeta dos Macacos: A Origem (Rupert Wyatt, 2011)

Talvez o maior problema na recepção das duas incursões recentes na série Planeta dos Macacos (a refilmagem de 2001, feita por Tim Burton, e este Planeta dos Macacos: A Origem, mais um fruto da corrente onda de reboots) seja a tendência a avaliar os dois filmes a partir de critérios estabelecidos pela versão original de Schaffner, realizada durante a luta por direitos civis, e que, assim como o restante da série clássica, era um questionamento das relações raciais na América. Parece existir uma visão solidificada que exige não só um subtexto político, mas precisamente o mesmo subtexto político de cada exemplar novo da franquia, independente de seu status como reimaginação da mitologia. O filme de Burton, embora muito claramente politizado (pouco importa, no caso, se bem sucedido nisso ou não), foi massacrado em grande parte porque tentava ser politizado de forma relevante no contexto de 2001, e não no contexto dos Estados Unidos em fins dos anos 60; já este está sendo recebido de maneira mais calorosa, muito por, segundo parcela considerável dos que o elogiam, retomar a veia de crítica social característica da série. Mas o filme de Wyatt me parece o único da franquia que não só não está nem aí para qualquer tipo de alegoria, como faz questão de fugir delas.

Planeta dos Macacos: A Origem é sobre macacos adquirindo inteligência e se revoltando contra humanos e não tem absolutamente nenhuma intenção de agregar significados adicionais a quaisquer desses elementos. Eles são o que são e o filme não parece duvidar por um único instante que isso seja suficiente, o que por si só já é um fato a se comemorar: evidentemente passa longe de ser uma obra-prima, mas oferece um tipo de experiência atípica numa época em que muitos blockbusters almejam e fingem ser mais do que são de fato, geralmente através de estruturas narrativas supostamente complexas e acúmulo (overdose?) de símbolos e metáforas pedestres. Wyatt não se preocupa em parecer esperto nem em tentar justificar sua obra baseado em fatores extrínsecos. É o filme mais genuinamente B a se infiltrar em toda a estrutura de produção, marketing e distribuição de blockbusters em anos.

E entenda-se genuinamente B de forma literal. Outra concessão que Planeta dos Macacos: A Origem se recusa a fazer é assumir uma autoconsciência/ironia formal, hoje em dia a alternativa mais comum aberta a quem não quer investir na falsa complexidade. Não: em momento algum Wyatt sente a necessidade de dizer ao espectador “isso tudo é camp, mas eu sei, não estou fazendo ingenuamente”. Pelo contrário. O filme encena, impassível, o diálogo via sinais entre César e um orangotango de circo; ou as lições que César passa a dar aos outros macacos. E, exemplo definitivo, elege as agruras do vizinho chato de Will como gag recorrente com a cara mais limpa possível, sem um único aceno ou piscada de olho. O cara é só azarado mesmo, parece dizer.

É claro que nada disso exime o filme de seus defeitos e há uma sensação de desleixo em muitos momentos. Tudo é construído tendo em vista o clímax. O que vem antes é meramente um arranjar de peças, um colocar de tudo no lugar para a longa perseguição aos macacos e o confronto na ponte Golden Gate, e Wyatt não se esforça nem um pouco em ir além do estritamente necessário — do ponto de vista narrativo — nas cenas que antecedem a fuga dos macacos: uma vez que cada uma tenha servido ao seu propósito de, da forma que seja, contribuir na arquitetura do final, passa-se para a próxima. A exceção são as cenas que envolvem os próprios macacos, executadas com muito mais cuidado e interesse — e beneficiadas sobretudo pela atuação de Andy Serkis, no papel de César —, e que felizmente se tornam dominantes a partir do segundo terço. Antes disso, Planeta dos Macacos: A Origem resvala na chatice com frequência. Depois, só quando os humanos passam muito tempo em foco, sendo evidente o zelo dedicado à concepção de César e dos demais símios e ainda mais evidente a negligência com todos os outros personagens. E, por mais que humanos melhor desenvolvidos façam falta, não se pode dizer que haja inconsistência com relação à proposta, pois o filme é dos macacos e é o lado deles que se espera que a plateia tome. Novamente, buscar essa identificação do público com os macacos e sua revolta não trai intenção política alguma do diretor: é a opção mais conveniente se o objetivo é o investimento emocional da plateia. Aliás, os únicos humanos que sobressaem um pouco são os vilões, e isso porque Wyatt também não se furta ao maniqueísmo e à manipulação mais barata e deslavada — e por isso mesmo quase irrepreensível, dado que funciona: basta ver as reações à já muito elogiada cena do “No!”.

É praticamente certo que virão sequências, e resta torcer para que mantenham o mesmo espírito. Talvez, junto com Super 8, Planeta dos Macacos: A Origem mostre que estamos voltando a uma época com blockbusters mais focados na experiência que podem proporcionar, e menos movidos a impostura. Ou talvez não, como parecem indicar as críticas que tentam a todo custo legitimar o filme pelo que ele não é, enquanto ignoram onde se concentram suas forças.

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De Mayerling a Sarajevo (Max Ophüls, 1940)

Por Robson Galluci

Logo de início, De Mayerling a Sarajevo, filme que encerra a primeira fase europeia da carreira de Max Ophüls, explica num texto que não tem a intenção de ser uma mera reconstrução histórica, embora não se furte a, no mesmo texto, estabelecer que os fatos que se propõe a representar (e ficcionalizar à sua maneira) sirvam para demonstrar e esclarecer certos “problemas espirituais e políticos” da Europa, tanto do período retratado (primeiros anos do século XX) quanto da época da produção (início da Segunda Guerra Mundial). Trata-se, portanto, de um filme declaradamente político, talvez o mais político do diretor. E provocativo, como demonstra a primeira cena, em que os preparativos para uma festa da realeza são ridicularizados, mostrados de forma farsesca e zombeteira.

O material do filme são os últimos anos de vida do arquiduque Francisco Ferdinando, sobretudo seu casamento com a condessa Sofia Chotek e o subsequente assassinato do casal em Saravejo, em 1914, um dos acontecimentos que precipitaram o início da Primeira Guerra Mundial. E, por mais que tenha intenções políticas muito claras — talvez até mesmo panfletárias, mas o filme é mais sofisticado que o panfleto cinematográfico típico —, Ophüls coloca o romance dos dois no centro de De Mayerling a Sarajevo. Ambos são idealizados, assim como a própria história do casal. É o velho tema do amor impossível, que vai contra convenções sociais — o relacionamento de Francisco com Sofia é desaprovado pelos Habsburgos por ela não pertencer a nenhuma família reinante na Europa da época —, mas o que há de subversivo no filme começa por aqui: o tema não é, como de hábito, concretizado na forma de um príncipe que se apaixona pela moça pobre ou vice-versa, com o casal vencendo as convenções que, no entanto, voltam a operar no instante seguinte, após a moça tornar-se princesa, transformando tudo mais num mito de ascensão social do que qualquer outra coisa. Pelo contrário: para começar, Sofia precisa, de certa forma, se rebaixar de sua posição, pois afinal ela faz parte da nobreza de um dos reinos submetidos ao império austro-húngaro; além disso, ela mostra um saudável desrespeito por qualquer tipo de protocolo ou ritual caro à realeza — e é essa característica que atrai Francisco pela primeira vez.

Mas o casal está também à mercê dos acontecimentos e da marcha histórica, e é aí que Ophüls tem seus maiores acertos. De Mayerling a Sarajevo trabalha constantemente em duas frentes sem perder a mão em nenhuma, sempre cercando a história dos dois e seus conflitos com os Habsburgos — Sofia pelos motivos já citados, Francisco por conta de suas ideias políticas liberais — com as agitações que tomam conta do império. Assim, o estúpido apego ao protocolo por parte da família real — visto por Ophüls como nem um pouco diferente do sonho de organização total do pensamento fascista (e nem precisaria da referência explícita ao nazismo na montagem final) — e sua cegueira política vão criando aos poucos as condições favoráveis ao assassinato que ocorrerá. É claro que não é tudo tão simples: embora os Habsburgos sejam quem mais apanhe no filme — fazendo inclusive mais de uma tentativa de convencer Sofia a aceitar o papel de amante e se tornar virtualmente invisível para o público —, também o casal é parcialmente culpado pelo que ocorre, ainda que essa culpa seja bastante relativizada (há a recusa de Francisco de abandonar o povo à tirania do tio etc.). Afinal, ambos fazem várias concessões ao longo da narrativa, sendo que a aceitação do casamento morganático — em que Francisco abdica, em nome de Sofia e dos filhos que venham a ter, de qualquer direito ao trono ou privilégios exclusivos da família real — é a que mais traz consequências, sendo diretamente responsável pela ausência da proteção militar em Sarajevo.

O diretor se aproveita do conhecimento prévio do espectador a respeito de como tudo termina para intensificar a aura trágica, que vai progressivamente tomando conta do filme, até chegar ao seu ápice na agourenta cena em que Sofia pede, com sucesso, permissão para estar com Francisco durante sua visita a Sarajevo. Na cadeia de ação e reação montada por Ophüls, os Habsburgos são em grande parte responsáveis pela eclosão da Primeira Guerra (e portanto da Segunda). É claro que é uma afirmação radical, mas é claro também que a Ophüls não interessam os fatos em si, que manipula e distorce a seu bel-prazer (e sem esconder sua estratégia em momento algum, como já tinha escancarado no início), mas sim um panorama moral que ele concretiza em seus personagens. Explicitar esse panorama — e sugerir, tanto no texto de abertura quanto na montagem que encerra De Mayerling a Sarajevo, que ele segue sendo aplicável à Europa como um todo — levou o filme a ser proibido pelos nazistas na França ocupada, sendo que a estreia só foi ocorrer em 1945. Antes disso, Lachende Erben já havia sido proibido na Alemanha sob a acusação de promover a desordem pública. Há muito de subversivo, até mesmo anárquico, em ambas as obras, seja na irreverência sarcástica de Lachende Erben, seja nas observações mais sérias e agudas de De Mayerling a Sarajevo. Por sorte, foram os filmes que permaneceram.

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A Árvore da Vida (Terrence Malick, 2011)

Assim como o livro de Jó, de onde tira sua epígrafe, A Árvore da Vida se volta para a perplexidade diante do sofrimento que se abate indistintamente sobre os seres humanos. A busca por um motivo para o sofrimento — seja uma ação no passado que o torne “merecido”, seja um acontecimento futuro que o redima — geralmente é o ponto de partida para questionamentos sobre o sentido da vida, e quando coloca em uma das primeiras cenas uma mãe recebendo a notícia da morte do filho, Malick estabelece em poucos minutos que é exatamente de tais questões que se ocupará durante o restante do tempo. Mas não é só isso: toda a primeira parte de A Árvore da Vida é praticamente um manifesto do diretor, um colocar de cartas na mesa, porque é preciso separar este filme dos demais de sua obra, mostrar que acontecerão coisas diferentes aqui, que a religião, antes marginal, desta vez estará no centro de tudo, que a dimensão da experiência se estenderá muito além dos limites anteriormente vistos — a guerra, o primeiro contato etc. Portanto, na primeira hora de filme o que vemos é Malick deixar muito claro o que pretende — que não é pouco — e até onde tenciona ir para alcançar — que é bem longe: como todo mundo já sabe, o filme não só vai se deter na infância de três garotos no seio de uma família comum no Texas dos anos 50 como também procurará registrar uma parcela considerável da história do universo. Novamente falando de Jó, há um momento ao fim do livro em que Deus responde aos questionamentos do protagonista, embora “resposta” não seja bem a palavra: como bem demonstra a citação do início, tirada desse trecho, o que Deus fala é basicamente para Jó pensar um pouco mais sobre como a sensação de ser criador de tudo está longe de sua vivência, e, sobretudo, sobre o seu tamanho e importância em relação ao cosmos e a todos os outros seres — portanto é mais saudável não esperar tanto assim da vida e aprender a lidar com a aparente falta de sentido do mundo.

O que Malick faz nessa parte é próximo de adaptar essa fala: tenta dar conta do que seria a experiência de testemunhar o início do universo e o surgimento da vida. Faz isso com imagens poderosas, num espetáculo fascinante e envolvente, que, no entanto, não está ali para servir como resposta ou como demonstração da enormidade do cosmo e da relativa insignificância dos personagens; presenciar a criação em A Árvore da Vida é o começo de uma busca, é exatamente o que dará mais corpo às perguntas (não é por acaso que ela está no começo, e não no final como em Jó), de modo que temos a última declaração de intenção do diretor: não se trata apenas de perguntar retoricamente se vida tem algum sentido; trata-se de muito literalmente ir atrás da resposta. Ir mesmo. É preciso coragem, porque existe uma certa tendência contemporânea fortíssima — e com muitos argumentos a seu favor, é preciso lembrar — de enfatizar a impossibilidade de qualquer linguagem de fato dar conta da experiência e explicá-la; muitas vezes há a performance da busca, mas apenas como maneira de demonstrar essa impossibilidade. Malick não está interessado em nada disso: sua procura será sincera.

Isso estabelecido, o ramo mais narrativo do filme pode finalmente começar, e acompanharemos o cotidiano dos três irmãos, tendo como foco os conflitos do filho mais velho e dos pais entre si e principalmente consigo mesmos, na sua tentativa de entender as razões, se é que existem, que levam a uma relação tão disfuncional entre o pai e os filhos e, como consequência, algumas vezes entre o próprio casal, que levam ao frequente fracasso de muitos sonhos e à frustração de tantas expectativas. Para isso é preciso mergulhar fundo na tarefa de transmitir a experiência o mais próximo possível de como ela é efetivamente vivida, e assim a maior surpresa que Malick reserva é que, contrariando o que geralmente se espera de filmes de temática semelhante, não há muita abertura para a contemplação, para planos longos, para a reflexão. Tudo é fragmentado e efêmero. Na maior parte do tempo, a montagem é rápida, inserindo um corte antes que um plano tenha tempo de se oferecer por muito tempo ao olhar, de ganhar alguma significação. São planos concebidos por Terrence Malick e fotografados por Emmanuel Lubezki, que também trabalhou em O Novo Mundo, logo são planos fantásticos, e a impossibilidade de observar qualquer deles por muito tempo reforça uma impressão de beleza fugidia, quase incapturável, da vida. Nas cenas com o protagonista adulto a montagem segue a mesma lógica, porém com um resultado consideravelmente inferior, tanto por faltar aos planos a inspiração encontrada nas demais cenas (com exceção da já muito elogiada imagem da revoada de pássaros), quanto por tudo no protagonista sugerir cansaço e tédio, em oposição às experiências intensas e intraduzíveis da infância.

As vozes em off costumeiras nos filmes de Malick interrogam, refletem, tentam encontrar nas imagens os indícios de algo que possa então ser compreendido, mas o sentido procurado pelo diretor não chega, nem mesmo após uma nova viagem cósmica, dessa vez até o fim da vida na Terra, depois de o sol virar uma gigante vermelha etc. Ou seria melhor dizer: um sentido externo não chega. Porque Malick não é ingênuo, lógico, e desde as primeiras falas do filme já deixa claro que a resposta que procurará dar é baseada num sentido que se constrói internamente, através da maneira de estar no mundo, que pode ser segundo a graça ou a natureza, ou, mais provavelmente, em algum lugar do espectro entre as duas possibilidades. Toda a jornada da criação ao fim da vida é a jornada dos personagens em direção a uma tomada de consciência em relação a isso. Até mesmo a Sra. O’Brien precisa passar por ela e entender as implicações concretas de seus discursos para os filhos e aceitar a morte de um deles.

A ideia do amor ao próximo como forma de modelar a existência e dar-lhe um certo significado não é nova no cinema do diretor, embora nunca tenha sido colocada de modo tão frontal quanto aqui. É exatamente onde A Árvore da Vida naufraga. Depois de quase duas horas de um cinema absurdamente potente, que se meteu até mesmo a recriar o Big Bang e desincumbiu-se dessa com um êxito notável, é absolutamente frustrante que Malick dramatize o ponto final da jornada dos personagens recorrendo a um repertório de imagens já repetidas à exaustão em especiais de natal na TV e campanhas publicitárias, e a essa altura esvaziadas de qualquer significado ou força expressiva. É desapontador pular das imagens singulares que Malick nos dá nos dois primeiros trechos do filme para aquela praia iluminadíssima cheia de gente sorrindo e se abraçando, que poderia ter saído do especial de natal da Globo ou, pior ainda, do horário eleitoral. Isso tudo é especialmente decepcionante porque a discrepância entre o que se vê no final e o que se viu antes é tão gritante que não há como não imaginar que Malick simplesmente colocou menos esforço do que deveria justamente na concepção visual da conclusão do filme. É claro que é possível, até provável, que no fim das contas a experiência seja realmente inexpressável. O problema é que A Árvore da Vida passa perto demais de conseguir algo muito grande, e o modo como afunda não chega a ter nem mesmo a beleza do fracasso que teria se tivesse se mantido perto de atravessar uma linha desconhecida até o último instante. O desabamento do filme começa minutos suficientes antes do fim para causar um mal-estar. Mesmo com o brilhantismo de parte considerável do material, o gosto amargo que fica é forte.

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O Corte da Navalha (Russell Mulcahy, 1984)

Em poucas palavras: é sobre um javali gigante solto no deserto australiano. Só isso já gera uma série de expectativas a respeito do que o filme é, não é e tenta ou não ser. Quando se sabe que, além disso, ele faz parte da onda de filmes de gênero de baixo orçamento que tomou a Austrália durante os anos 70 e 80 (onda que seria batizada de ozploitation pelo recente documentário dedicado a ela, Not Quite Hollywood) e que é muito descaradamente inspirado em Tubarão, ainda mais expectativas se agregam às iniciais, sejam de características geralmente encaradas como positivas e associadas aos cinemas de gênero mais diversos dessa mesma época, como o cinema fantástico italiano — exercício de gênero, metalinguagem e outras —, sejam de falta de identidade, cópia barata etc. O aspecto mais impressionante de O Corte da Navalha é como ele frustra ideias preconcebidas: aqui e ali dá até para argumentar que ele se encaixa no polo do exercício e, por que não, no da picaretagem, mas no geral o filme de Russell Mulcahy (que dois anos depois estourou com Highlander) é um objeto bastante singular e surpreendente.

A princípio, não parece: temos a abertura padrão em que o javali faz sua primeira vítima, a testemunha do fato que ninguém leva a sério e assim por diante. Os primeiros indícios de que a coisa não se dará no piloto automático são o espaçamento de dois anos entre esse primeiro ataque e a nova aparição do javali gigante, e uma troca de protagonista a la Psicose aos vinte e tantos minutos de filme. Ambos os elementos são emblemáticos da narrativa inusitada que O Corte da Navalha adota, baseada em dois princípios (na verdade, esses princípios são resultado de outra escolha, mas logo chegaremos lá): distribuir o tempo entre vários personagens, sem se concentrar demais em nenhum (o que não chega a sumir com um protagonista de fato, mas diminui a concentração do filme em torno dele) e, sobretudo, tornar o javali quase incidental à história.

É a segunda escolha que torna possível a primeira e também configura a narrativa: em filmes de animais gigantes assassinos o objetivo é matar a fera, a caçada é o centro de tudo. Mulcahy ignora isso alegremente — embora Jake Cullen esteja atrás do javali praticamente o tempo todo, só o acompanhamos de fato nessa tarefa por uns vinte minutos de filme —, o que permite uma extrema liberdade na hora de enveredar por ramificações da trama e abandonar o que parece ser o plot principal por algum tempo, sendo o principal exemplo disso o interlúdio surrealista (na acepção exata do termo) em que Carl se vê perdido no outback. Também não deixa de ser uma maneira inteligente de o diretor transmitir ao espectador a vastidão do deserto australiano, em que mesmo um animal gigantesco só é visto esporadicamente; seria contraditório que o javali aparecesse a todo momento apenas para causar um estrago qualquer e manter o filme com um único foco de interesse. O deserto, aliás, pode ser considerado o verdadeiro núcleo de O Corte da Navalha, ao redor de onde tudo mais se ordena, e para isso contribui a concepção visual e sonora que Mulcahy e o diretor de fotografia Dean Semler (Mad Max 2, Appaloosa) adotam ao retratá-lo: ora de forma mais naturalista e selvagem, enfatizando a imensidão do horizonte, o céu sem nuvem nenhuma por quilômetros, o pôr-do-sol deixando toda a imagem avermelhada (o que permite várias tomadas fantásticas em contraluz), ora como território alienígena e desconhecido, especialmente à noite, quando então a neblina domina o quadro e os sons animais mais bizarros (toda a construção dessas sequências me leva a crer que o efeito buscado é esse, porém é possível que para um nativo da região o chilreio todo não seja assim tão esquisito) irrompem por todos os lados, acompanhados de uma música que também se destaca pela estranheza.

É nesse território estranho e irredutível — incluindo aí suas eventuais feras gigantes assassinas — que os personagens precisam sobreviver da forma que der e com que precisam lidar de alguma maneira. Não por acaso, um dos personagens é uma ativista de direitos dos animais que vai à cidadezinha onde se passa a história para fazer uma reportagem sobre a caça de cangurus, trabalho da maioria dos habitantes do local. Que ela termine sendo uma vítima do javali é deliciosamente irônico, porém o filme atira para mais de um lado, e aqui reside outra consequência da diminuição do papel do animal no desenvolvimento da narrativa: o javali deixa seu rastro de cadáveres, mas, com exceção do primeiro, todos os demais passam primeiro pelas mãos dos irmãos Baker, que acabam se tornando os verdadeiros vilões da história — tanto que, em mais um exemplo das ramificações que Mulcahy não hesita em tomar quando acha necessário, um bom tempo é dedicado à jornada de vingança pessoal de Carl contra os dois; e até confronto final com o javali acontece apenas porque o animal vai, casualmente, até onde o personagem está, e não porque alguém consegue rastreá-lo e cercá-lo no deserto. Não se trata, obviamente, de um filme “ecológico” (é provável que essa denominação se aplique mais a Long Weekend, outro ozploitation, em que um casal de férias faz algumas cagadas com o ambiente em torno e a natureza decide dar o troco), pois não há uma tomada de posição clara — muito pelo contrário, O Corte da Navalha muitas vezes se diverte com sua incorreção política.

Também não é o caso de aplaudir o diretor por, sem nunca permitir que o filme perca ritmo ou deixe de funcionar como entretenimento, inserir, além de todos os surtos narrativos e visuais, também uma análise das tensões entre seus personagens e o ambiente hostil que os cerca e, ao mesmo tempo, lhes fornece uma identidade. Não deixa, é claro, de ser um mérito, mas me parece mais uma decorrência da escolha de Mulcahy em derivar tudo — imagem, som, narrativa — do espaço onde o filme se coloca; espaço que acaba por impor alguns temas, ainda que subterrâneos. Porém, tanto fazer essa escolha quanto segui-la com sucesso em todas as suas implicações exige coragem e ousadia — e aí não faz diferença se é um filme de gênero feito para vender, como é o caso, ou se é um filme com menos pressões comerciais e portanto, em teoria, com mais liberdade de criação —, e isso deve ser reconhecido. Assim sendo, novamente em poucas palavras, com pequenas mudanças: é um filme notável sobre um javali gigante solto no outback.

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