Por Fabio Ramalho
No episódio da série Cinéma de notre temps: Chantal Akerman par Chantal Akerman (1997), a diretora recorre a uma anedota para articular a sua relação com o cinema. Um homem, conta-nos Akerman, passava por sérias dificuldades financeiras e resolve vender sua última vaca. Ele a leva para uma feira livre onde a deixa exposta e começa a anunciar de maneira muito simples, “aqui está minha vaca; minha vaca é uma vaca é uma vaca é uma vaca”.[i] Mas todos estão oferecendo suas vacas com muito entusiasmo e ressaltando suas muitas qualidades, de modo que ao fim do dia todas já foram vendidas, exceto a sua. Um dos vendedores então se aproxima e observa, “mas você não vendeu ainda sua vaca?”, ao que o homem responde: “minha vaca não é lá grande coisa, ela é muito magra”. O vendedor então toma para si a tarefa e se coloca a anunciar: “vejam esta vaca, ela é muito boa, ela faz filmes, ela não tem medo de nada etc.” O vendedor atribui tantas e tão variadas qualidades à vaca, com o objetivo de seduzir os passantes, que o dono por fim hesita: se ela é tão boa assim, por que ele deveria vendê-la? Por sorte, diz Akerman, a essa altura o negócio já havia sido fechado.
Akerman diz que ama o cinema quando são os outros que falam. Resulta-lhe difícil interessar-se por si mesma, daí a dificuldade que encontra, ela nos diz, em cumprir a tarefa que lhe foi designada pelos produtores da série: a de fazer o seu autorretrato. Mais que isso, é em grande parte pelas pessoas amigas, parceiros, colaboradoras e críticos, através daqueles e daquelas que depositam um olhar sobre a obra, que ela ama seus filmes. A semelhança com o processo de constituição de si como sujeito através de um outro que nos devolve nossa imagem como num espelho não é, evidentemente, casual. Aqueles que falam sobre o seu cinema seriam como o vendedor que lhe acrescenta múltiplos atributos. Esse olhar que retorna, que dá forma e consistência ao corpo da obra, é o que renova a convicção no seu ofício. Temos aí uma bela inflexão da compreensão do cinema como exercício coletivo. Ele é coletivo também porque depende do gesto de abertura que permite que uma juntura se forme entre obra e espectador/a. O que se estabelece é, então, uma relação de cumplicidade.
É por isso que, afinal, Akerman pode dizer que gosta de sua vaca mesmo que ela seja magra, ou melhor, sobretudo porque ela é magra. Temos aí, talvez, uma das maneiras mais eficazes de sintetizar o seu “cinema menor”, como foi algumas vezes definido, em referência ao conceito de literatura menor de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Um cinema de vagas magras, que se constitui na precariedade, austero – num possível desdobramento da austeridade que a realizadora afirmou ter desde sempre vivenciado e conhecido no seio de sua família judia, atravessada pelo trauma histórico da perseguição e dos campos de concentração.
Durante algum tempo eu me interroguei sobre os motivos pelos quais esse depoimento de Akerman para Cinéma de notre temps me comove cada vez que o revejo. Em primeiro lugar, sem dúvida, está o lugar que a voz da cineasta ocupa nos seus filmes. A voz atua como veículo para expressar as afecções daquela que fala e também para criar um vínculo com as pessoas que a ouvem. O cinema de Akerman explorou essa potência da fala intensamente. E ainda semana passada, quando lia uma entrevista dada a Nicole Brenez para a revista Lola,[ii] eu pensava em como poderia passar horas ouvindo-a falar, e como ler suas entrevistas era quase como escutá-la.
Chantal Akerman foi uma cineasta que muitas vezes me fez ignorar as salutares suspeitas pós-estruturalistas e me lançar ao exercício (sempre falho) de tentar traçar os liames entre corpo em cena, autoria e sujeito biográfico. Talvez porque seu passado e o de sua família sejam tão fortemente figurados nos filmes; talvez porque sua trajetória entre Bruxelas, Nova York e Paris seja tão fascinante. É mesmo difícil não cair no risco de correlacionar vida e obra; não acabar sucumbindo, vez por outra, à atração do anedótico: os relatos se espelham e se multiplicam entre filmes, textos e entrevistas. Um exemplo dentre muitos possíveis: a leitura do diário da avó, com as passagens sobre a solidão decorrente de sua condição de mulher que apenas encontra conforto na escrita íntima, é figurada numa cena tocante de Demain on déménage (2004), quando Sylvie Testud e Aurore Clément lêem o que parece ser uma transcrição quase literal do texto do diário real e permanecem um tempo paradas, fumando, partilhando esse momento de enlace entre gerações, gestado no silêncio da madrugada.
Outro vínculo incontornável: a relação obsessiva entre mãe e filha, que desponta na sua filmografia com toda força em News from home (1977) – as cartas da mãe lidas naquele tom monocórdio e meio debochado de filha insolente – e encontra sua variação mais bem-humorada em Tout une nuit (1982). Neste, há um breve plano em que uma senhora sai à frente de sua residência para fumar, absorta, e uma voz vinda do interior da casa a interpela insistentemente, perturbando o momento furtivo de pausa para o cigarro – momento este, como sabemos todos que alguma vez cultivamos esse hábito, de valioso recolhimento e introspecção. A mulher é a mãe de Akerman, e a voz que a chama uma e outra vez é a da própria diretora.
De fato, sua voz se multiplica por toda a sua filmografia: é a inscrição derradeira e mais contundente de seu corpo e de sua singularidade. É dela a voz da vizinha que aparece à porta, mas que não podemos ver, e pede à protagonista em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce,1080 Bruxelles (1975) que cuide de seu filho, entre comentários banais sobre o cotidiano. É dela também a voz da madre superiora em La folie Almayer (2011). Sempre fora de campo, como que atravessando cada filme e, gosto também de pensar, lançando uma piscadela em direção a nós: eu estou aqui.
Mas se a própria diretora tantas vezes sugeriu, ela mesma, linhas capazes de inscrever certas contingências e fazer aderir algo de seus trajetos pessoais à materialidade das imagens que criava, ela deixou claro também que a fratura é incontornável e que os esforços de reconstituição dos percursos de uma vida se deparam numa proliferação de pontos cegos. Ela não apenas desautorizava qualquer transposição ingênua, mas desafiava a fixação de qualquer dado factual. Veja-se a esse respeito De l’autre côté (2002), seu documentário sobre os latinos – mexicanos e centro-americanos – que cruzam a fronteira para os Estados Unidos, o qual termina com o belo relato sobre os rastros de uma mulher, mãe e migrante que desaparece. O relato nos fala dessa figura evanescente cujos traços de gestos e hábitos efêmeros conduzem afinal a uma interrogação sem resposta: onde estará? A busca dos vestígios termina na apreensão de uma fantasmagoria. A voz da cineasta – uma vez mais sua voz – nos diz, concluindo: “deve ter sido uma alucinação”.
Temos aí uma variação insuspeita de Albertine/Ariane, a mulher desaparecida em La captive (2000), adaptação da obra de Proust realizada dois anos antes. Chama a atenção, aliás, que a cineasta tenha decidido terminar o documentário sobre o problema político da fronteira com uma mudança tão acentuada de tonalidade, centrando os últimos minutos do longa-metragem em palavras que assumem um teor tão fortemente elaborado, como uma espécie de requinte que escolhe dotar aquela vida migrante de um registro marcado pelo afastamento de qualquer resquício de abordagem sociologizante.
Mesmo nos casos em que a presença em cena remonta à própria realizadora, a visibilidade do corpo não se presta ao estabelecimento confortável de um fio capaz de unir realidade e ficção. O corpo se encontra sempre, pelo contrário, mobilizado como recurso expressivo mediante um borramento de fronteiras: é e não é. Como observou Ivone Margulies[iii], o seu modo de filmar favorece uma oscilação constante entre figuração e literalidade, entre a materialidade do corpo da performer e a personagem da representação. Esse “registro dual” se estende ainda à disjunção entre roteiro e fala, ou seja, ao estatuto da voz, objeto da minha própria obsessão.
Há ponto de ancoragem possível? É justamente esse problema que a demanda do autorretrato postula. A esse respeito, torna-se especialmente eloqüente o final do seu depoimento em Cinéma de notre temps. Se no inicio a cineasta havia alertado que era uma “narradora pouco confiável” e chamado a atenção para o fato de que, afinal, “a sinceridade é um artifício”, depois de muitas tentativas, bem como de uma longa sequência de planos de filmes reeditados em conjunto, ela volta ao centro da câmera e os termos do seu autorretrato são enfim estabelecidos: “Eu me chamo Chantal Akerman e nasci em Bruxelas. E isso é verdade. Isso é verdade.” Depois de tantas hesitações e incertezas, a realizadora se reencontra no retorno aos dados mais simples: seu nome e sua designação de origem.
E não é isso que o seu cinema sempre fez? Da mulher deitada na cama de seu quarto no curta-metragem La chambre (1972), à mulher reclusa no espaço de outro quarto com apenas um colchão, algumas folhas de papel rabiscadas e um saco de açúcar, em Je tu il elle (1976), passando pela mulher entrincheirada num quarto repleto de móveis e objetos amontoados em L’homme à la valise (1983) – e uma variação dessa mesma imagem, décadas depois, com Sylvie Testud tentando escrever em meio ao caos em Demain on déménage –, chegando à mulher que observa Israel da janela em Là-bas (2006), Akerman refez sempre o mesmo movimento de voltar ao mínimo, aos elementos mais básicos da realidade e a partir daí tentar delinear um território próprio onde seria possível existir.
Neste dia que marca a notícia de sua própria desaparição, o ímpeto de retornar à sua imagem, à sua fala e aos seus vestígios se mostra um exercício de certo modo inescapável. Volto ao depoimento pelo qual tenho especial apreço: “Eu gosto da minha vaca sobretudo porque ela é magra”. Dentre tudo aquilo que já li e ouvi sobre imagem e cinema, essa é sem dúvida uma das declarações mais enternecedoras.
[i] Há várias referências ao verso de Gertrude Stein em filmes e entrevistas de Akerman.
[ii] Chantal Akerman: The Pajama Interview (2011), por Nicole Brenez, disponível em http://www.lolajournal.com/2/pajama.html.
[iii] Ivone Margulies, Nothing happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday. Duke University Press: Durham and London, 1996.