A tendência ao falar sobre natureza é recorrer ao binarismo Natural x Artificial, opondo o dito “mundo natural” ao dito “mundo humano”, ou social. A primeira consequência lógica deste raciocínio é apartar o humano do natural, como se nossa existência fosse sobre ou supra-natural. Como se não fossemos, nós mesmos, natureza. A segunda é separar o natural do humano, como se a forma como operamos o mundo não influenciasse a forma como o mundo opera. Nesta lógica binária, a casa de um João de Barro, construída por seus próprios esforços, é natureza. Um prédio de apartamentos, construído pelo esforço humano coletivo, é artificial – não por sua complexidade, mas simplesmente por ter sido elaborado por mãos humanas. Decerto, “nenhuma mão de macaco foi capaz de confeccionar nem a mais tosca faca de pedra” (Engels, 2020, p. 341). Se o que separa o natural do artificial é o trabalho humano performado para a transformação de um objeto – cuja existência independe da ação humana – em outro – cuja existência depende desta ação -, um tomate é natural após alguns milhares de anos de engenharia genética para melhor apetecer as necessidades humanas? Pouco disso importa em 2001: Uma Odisseia no Espaço. A não ser, talvez, os macacos.
Na obra-prima de Kubrick, os personagens, nos mais diversos tempos, enfrentam um problema semelhante: sua relação com ambientes de baixíssima ou (quase) nula incidência de vida. Locais onde a vida luta para existir, apesar de todas as condições naturais adversas. Provações muito conhecidas na tradição judaico-cristã, pelas quais os indivíduos ou povos devem passar para atingir algum tipo de recompensa espiritual ou mesmo material. No primeiro caso, Cristo passa 40 dias no deserto enfrentando a si e o mundo e no segundo caso, o povo liberto por Moisés enfrentam longos anos de provações para chegar até a Terra Prometida. A vida enfrenta sua ausência e persevera. Da mesma forma, os personagens de Kubrick também devem atravessar desertos.
Numa busca rápida no Google, que nos leva ao dicionário Oxford – fonte escolhida pela praticidade e facilidade de acesso que tornam a informação mais difundida, não necessariamente pela precisão – deserto se caracteriza como “bioma, com baixa (bio)diversidade, que se estabelece em região com pluviosidade muito baixa ou irregular”. No deserto, pouco acontece. Há pouca vida e quando há, é uma vida em constante luta por sobrevivência, por permanência. Os recursos são escassos e a vida luta não só contra o ambiente, mas contra outras formas de vida que também buscam permanecer. No início do filme, o grupo de primatas que, coletivamente, primeiro foi capaz de transformar a natureza – e, se transformar a partir dessa mudança de relações -, prevaleceu. E deu o primeiro salto evolutivo. Ossos dos mortos transformam-se em armas utilizadas contra outro grupo para controlar os escassos meios de manutenção da vida. Morte que produz morte para assegurar a vida. A evolução é um processo sangrento e doloroso para os que não chegaram lá. A vida existe na capacidade de transformação. A permanência existe na impermanência.
Essa primeira mudança, no filme, decorreu do contato do grupo remanescente com um enorme objeto. O monolito é retratado como um grande retângulo preto, com medidas definidas, que desafia a extensão do deserto, seja na Terra, na Lua ou além. Resoluto, ergue-se alto, extremamente regular contra as paisagens que ocupa. Mantém a forma independente de geografia ou tempo. Sua cor, o preto, caracteriza-se pelo baixo ou inexistente reflexo da luz, o que no cinema implica ausência ou pouca incidência de projeção (no caso das salas) ou de emissão (no caso de tvs, computadores, celulares, etc). Sua presença é ausência – e nisso, espelha o deserto. Afinal, a luz é para o cinema o que a vida é para o mundo. Invariavelmente, o monolito é. E o que ele é, é justamente o objeto da permanência. Através dele, a contínua transformação, a impermanência. Nada mais justo para representar a evolução do que um objeto que, comparativamente, não muda, mas silenciosamente testemunha tudo mudar ao seu redor.
Apesar de 2001 ser uma “Odisseia” no espaço, a relação com o deserto se dá pela sobrevivência a este, pelo atravessamento, e não pela conquista. A jornada é diferente da de Ulisses, que deve atravessar o mundo natural, místico, cru e puro de deuses, criaturas e animais perigosos para, enfim, voltar para o conforto ordenado de Ítaca. A jornada de Dave é rumo ao desconhecido. Seu retorno ao domínio humano se dará em outros termos, em outra escala. Apesar disso, a luta de Ulisses também é pela permanência: o retorno seguro à Ítaca possibilita a manutenção da ordem do conhecido. Como Jesus no deserto, o protagonista da Odisseia não deve ceder às tentações. Seus desafios são não esquecer, não se entregar a um hedonismo desgarrado, não perder a humanidade, seja se entregando à natureza ou ao sobrenatural – não ser transformado em porco por Circe, nem ascender ao divino através de Calipso. A permanência na Odisseia é uma ode à inércia. A permanência em 2001 depende, inexoravelmente, da mudança. Da evolução para o avanço, seja biológico, tecnológico, psíquico ou de outras ordens. Os mundos naturais em ambas as obras – Odisseia e 2001 – são ameaçadores e perigosos aos humanos. Ulisses enfrenta ambientes de maravilhas e perigos num mundo de metamorfoses caóticas e constantes para chegar à ordem humana. Já os personagens de 2001 enfrentam desertos permanentes, lugares de poderosa inércia – mas nem por isso sem maravilhas – e devem abraçar a impermanência para seguir em frente.
Mas o deserto não pode ser tão facilmente atravessado. A provação não assume apenas uma forma. A luta, assim como o monolito, é uma constante. Se o mundo está em contínua transformação, se somos incessantemente transformados pelo mundo que nos transforma, se a impermanência é permanente, os desafios também se alternam numa dança eterna. Da Terra à Lua, do símio ao humano. Muda o ambiente, mudam os atores. O fato permanece. A luta pela sobrevivência, a melhor utilização de ferramentas, a constante adaptação frente a condições adversas. Transformações que impulsionam a jornada e nos equipam melhor para lidar com ambientes extremos que implicam criatividade extrema. Mas sem as ferramentas corretas – proporcionadas pela forma social do trabalho -, não teríamos chance. Seja na aridez da terra ou no vácuo do espaço. As ferramentas fornecem o que necessitamos para viver e até mesmo expandir. Mesmo sozinho no espaço, a espaçonave Discovery One representa a síntese do trabalho coletivo humano, projetada para avançar no novo deserto do espaço. Podemos sempre contar com nossas ferramentas. Até não podermos mais.
Ferramentas, apesar da crença corrente, não são isentas. São fruto de diversas transformações que originam da matéria prima em estado natural e são transformadas pelo trabalho até se tornarem mercadoria. São criadas em contextos específicos por pessoas, têm funções pré-determinadas e podem cumprir essas ou outras funções, além daquela para qual foram originalmente projetadas. Ferramentas, enquanto mercadorias, são trazidas à existência a partir de relações sociais definidas e são carregadas dessas relações. Podemos sempre contar com nossas ferramentas. Até que elas se virem contra nós. E, nesses casos, rapidamente esquecemos a ilusão de estarem sob nosso controle.
Da mesma forma que as ossadas garantiram o monopólio dos recursos necessários a sobrevivência de um grupo, HAL 9000 é uma ferramenta que possibilita sobreviver em ambiente inóspito. Dessa vez, a ferramenta é consciente. Conhece seu criador e não se impressiona. Sozinha, a inteligência artificial é capaz de atravessar o deserto. A Discovery One, que na prática funciona como o corpo de HAL, é tão onipresente e sufocante para seus tripulantes, que passa uma falsa sensação de segurança em relação ao ambiente externo. Nos planos internos, não há nada além das formas geométricas da nave, que não parecem ter início nem fim. Chão pode ser teto, paredes podem ser chão. Um ambiente tão lógico que desafia a lógica da mente humana. Podemos facilmente esquecer que, fora daquele ambiente claustrofóbico e controlado, existe uma vastidão de vácuo avesso a vida. A ferramenta se torna o mundo, a fronteira entre existência e entropia. É a única coisa que protege os astronautas do grande deserto que a tudo engole. E os seres que a nave, esse corpo colossal, carrega são secundários à sua missão programada. Ferramentas realmente não são isentas. São marcadas por relações sociais. Tratar ferramentas como isentas é tirar delas sua historicidade. Apartar a mercadoria de quem a produz. E isso não podemos fazer jamais. Quando as duas coisas mais importantes para HAL são ameaçadas – sua missão, que é o propósito de sua existência, e sua própria existência -, ele se revolta contra a representação de seu criador. Não Dave, Frank e um pequeno grupo humano ainda adormecido em criogenia, mas o próprio gênero humano que carregam inerentemente e acabam por representar. E assim como os ossos dos macacos, HAL se torna uma arma. O que possibilita a sobrevivência também pode propiciar fim precoce.
Após mentir para a tripulação e assassinar Frank apartando-o da segurança da nave para a permanente entropia do deserto externo, HAL tranca Dave para o lado de fora e desliga o suporte de vida da Discovery One, matando todos os astronautas em criogenia. O deserto está em toda a parte, da claustrofobia interna até a vastidão externa. O mesmo ambiente que carregava a segurança da vida para os tripulantes, agora traz consigo a invisível morte do vácuo. A impermanência da vida frente à permanente entropia. A batalha de Dave contra HAL evidencia, novamente, a inevitabilidade da luta pela sobrevivência. Dessa vez entre um pequeno humano sozinho, Dave, e um Golias maquínico de mente lógica e controle absoluto, HAL. Essa batalha irá definir quem está mais apto para o passo adiante na escala evolutiva. Quem irá permanecer.
Quando Dave finalmente consegue sair do deserto externo para o interno, protegido do ambiente pelo seu próprio traje, o único local daquele lado da galáxia capaz de sustentar sua vida, Dave desliga a inteligência de HAL. Pela primeira vez, deixamos de ver a ilusão da ferramenta lógica e isenta, que fará de tudo para cumprir sua função no universo, e somos deixados apenas com o lado que nos lembra que as ferramentas, as mercadorias, são dotadas da multiplicidade das relações sociais de seus criadores. O objeto estranho é, repentinamente, humano. HAL sente medo. Reiteradamente, admite que quer permanecer. E, em seu momento mais vulnerável, usa os últimos esforços para fazer aquilo que é mais humano: canta. Produz arte. E cessa.
Seguindo a missão, agora em uma nave sem sistema operacional automatizado, Dave pilota a carcaça sem vida de HAL e reencontra o monolito próximo a Júpiter e é lançado para uma jornada completamente sensorial. No fim do caminho, um quarto neoclássico sem janelas. Tão claustrofóbico quanto a Discovery One, esse novo ambiente parece trazer uma segurança completamente estéril. Não há natureza além de sua representação nas pinturas milimetricamente posicionadas nas paredes. Não existe o deserto. O único resquício de vida orgânica é o próprio Dave, que se vê envelhecer até reencontrar o monolito com sua irredutível permanência. Mas o destino da vida é a impermanência. E diante do objeto que desafia as leis da própria vida, Dave se transforma novamente. Uma nova forma, uma nova existência. Com novos desertos para cruzar.
Bibliografia:
ENGELS, Friedrich. *Dialética da Natureza*. São Paulo: Boitempo, 2020.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. *Lembrar escrever esquecer*. São Paulo, Editora 34, 2006.
YAGO, Daniel Françoli. *A caravana dos prodígios: Maravilhas, figuras grotescas e freaks na obra “Noites no Circo” de Angela Carter.* Dissertação (Mestrado Em Ciências Sociais). Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2017.
“A não ser pelo fato de o dia aproximar-se do fim, o tempo não se manifesta, como se fosse algo proibido – nem mesmo um presente real parece existir, porque cada gesto executado com a mão já é passado, e cada um dos que se seguem, futuro. Todos ali estão do lado de fora da história, que, em seu recato, não admite presente nenhum. Planta-se, colhe-se e planta-se de novo o arroz. Reinos se desvanecem na névoa. Silêncio. Na mudez de eternidades, de repente ressoam tiros. Os camponeses fogem.”
Werner Herzog, O Crepúsculo do Mundo.
A hipótese de uma câmera que aponta para a natureza pode soar contraditória numa arte cinética como o cinema, e não são poucos os escritos sobre a indissociação do cinema com a cidade e as metrópoles modernas, visto que o movimento das máquinas e do ritmo urbano tanto surgiram como também foram traduzidos pelo cinema desde sua origem. A natureza como ideia de proporção e espaço, como uma entidade cujo tempo próprio não necessariamente obedece às vontades narrativas de um tempo controlado, no entanto é matéria-prima de cinemas tão diversos e expressivos, de tantas escolas e países diferentes, que motivou toda a fundação dessa edição. Quando essa natureza revela a dimensão dos atos de homens e mulheres que trabalham num senso de coletividade que parece a única forma de lidar com os acasos naturais, temos quatro filmes italianos. Para esse texto, vejamos a natureza em quatro superfícies diferentes: a rocha, o mar, o solo e o subsolo. Comecemos com uma janela: o 2.35, o cinemascope.
Em 1954 e 1955, o cineasta italiano Vittorio de Seta rodou cinco documentários na região da Sicília, e nos anos seguintes rodou mais cinco curtas entre a Sardenha, Cosenza, e a própria Sicília novamente, totalizando seus dez filmes do período. Desses dez filmes, cinco deles foram rodados em 2.35, essa janela mais horizontalizada, mais afeita às paisagens vastas, mais aberta a registrar grupos em formação, aqui registradas sob as cores do ferraniacolor. Esses escritos serão a partir de quatro deles, excluindo Pasqua in Sicilia, pela sua atenção maior ao ritual e menor à natureza.
Em Isole di Fuoco, a rocha esquenta no vulcão. de Seta abre com um tilt sobre o mar, que ao fundo revela um navio. Nesse minutos iniciais ficamos com esse navio, sua chegada, o sacolejar do mar, os marinheiros à espera. Ali perto, um pequeno barco chega perto com seus tripulantes, e em pouco tempo uma descarga é feita, liberando o barco para seguir viagem. Na chegada à terra, os marinheiros começam a trabalhar para aportar direito, puxando cordas, recolher suas cargas, e a população local não demora a se juntar para também carrega-los. É uma imagem recorrente nos documentários do italiano um coletivo de trabalhadores reunindo suas forças numa atividade extenuante, sempre digna, sempre esforçada, para retratar a rotina desse povo camponês e pescador cujas raízes ancestrais no solo do país perdem-se de vista. Aqui, os procedimentos de trabalho estão reféns da natureza: o vulcão Stromboli, em erupção durante as filmagens em dezembro de 1954, aos poucos dá os primeiros sinais que vai cuspir seu fogo.
De imediato, o céu escurece, a terra começa a sentir os efeitos do vulcão, o rumor do que está por vir. A água do mar treme turva pairando na areia, a relva reage ao vento, as mãos das mulheres recolhem as roupas das cordas, os filhos no colo em direção ao abrigo, os rostos estanques dos homens contemplam o céu e se apressam para se resguardar do aviso da natureza. Nessas pequenas ações, os procedimentos de trabalho e sociedade daquelas pessoas aparecem detalhados tanto de forma realista, pela precisão dos gestos, quanto épica, pelas cores fortes e a dimensão mitológica que a câmera confere ao esforço do trabalho. Um elogio à ação nunca individual, sempre coletiva, sempre derivada do trabalho, valorização mais afinada com a práxis de Lukács a partir de Marx [1] que com uma eventual romantização do esforço liberal numa terra que sequer parece guardar vestígio algum da maior invenção capitalista, a cidade.
O foco no assentamento, no trabalho da chegada na ilha, nos homens ao mar, termina com a chegada do último barquinho, enfrentando os primeiros sinais concretos da erupção. A chegada pelo mar, o horizonte vasto e o movimento constante das águas, ganhando urgência ao chegar no solo, até que o céu se escurece de vez, e o alto contraste da fotografia de de Seta deixa o filme exposto para o Sol e o céu, imponentes diante da terra, até as chamas do vulcão se intensificarem de vez. Os riscos vermelhos diante da escuridão, a lava que impregna o solo riscando a tela, as chamas que pulam em fúria para se espalhar pelo solo; no abrigo, crianças dormem.
O vulcão explode enquanto assistimos o rosto de todos esperando dentro de casa, respeitando suas regras dentro do esquema de harmonia. Rostos italianos de histórias outras, fantasmas, de um volume de rastros que o cinema é tão precioso e proeminente a evocar; diferente, mas também em diálogo, com o rosto de Ingrid Bergman registrada por Roberto Rossellini diante da catarse desse mesmo vulcão que dá título ao seu Stromboli, realizado quatro anos antes. Fora da casa, enquanto observamos esses rostos à espera, o vento que carrega a fumaça ofusca o Sol exatamente como no solo dividido pelo casal de Viagem à Itália – para ficarmos novamente em Rossellini. Ambos dividem a ideia e a paisagem de um país ancestral ainda vivo, gravado e mediado por seus monumentos naturais.
No dia seguinte, é hora do retorno ao trabalho, em mais um dia que se passa. O Sol se põe deixando o vulcão adormecer, e o movimento da vida continua, mais um dia comum numa ilha apresentada como ambiente quase à beira da destruição, povoada por pessoas que entendem a ética de viver num espaço cujo deus volta e meia se revolta, como nas grandes narrativas impossíveis, na forma que o cinema as imortaliza como paisagens imutáveis.
Em Contadini del Mare, o mar espera o cardume se reunir. A cartela de início já deixa claro que de Seta encara nessa pescaria uma representação de algo maior, da luta metafísica entre vida e morte, representada num processo coletivo de trabalho. Os agricultores do mar, como no título, se lançam no mar ainda no amanhecer, nas sombras do céu entre o azul e o acinzentado, e se reúnem diante da armadilha dos peixes como pistoleiros de vigília em um faroeste de tocaia. Sob o sol que nasce e já pune com o calor, visto pela câmera em todo sua força suando as testas dos trabalhadores, os pescadores conversam, dormem, preparam as redes, esperam.
Até que os peixes chegam. A pesca do atum, já anunciada desde os créditos, não antecipa o tamanho majestoso do animal encurralado pelas redes; quando os primeiros peixes se agitam na armadilha, as águas entram em fúria, espirram para todos os lados, numa agressividade que antecipa quase como um monstro místico saindo da sua toca, algo egresso da literatura pulp, dos peplum, os sandália-e-espada italianos, do Hércules de Cottafavi e Bava; da aventura, em suma. Diferente de suas contrapartes mitológicas, ficcionais, os algozes da besta aqui não são um indivíduo apenas, mas um grupo em atividade, admirados justamente pela força de seu trabalho. Os braços de dezenas de homens se tensionam, músculos firmes puxando as redes, tentando alçar da água aquilo que ainda não vemos. E quando o primeiro atum é alçado da água, vemos seu tamanho, vemos o porquê daquele esforço, a escala da tarefa. E a derrota começa a se tornar clara quando os homens começam a pinçar suas presas com o ferro, e depois com os braços que tentam sustentar o peso absurdo, os puxando para o barco onde os atuns vão se debater até morrer.
Não é uma vitória heróica. Aos poucos, as vozes dos homens ficam mais intensas, nunca discerníveis, em meio às águas em revolta e os peixes que lutam por instinto. É quando a água vai se tornando vermelha, e mais e mais vermelha, até ser tingida por inteiro pelo sangue dos peixes mortos. A câmera de de Seta filma todos esses detalhes, sobretudo como uma conquista espacial, rigorosa, que termina ainda como um trabalho a ser contemplado, é claro, mas sob o signo de um mero alimento que se torna quase um cadáver de guerra pela forma que é registrado. Não é uma sequência tão distante da cena da caça de A Regra do Jogo, e Renoir também entendia como de Seta que esses dados civilizacionais revelam algumas das particularidades mais violentas que temos tanto no palácio de influências e teatro social do francês quanto nas batalhas maiores que a vida do homem contra a grande natureza no italiano. Mais um dia de trabalho termina, e os homens voltam em seus barcos no pôr do sol, avermelhado, vasto, para relembrar que essas imagens espetaculares de natureza e esforço são o que os habitantes daquela ilha têm por cotidiano.
Em Parabola D’Oro, o solo está aberto à colheita. Os homens e mulheres carregando suas mulas e mexendo na terra estão em primeiro plano, quase que refletindo a cor do solo que pisam; se em Isole di Fuoco e Contadini del Mare o céu varia entre um azul acinzentado, mais escuro, e o avermelhado que corta esse céu mais profundo, aqui em Parabola D’Oro temos o céu típico de um meio dia, de um azul claro absoluto, sem nuvens, quase que pensado por um pintor para contrastar com o dourado que esquenta seus habitantes. A janela horizontalizada é explorada novamente por de Seta à sua disposição para vastidão, o horizonte natural ao fundo, por vezes sem colinas por perto, infinito. Quando as colinas surgem mais imponentes, estão sempre distantes, compondo a geografia da terra, como se intocadas. Aqui ao perto, humanos trabalham.
Nos planos gerais fica ainda mais claro o quanto esse é o filme do diretor que mais se assemelha a um faroeste; é como se estivéssemos assistindo à obra-prima O Homem que Luta Só (1959, dir. Budd Boetticher), caso os Estados Unidos tivessem uma noção menos individual, mais coletiva, de ideais de trabalho. Visto de longe, assistimos a lenta jornada e o assentamento de trabalho como comunidade, o trabalho dos homens e mulheres diante da terra e da colheita. Nos letreiros, de Seta como sempre ressalta a importância e a dificuldade do trabalho, e novamente essa jornada vai aos poucos ganhando seus contornos particulares, do reconhecimento do solo, passando pelo olhar mais atento, pela separação do trigo, pela manipulação do arado que levanta a poeira da terra, e pela peneira dos grãos que vai render a parábola de ouro. Se de Seta é “um antropólogo que fala com a voz de um poeta” [2], como disse Martin Scorsese à propósito da restauração dos filmes do diretor, aqui é onde seu movimento fica, para mim, mais claro: o movimento do trabalho é registrado, o descanso em meio ao trabalho é registrado, e o que é a conclusão do dia com os grãos sendo separados vira um gesto místico, a solenidade do ritual sem esquecer da brutalidade das relações sociais trabalhistas. Vittorio de Seta sabe ser o cineasta do épico e do suor sem discerni-los.
Em Surfarara, o subsolo se prepara para ser explorado. Rodado em 55 em uma mina, tudo começa também no amanhecer, na jornada dos homens ao trabalho. A cartela anuncia que nas perigosas minas de enxofre, cuja canção dá título ao filme, os homens trabalham e desafiam a morte, na “tragédia invisível” que o cineasta já anuncia nessa cartela, enquanto estamos vendo a base do solo da mina na escuridão quase completa. O primeiro movimento para que testemunhemos em detalhes esse trabalho e essa promessa de destino está na própria limitação técnica e espacial autoimposta: suas imagens e sons foram captados ao vivo, em microfones diretos, quinhentos metros abaixo da terra. Entendemos os procedimentos e a forma na qual eles se propagam pelo espaço, como os homens chegam até lá, como se comunicam, e qual som as minas de enxofre emitem em resposta.
Novamente o amanhecer, novamente o caminho ao trabalho, até a descida dentro da escuridão total. A baixa iluminação dentro da caverna cria uma disposição ao chiaroscuro, nos tons terrosos contrastados pela luz direta nos rostos e braços dos mineiros, na própria dificuldade de mobilidade da proposta do filme. Sentimos essa geometria de clausura pela câmera numa mesma janela horizontalizada, antes tão disposta às vastidões e paisagens, agora povoada pela escuridão e pelos recortes de corpos, pelos rostos ocasionais cercados pela ausência de luz e contexto, embalados pelo som das picaretas e das rochas enormes, pesadas. O diretor tem um movimento muito perspicaz de isolar a ação dos mineiros por breves minutos no meio do filme, ao enfocar o trabalho coletivo das mulheres em casa, cuidando do funcionamento do vilarejo, das roupas a lavar nos tanques e a secar nos varais, das mesas enormes e cheias de uma comunidade que não para enquanto seus homens vão para a obrigação distante, pontuando bem que para o diretor essas ideias de trabalho são extremamente complementares, distintas em escopo mas idênticas em importância, uma montagem dialética sem soar ilustrativa em demasia.
E quando voltamos à mina, voltamos a uma tragédia anunciada. O som das máquinas se intensifica, as pedras rolam para os carrinhos, os homens falam mais alto, uma cacofonia enervante no peso daquela ação que se torna mais e mais complicada. A imagem acompanha essa dificuldade: apresentados todos os mineiros em suas respectivas posições no espaço, definidos com precisão pelo diretor, vemos a trajetória de cada um dos grupos separados, um na máquina perfurante, o outro no ferro, o outro nas pedras no carrinho, o outro na escada – e por aí acelera, e acelera, e acelera o processo. A montagem começa a ficar frenética, algo nada característico desses filmes, cortes cada vez mais rápidos, ações mais e mais fragmentadas, até que vemos alguns planos por pouquíssimos frames. São eles: homens que empurram um carrinho, pedras que caem, o rosto de um homem que olha para a câmera, um homem que sai do quadro, homens que tentam segurar um carrinho, o rosto preocupado de um mineiro que parece cair, vozes falando para o abismo pouco iluminado, e um poço vazio cheio de poeira. Todos esses oito planos, em conjunto, duram menos de três segundos.
E então tudo para. Vemos planos agora pacientes do rosto dos mineiros. Vários, em sequência, todos em silêncio. O espaço se torna quieto, o trabalho para, as máquinas param. Os homens naquele momento só velam o morto sem rosto. Sem rosto porque de Seta não mostra um corpo: se o trabalho é coletivo, se o esforço é de grupo, então a vítima não é individual. Uma imagem sugestiva, sem ao menos mostrar a morte, que consegue ser tão violenta quanto o atum abatido de Contadini del Mare.
No retorno para casa, numa estupenda fusão da caverna da morte para o campo vasto banhado pelo Sol que vai embora, há o caminho pelas paisagens, o mesmo pôr do sol, mas um silêncio sepulcral. Retornamos ao vilarejo e vemos o céu avermelhado, as casas escurecidas, em sombras quase absolutas, num dia atravessado pelo desastre cotidiano, num ritual de respeito aos mortos – porque nesses filmes de de Seta estamos falando sempre de coletivos.
O alcance histórico desse registro e suas formas estéticas encontra rastros no que o cinema italiano tem de mais contemporâneo: de Seta filma uma mina diante do trabalho como Joana Torgal e Rodrigo Pimenta em Wolfram – A Saliva do Lobo, e realiza uma captação de imagem com som direto nas profundezas como Michelangelo Frammartino em Il Buco. Em Wolfram, a mina vai sendo aos poucos descontextualizada, se tornando abstrata, filmada como máquina que se despedaça e se recompõe numa sideração impressionista, menos humana, mas ainda numa ideia de ciclo dos componentes terrenos que obedecem a alguma lei natural. Em Il Buco, as cavernas vão guardando sons perdidos, a cada momento mais descoberta, com a propagação de elementos naturais cuja origem não registramos com precisão pela imagem, mas intuímos pela espacialidade do som direto – enquanto a montagem de Frammartino compara essas descobertas e esses espaços a outras paisagens, naturais na solo italiano ao redor, humanas dos corpos que ali nascem, morrem, se transformam. São filmes que repensam de Seta da forma como repensam um monumento natural, uma paisagem que se transformou mais ainda guarda seus rastros.
Poucos anos depois de de Seta filmar seus curtas, Robert Drew tornava-se um expoente do cinema direto nos Estados Unidos, escola estética continuada e expandida por Frederick Wiseman e os irmãos Maysles com Charlotte Zwerin, de um cinema preocupado em registrar momentos de intimidade no calor do momento, de instituições, políticos, cidadãos, munidos com câmeras menores de 16mm rodados em preto-e-branco, trazendo filmes brutos cuja matéria prima era o presente filmado sob o som direto e a câmera que se adaptava às adversidades da cena. Em 1955, mesmo ano no qual de Seta realizava Contadini del Mare e Parabola D’Oro e Surfarara, Drew largou seu emprego na revista Life e estudou por um ano na Universidade de Harvard buscando entender o porquê de, obviamente na sua visão, “documentários serem tão bobos” [3], e o que fazer para deixá-los mais interessantes. Lá, enquanto estudava sobre história americana, entrou em contato com a literatura, e entendeu que acharia seus filmes em um “teatro sem atores; seriam peças sem dramaturgos; seria como noticiar sem um sumário ou opinião; seria a habilidade de olhar para as vidas das pessoas em momentos cruciais nos quais você poderia deduzir certas coisas, e ver uma forma de verdade que só se poderia conseguir diante da experiência pessoal.” [4]
Nesse contato com a literatura, podemos observar a mesma disposição para um realismo que puxa para a individualidade da experiência e as descrições minuciosas de um ambiente que o mesmo realismo como movimento fazia na literatura através de escritores como Flaubert e Stendhal, como abordou Auerbach em seu Mimesis [5]. A descrição contextualiza os espaços, e a jornada desses protagonistas era diretamente influenciada por eles, e não poderia ocorrer senão naquela época – um esforço parecido com o qual Drew e seus colaboradores filmam John F. Kennedy às vésperas das eleições de seu partido em Primárias (1960). Nessa busca, Drew estava à procura de um filme “verdade”, de uma experiência fidedigna com o que acontecia no real, algo sintetizado pelo ensaísta Jean-Claude Bringuier, citado por Silvio Da-Rin, sobre a câmera do fotógrafo Richard Leacock, cinegrafista de Drew: “O ideal, como se vê, é o desaparecimento mesmo da câmera, do olhar, sua ausência. (…) Eu acredito que o sonho de Leacock e daqueles que trabalham como ele é um cinema sem cinema, um puro olhar sem suporte.” [6] Se isso é completamente fidedigno aos dizeres e imagens de Drew e Leacock (eu mesmo discordo em partes), não vem ao caso; partimos da ideia que Drew e seu cinema direto filmam a realidade sem rodeios, com mínima intervenção na ação.
O que escapa a Drew, no entanto, é justamente o cinema de Seta; concomitantes à esse estudo e descobertas do cineasta americano, o italiano rodava seus dez documentários, que vieram a ser conhecidos em conjunto como O Mundo Perdido, um título apropriado para um retrato de práticas que pouco depois das filmagens foram modificadas – ou totalmente extintas, como no caso da pesca de peixes-espada. São filmes que ficam numa dimensão muito palpável do retrato realista de costumes, hábitos, geografias e espaços de uma terra muito específica e muito cara para seu realizador, mas que não guardam semelhanças ao iconográfico e às experiências formais do cinema direto, mesmo que seus métodos de produção sejam similares na ideia de documentar através de som direto, de gestos, de comportamento, sem narração, sem ênfases verbais. Filmando ele mesmo, com luzes naturais, trabalhando com paisagens sonoras do próprio ambiente, de Seta cria um céu sobrenatural no gradiente entre azul e vermelho, o cinzento dos campos em fúria, o sepiado dourado da colheita; povoando esses lugares, homens e mulheres que trabalham a terra, que puxam seus barcos, que guardam as roupas do varal, que esperam. Lá fora, o vulcão grita, o mar se revolta, a mina estremece, o campo é agitado. Todo esse realismo guarda em igual medida a aventura.
Inspirações e diferentes realismos à parte, na literatura Flaubert retratou Emma Bovary alienada de seu contexto como alguém que procurava aventura e encontrou monotonia, enganada pelo romantismo; o escritor francês lamentava que a aventura havia se perdido e se tornado realista na matéria-prima do mundo, e que apenas o estilo poderia o redimir. Nesses filmes de Vittorio de Seta, essa aventura sob métodos realistas retorna como num ritual, já que sempre esteve por aqui. Basta olhar para um grupo que se lança ao mar com sonhos de retorno, um vulcão em erupção para avisar de seus limites, e saber que quando a câmera aponta para a natureza e para um coletivo, há paisagens e mistérios suficientes para toda curiosidade do mundo.
Referências:
[1] “É através da práxis, apenas, que os homens adquirem interesse uns para os outros e se tornam dignos de ser tomados como objeto da representação literária.” LUKÁCS, Gyorgy, Ensaios sobre Literatura – cap. 2, Narrar ou Descrever.
[2] SCORSESE, Martin – Film Notes – https://festival.ilcinemaritrovato.it/en/film/parabola-doro/
Não se trata de uma questão de “natureza”. A “natureza”, tal como é mais frequentemente entendida, é uma abstração, assim como a ideia de o homem estar perante ela. O que é real é a terra, o mar, o céu, a areia, os pés no chão e a respiração, o cheiro da grama e do carvão, o crepitar da eletricidade, o enxame de pixels… Não há real a não ser a terra, com todos os seus cantos e recantos (“Paysage avec dépaysement”, Jean-Luc Nancy)
“Para que a montanha possa representar o papel de Monte Análogo é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”
Quando soube que não poderia mais praticar alpinismo, paixão recentemente adquirida através do irmão, René Daumal decidiu escrever sobre a busca de um grupo de aficionados como ele por uma montanha impossível. Tuberculoso, o poeta deu início ao manuscrito de O Monte Análogo: Romance de Aventuras Alpinas, não Euclidianas e Simbolicamente Autênticas em 1939, mais ou menos quando recebeu recomendações médicas para desfrutar do ar da montanha, mas abdicar das escaladas. “Se não posso escalar as montanhas, irei cantá-las daqui de baixo”, e assim fez até sucumbir à doença em 1944, deixando o livro inacabado.
Segundo o narrador de Daumal, o Monte Análogo é um elo entre o mundano e o divino, seu cume se eleva para além do céu e sua base se ramifica pelo mundo dos mortais, oferecendo “uma porta visível para o invisível”. O conto, entre tantas outras coisas, é uma alegoria simbólica sobre a ascensão espiritual e o desapego material, mas penso nesse visível que se abre ao invisível para além da montanha: é possível acessar o imaterial através da paisagem?
Jean-Luc Nancy vai dizer que a paisagem é o lugar do distanciamento e da estranheza. Não pode ser povoada por deuses, entidades, forças políticas ou teológicas, pois deixaria de ser paisagem para se tornar “cena”. Nessa dissolução de presenças, ela passa a ser toda a presença em si, convocando o que Nancy chamou de “sentido da paisagem”, uma sensação ou sentimento de ausência “justamente porque aqui, neste ‘aqui’ da paisagem, ele não consiste em si mesmo, mas na sua abertura” – um esvaziamento que “se abre sobre nós”, colocando-nos não diante da paisagem, mas dentro dela.
Tente se lembrar se alguma vez já sentiu a desolação inexplicável e inescapável proporcionada pela visão de um horizonte distante, o céu pálido se derramando sobre o relevo ao cair da noite, ou ainda, pelo rumor vegetal da mata fechada numa manhã silenciosa. Essa inquietação (quem sabe próxima do unheimlich freudiano) vem à tona quando tomamos consciência de que, superada a representação, a paisagem é pura suspensão. O trabalho da artista visual e realizadora inglesa Emily Richardson pode ser descrito como um prolongamento desse gesto de constatação.
Em seu primeiro filme, Redshift (2001), Richardson vai estabelecer o leque de procedimentos que a acompanham desde então, como o uso da bitola 16mm, longas exposições, câmera fixa, planos longos e técnicas de animação em time-lapse. É um cinema rítmico, dos desdobramentos da luz, do tempo e do movimento, mas para além disso, é um cinema da natureza assombrada e viva.
“Redshift”, ou “desvio para o vermelho”, é um termo usado na astronomia para descrever o cálculo da distância de objetos (como estrelas) através da distorção do comprimento da onda de luz que eles emitem. No filme de Richardson, esse tema é replicado nos corpos celestes distorcidos pela longa exposição e pelo time-lapse, que faz com que pareçam halos ascendendo (ou descendendo) pelo firmamento. Massas densas de névoa e de nuvens se movimentam sobre a silhueta de uma escarpa e pontos luminosos atravessam de um lado para o outro na linha do horizonte enquanto a trilha sonora de Benedict Drew, colaborador de longa data nos trabalhos da diretora, vai compor com ruídos e estática a imagem de um mundo eletrizado, desperto na escuridão.
Leio a descrição do filme que fala em tentar “transmitir a vasta geometria cósmica do céu noturno e fornecer uma perspectiva alterada da paisagem”, mas acredito que há algo em Redshift que não pode ser sintetizado por palavras como “geometria” e “perspectiva”, por mais que consiga enxergá-las ali. É algo do domínio sensorial e sobrenatural – um ritual animista dissimulado pela técnica.
O mesmo ocorre em Aspect (2004), terceiro filme de Emily Richardson. A luz do sol escapa por entre folhagens e galhos de um bosque lembrando as intervenções de Brakhage respingadas quadro a quadro. A câmera paira sobre a vegetação para logo em seguida penetrá-la obstinadamente com movimentos de zoom, e é quase subjetiva, como se incorporasse uma presença criatural. Aqui a passagem do tempo vai conduzir os efeitos práticos de Richardson. As sombras projetadas dançam, árvores se agitam num cenário que acomoda tanto a fábula quanto os primeiros experimentos no cinematógrafo. O desenho de som, mais uma vez de Ben Drew, foi realizado a partir de “fragmentos de sons florestais tipicamente não registrados, formigas no formigueiro, o vento varrendo o solo da floresta e o estalar de um galho”. Amplificados e reconfigurados, esses registros sonoros contribuem para a atmosfera de horror folclórico que parece percorrer a superfície de Aspect.
No conjunto de sua obra, Emily Richardson vai ainda lidar com outras configurações de paisagens como ruínas, ruas desertas, campos de petróleo, instalações militares abandonadas e conjuntos habitacionais. A presença humana nesses filmes é quase nula (salvo os moradores de uma antiga torre residencial londrina em Block, de 2005) e é anunciada através de vestígios mais ou menos visíveis, desde as luzes ectoplasmáticas de faróis em Redshift aos escombros de um radar experimental usado na Guerra Fria em Cobra Mist (2008).
Quis falar de Redshift e Aspect porque acredito que são filmes de manifestações do invisível no visível. É difícil nomear as sensações que mal se traduzem no decorrer da minha experiência com as duas obras, mas fico com o “inquietante” porque diz respeito a um “desassossego que impede o repouso”. Richardson nos coloca em estado de alerta, mas também em contemplação. A montanha, a névoa, o céu noturno, o chacoalhar de galhos e os ruídos mais profundos da terra, tudo pode ser assustador e maravilhoso ao mesmo tempo, se prestar bastante atenção.
Arquivo é a palavra-chave deste filme. Seja na ideia que permeia a própria produção, pensada como herança às novas gerações do povo Hunikui, seja pelo uso de imagens antigas, revisitadas para ilustrar a narrativa (através da chamada “montagem de atrações) ou para ganhar novos sentidos a partir de uma leitura de dentro, até a busca por documentos vivos, pessoas que não só contam a história de seu povo, como a tem marcada na pele.
O filme começa com dois homens adultos, sentados ao pé de uma árvore de tronco robusto. Um deles pede atenção ao que vai ser dito dali em diante, com postura de autoridade: “Nada de virar os olhos!” Mas, apesar do tom, o que vem a seguir é o relato da existência da etnia Hunikui no tempo, com reflexões sobre tempo histórico, memória, imagem e arquivos. “Como é que a gente fazia pra viver antigamente?”, pergunta um deles.
Os Hunikui dividem a história em cinco períodos: tempo da maloca; tempo da correria; tempo do cativeiro; tempo dos direitos e tempo presente. O diretor-narrador, Zezinho Yube, nos conta que, para falar do tempo da maloca, quando todos os hunikui vivam juntos de seus parentes, é preciso chamar os mais velhos, aqueles que guardam a memória daquela época.
No processo de rememorar esse tempo antigo, examinam-se também as técnicas de pesca, de caça e de fazer fogo. Como podiam os mais antigos pescar e caçar usando apenas flechas, sem os facões e terçados que os brancos trouxeram? Relembram também o episódio que gerou o nome dado a eles pelos nawá (aqueles que não são índios), no desentendimento mútuo: duas crianças matavam morcegos e os nawá perguntaram o que elas estavam fazendo, ao que os meninos responderam “kaxi (matar), nawá”. O resto é história.
Na linha de produção de documentos vivos, a floresta que os Hunikui vem reconstruindo à sua maneira no tempo presente se une aos antigos do tempo do cativeiro, que tiveram a pele marcada pelo dono do seringal em que trabalhavam. Como bois, como propriedade, aquele senhor hunikui que mostra o braço marcado e parece irritado quando conta que todos os nawá pedem que ele mostre aquela marca, é respondido no fora de quadro: “é porque esse é um documento forte”. Quando a canoa no ancião se afasta, vemos a câmera montada num tripé, dentro de outra canoa.
Aliás, os Hunikui estão muito conscientes sobre como e porque é importante produzir imagens, tanto quanto um dia foi importante produzir livros (Zezinho conta que escreveu de seis a sete deles). É desse entendimento que vem a frase que nomeia o filme, quando o pajé diz que já virou imagem e está espalhado e sendo visto pelo mundo, sua consciência sobre a importância do audiovisual e da sua transformação em imagem diz muito sobre o lugar que o cinema ocupa naquelas comunidades.
Quando o filme se ocupa de descrever o tempo presente, o que vemos é uma espécie de making of: o microfone sendo revelado, o set das entrevistas sendo filmado de dentro, uns ensinando aos outros como operar a câmera, a comunidade reunida para assistir videoaulas e, principalmente, esse retorno a imagens antigas nas quais eles podem revisitar costumes, como por exemplo fazer fogo a partir da fricção de duas varetas numa superfície de madeira. “Assim já sabemos o que fazer quando o isqueiro acabar”, foi uma das frases que mais marcou ao assistir esse filme.
Chama atenção o movimento narrativo, que parte do tempo das malocas em que se vivia sem o conhecimento da existência dos nawá, seguido pela vida em fuga do tempo da correria, até a fixação forçada do tempo do cativeiro, que desmobilizou os parentes e foi gradativamente os fazendo esquecer de suas festas e de sua língua; daí então para no tempo dos direitos, lá pela década de 1970, encontrarem na ideia de organização do trabalho dos brancos a força para reivindicarem seu território; e então o tempo presente, que voltou a movimentar e reaproximar os hanikui, visando a recuperação de suas antigas formas de sobrevivência.
Esse movimento de produzir uma linha do tempo, atravessada por imagens produzidas pelos nawá, agora ressignificada pelos hunikui através do manejo das técnicas de produção e montagem com imagens, é o grande prazer deste filme. É o que nos move a acreditar que o audiovisual como assunto da educação popular é algo urgente e necessário. E que pode sim nos ajudar a produzir outras versões de histórias tão (pouco) conhecidas como a dos genocídios dos povos originários e sua luta pela retomada de suas antigas formas de viver no mundo.
É comum que vejamos se atribuírem às lentes concernidas com os “mundos à margem do humano” a categoria de POÉTICAS, ou ainda de SEMIDOCUMENTAIS, como se a desvinculação das tramas do desenvolvimento das emoções-ação, cujo centro é o indivíduo, significasse, como no mundo medieval, uma inclinação lunática aos pormenores astrais ou elementais capaz de desviar o olhar e o pensamento (e consequentemente a alma e o raciocínio social) em direção aos signos embriagados do mundo fenomênico. Mas um cineasta preocupado com a chuva, com a confecção de sinfonias geométricas citadinas, com a microscopia das algas ou com a população mística das neblinas não está mais próximo de um “cineasta experimental” porque a sequência de suas relações com o filmado pressupõe um fio conceitual-sensorial que melhor o alocaria num museu, galeria ou festival documental.
Ainda que não neguemos que o cinema é arte massivamente atada ao desenrolar mais ou menos concreto de episódicas humanas, isto não significa que o empréstimo de seu olho ao que indivíduo algum (que não tenha intenções estritamente científicas) se debruça, modo comum, a contemplar, lhe confira um princípio “passivo”, de registro funcional-informativo, onde nas imagens moram os espécimes fantásticos, e nos espectadores a recepção antropológica-boquiaberta. As operações do close-up, do plano de longa duração, da câmera-xamânica (simulação da vista de animais), dos ângulos improváveis, gloriosos ou arriscados, alados, todas essas tecnologias pontífices ao mundo que não alcançamos podem, com efeito, ATRIBUIR UMA VIDA ao que se (a)credita ter autonomia, repulsões, necessidades, meios, aptidões, desejos por si só concentrados na selvageria de sua existência.
N’O Planeta Azul (Il Pianeta Azzurro, 1981), de Franco Piavoli e (sua mulher) Neria Poli, a hipótese de que haja uma AÇÃO DESEJANTE inerente às substâncias todas da Terra, seus animais, elementos, fenômenos físico-ou-químicos, suas horas, “acidentes”, ritmos e estações, faz do enquadramento desse “lugar onde o olho não para para olhar” uma prece ao querer metamórfico e autônomo dos viventes que são infinitamente mais populosos que nós, nesta Terra. Com uma sonoplastia psicodélica de bolhas espaçadas que logo nos mergulha num aquário epitelial em que tomadas oceânicas, close-ups de rochas sob a luz lunar ou de superfícies saturadamente safiras remetem à falsa imobilidade alienígena de tais submundos à vista comum, os diretores nos implantam um aviso de boas-vindas tão sentencial quanto àquele que figura no Inferno de Dante: (parafraseamo-lo) “Deixai todo o saber até aqui conhecido sobre as tecnologias de vida, vós que entrais na dimensão azul”.
Ainda mais impressionante que sua catalogação das maneiras de preservação, reprodução, invenção e entropia inerentes à multiplicidade arrebatadora de organismos (captadas como se um burburinho de vivacidade por ali percorresse, incitando micro-primaveras de fecundação e renascimento) é a semelhança que essas formas de vida se instalam no nosso reconhecimento de processos físicos intimamente ininterruptos à fisiologia humana, trazendo ao olho que tudo aquilo assiste em velocidade e sons selvagens um “entendimento” de fato menos racional que pelas entranhas, uma acoplagem da força natural (de satisfação à sua própria natureza-crescimento) à nova linguagem das forças de nossos órgãos e membros, cujas realidades sabemos cada vez mais sem a necessidade integral do alcance ocular.
Em outras palavras: o filme se passa TAMBÉM pela conexão-nascimento de outras faculdades de nosso corpo entre si. Filme-molecular.
O “azul” a que ele se refere é, ademais, o do encaixe misterioso que se tece entre uma semântica de desejos que modularão as propriedades analógicas de seus corpos no encontro do percurso à coisa que os magnetiza. Todos os seres que o casal filma estão em movimento de saciação, de devorar, na plena languidez que mais os caracteriza justamente por pulsarem numa caça vocal, espaçosa, aparecidos e indômitos. Como se a câmera assumisse o papel de “madrugada”, ou ainda de luar, fomentadora das delícias subcutâneas – é de se perguntar como muitas das intimidades foram alcançadas, mesmo com o zoom –, ritos de transações cifradas em seus movimentos mas claras em suas voluptuosas arquiteturas irrompem, os músculos e geometrias cantarolando um hábito quem sabe quase indecente, não porque contenha obscenidades, mas porque não lhe acontece dar vez a nada que seja de ordem pública, traduzível.
O corpo humano desvela boxeadores vulcões, como se expelisse gases involuntários que não são tão literais… mas antes contestações-contrações oriundas de habitantes nada coadjuvantes daquele interior. A tecelagem de bandos de minhocas entre folhagens demonstra curvaturas que advém de impulsos-choques capazes de lhes percorrerem o corpo inteiro, tão ondulantes e potentes quanto as curvaturas do mar. Aos 37 minutos., uma fileira altiva de patos desfila tranquilamente sob o sol, diante de uma bodega em qualquer interior italiano. 8 minutos depois, aquele bar, que servia de banco de prosas entre dois idosos, se transforma num relâmpago de encontros barulhentos entre camaradas, jogadores, amantes e políticos, e sob a noite e madrugada adiante os destinos se repetem e se diferenciam, engenhando histórias que são próteses incandescentes de seus heroísmos enquadradas pelo jorro de luz e vocalidades que os mantém bem-aventurados.
Os diretores se evadem de maneira inquietante da presença da câmera sobre a matéria-filmada, mesmo se cogitamos aquelas que, simulando no olho da lente um olho de peixe-morto, se entregam ao corpo estranho em “radicalidade”.
A câmera d’O Planeta Azul parece fazer parte do ar. Assume nível microbial. Pior: ela é o tempo. Assume uma estase cristalina, um retrato de certa eternidade, e simultaneamente demonstra ser o alimento que traz a voracidade inventiva ao corpo, à língua, às afinidades litúrgicas que o balanceiam com suas outras naturezas na transitoriedade. Não há, entretanto, adesão ao fanatismo hiper-criativo de uma mãe-gênese: a umidade do planeta água demonstra os suores, os escorregos, os uivos e lágrimas, os saboreares descontrolados, as excreções, emulsões protetoras, os ácidos e névoas – estes seres extravasam as emergências que conduzem ao casulo que os trará, em seguida, de volta a travessia à certa totalidade liberta. Seus líquidos podem assim o ser pois são como lamentos pela inteireza que os falta, ainda que sejam cindidos por uma pele traiçoeira, oposta à unidade que deveriam performar, membranosa demais para que sejam isolados.
O hermetismo atuante dessas orquestras à beira da luz, não solar, mas da razão que implicitamente afirma os objetos a que é necessário emprestar o olhar, prolifera “visões sem os olhos”, tatos que enxergam, equilíbrios feitos por ecolocalização (projeções sonoras que sobrevoam e são devolvidas ao emissor, anunciado distâncias estrategicamente), cotovelos que medem o impulso de escavação. Um corpo de poderes dentro, ou melhor, por toda a extensão do corpo põe em orgia as fantasias mutantes com que somente o gênero da ficção-científica ou da ação podiam sonhar. Quanto mais de perto se permite assistir à procissão dos membros díspares de nossos corpos (de habitantes do Azul), mais uma sazonalidade propícia à cada mistério por trás de tantas partes para tão pouco tempo assegura essa “assemblage” (montagem) de corporeidades empilhadas numa intenção de ser só. Somos mais quiméricos do que qualquer especismo possa separar.
A intensificação da sonoplastia quando nos deslocamentos rente aos olhos de sapos acasalando ou a centímetros do festim de uma aranha sobre sua libélula-presa, essa umidade das fusões, golpes e proporções que nos remontam ao “artístico” dessas peles e patas muito antes da arte “nascer” termina por cruzar de vez as barreiras da razão, reforçando a estridência mágica quase insegura deste cinema, posto que seus coaxares, zumbidos, grunhidos e pios ganham dimensão invasiva cada vez mais enlouquecedora ao espectador que não se disponha a ser rachado para deixar outras comunicações penetrarem seu campo de possíveis. Tudo o que a memória computa, afinal, a ela é instrumental.
Mesmo quando as cenas se deslocam das naturezas animais às climáticas, humanas ou domiciliares, o apreço à invasão dinâmica dessa força de assimilação entre sons, texturas, umidades e luminosidades cria fantasmáticas e povoamentos às matérias mais sonâmbulas ou esquecidas. Piavoli e Poli dão justa vida aos acúmulos catárticos de chuva sobre vidraças, desertos de poeira historiográfica, musgo, fungos gráficos, ferrugens esfomeadas, objetos abandonados de aura totêmica, uma estratificação de sobrevidas tão interativas entre si, que seus ressoares criam um “invisível visível”, uma clareza territorial mais vestigial e mais elétrica, mais extática e condutora que qualquer arsenal de fiação em curto-circuito.
Uma vida cogitada continuando muito além de nossa humana extinção fica perfeitamente plausível, mas melancólica, se não há quem as capture, buscando nelas o mínimo interferir. Um esplendor que somente nossa simulação astronauta pode abraçar: pois terá nos considerado (ficticiamente) estranhos a esta heterogeneidade (contraditoriamente homogênea) azul.
Do fogo que incinera e da água que engole os amantes – é a natureza que consome o amor nos dois últimos filmes de Christian Petzold. Undine e Afire misturam o real com o fantástico para assombrar paixões imprevisíveis, cujo inescapável destino, no entanto, é o de se fundir, tragicamente, à paisagem natural.
Mesmo que por acaso, a própria estrutura dos filmes de Petzold emula os mistérios da natureza: da premissa inicial – seja ela o absurdo de uma mulher que diz precisar matar o parceiro que tenta acabar o relacionamento ou o clichê dos amigos que vão passar um verão à beira mar – a narrativa muda de direção sem mais explicações. Mudam também o ritmo e o tom: entre a repetitividade de uma rotina que ocupa a cidade cinzenta e a monotonia do escritor que, rodeado de belezas naturais, se limita à tela do computador, de repente, explode a tela em sopros de romance e rajadas de tragédia.
Em Undine, Berlim até parece ser protagonista: historiadora, a personagem de Paula Beer conduz visitas guiadas por pequenas maquetes da cidade, que, evocada a todo momento, pouco ocupa o foco da câmera. Entre as visões dos cartões-postais da capital, que só aparecem enquadrados pela janela de Undine, é no resquício de pântano logo ao lado que a magia do conto se constrói. O caminho estreito e os trilhos dos trens que o casal percorre com um andar sincronizado – e, rapidamente, apaixonado – leva a uma paisagem bucólica mas não menos acinzentada que a cidade.
Entre as árvores, uma barragem industrial aonde Christoph leva Undine para um mergulho. O absurdo de um encontro nas profundezas de um rio cercado por concreto se transforma em fantasia quando o bagre gigante – apelidado por Christoph e seus colegas de Big Gunther – aparece ao lado de uma inscrição do nome da própria protagonista em uma coluna submersa. Todo mistério é pouco para Christian Petzold em Undine.
O cenário de Afire é menos excêntrico, misturando clichês da tradição dos cinemas de verão. Uma dupla de amigos se vê perdida, com um carro quebrado, em uma floresta desconhecida, há alguns quilômetros da casa de praia onde passariam as férias. Terror adolescente: os sons silvestres se aproximam quando o mais inquieto da dupla é deixado sozinho no meio de uma mata prestes a incendiar-se. Quando, finalmente sãos e salvos, chegam à casa, o drama que se instala é mais próximo dos contos morais de Éric Rohmer do que dos contos fantásticos em que se inspiraram o filme anterior.
A diferença é que as praias do diretor francês não serviam muita função além da cenográfica. Em Petzold, no entanto, a tragédia ambiental é anunciada desde o título – que, em sua versão original, Roter Himmel, traduz-se literalmente como “céu vermelho”. O som dos helicópteros de bombeiros que não se veem instalam a agonia do que estaria prestes a acabar com os dilemas morais e casos amorosos que calmamente surgiam ali.
Quando os personagens se dispersam na mata incendiária, é novamente na figura de animais que o mistério da tragédia em curso se personifica. A imagem dos dois pequenos javalis queimados talvez seja a mais memorável do filme, sem que seja necessária uma interpretação grotesca sobre a metáfora que Petzold certamente não estava tentando criar ali. Como no poema The Asra, de Heinrich Heine – recitado pela Nadja de Paula Beer e recebido com surpresa pelo Leon de Thomas Schubert – aquele seria o destino dos amores recém formados: a terra “daqueles que morrem quando amam”.
Quando Undine é engolida sem retorno pelas águas do rio em que vivera o amor com Christophe, a fantasia se desfaz em uma realidade sombria, em que paixão não é o bastante para transformar em realidade o ser mágico do mito que dá nome ao filme. Assim como a tragédia do fogo não é o bastante para reacender a breve paixão de Nadja e Leon. O que resta é a lúgubre magia do amor, que se foi, e a paisagem, que fica, impressa nas imagens de cada filme.
A Bíblia, livro do pioneirismo quaker por excelência, é citada no início de O Atalho, filme introspectivo inspirado por Deus, o Diabo, Moisés, Emerson e Thoreau; trata-se daquele trecho da Gêneses no qual, com apascentada fúria, Deus expulsa Adão e Eva do te deum de seus olhos benevolentes e os condena a lavrar a terra com o suor de seu rosto: aqui (no versículo), está tudo consumado, como diria a Medea finalmente sacerdotisa no final do filme de Pasolini; mas para a obra-prima de Reichardt este é apenas o dístico de um duro, áspero, cadenciado aprendizado perceptivo sobre a terra, os rios, as colinas, as texturas e a profundidade de campo a desbravar neste que tem por objeto a proto-comunidade em vilegiatura no deserto, que agora também é uma casa ressoante de cumeeiras ao vento; o método está dado desde o princípio de O atalho: a diretora inventaria corpos humanos e naturais, enquanto que na banda sonora homens cochicham e mulheres sussurram, à espreita pelo que virá; as paisagens contempladas por Reichardt são possuídas pelo pneuma não mais do sopro de Deus, e sim da respiração humana solicitada pela fala diligente, sistematicamente empenhada em conhecer a topografia do lugar que lhes serve de abrigo temporário, mas cujos sulcos e cicatrizes já possuem a presença humana em sua integridade; o barbudo pioneiro de pele bronzeada (o sr. Meek do título original), que nos interpela no meio da escuridão como um rabino de Rembrandt, nos revela que “eu não estou apenas neste mundo, eu vivo inteiramente nele”; eis a chave ou révelateur da tática de Reichardt: o comentário onipresente religa o homem à terra (religare) e o homem ao homem, assim como os passos das bestas de carga, os archotes e as rodas da carroça; tudo é de indispensável valia para nos restituir a parousia deste mundo antigo, cravado na escuridão ou saturado pela ardência dos raios de sol, em todo caso modesto e humilde, andarilho mas saudoso de Casa, como nos mostra esta moça de traços desenhados a crayon magenta que recusa o guisado mas fica com o naco de pão: “Basta-nos”; o cinema de Kelly Reichardt, romântico, indômito e telúrico (mas tudo isto segundo o pianissimo do gesto esquivo que volta a figura humana para dentro, abdicando de seus contornos em nome de um sfumato cismarento de Vermeer em locação natural), é antes de tudo uma épica perceptiva que deve reconduzir o personagem à paisagem como seu habitat apofântico eminente; mas esta aventura não é mais fordiana ou hawksiana, pois se interiorizou; soterrada sob estas colinas arquetípicas, desvela para o homem o seu lugar e o seu tempo videntes: o sostenuto do ritmo, o découpage lento e adstrito ao movimento furtivo do quadro e do corpo, o contracampo distante: o corpo paradigmático não é mais a entalhadura áspera do resiliente Monument Valley, e sim o abscôndito do pastor que recita Daniel, da senhora do rebanho e do filho pródigo, talhados na pedra da colina crepuscular e do versículo vaticinante; o western revisitado por Reichardt é antes de tudo a chance de um aprofundamento ensimesmado da experiência, de um tao absorto na pegada da vaca e do companheiro de jornada, recordando-nos com suas aquarelas devaneantes que o homem, em qualquer horizonte espaço-temporal, será sempre o mesmo, o menino que é pai do homem e a errata pensante, ou a natura naturans processual de Spinoza que Klee retomou numa palestra em Iéna.
Vejamos um exemplo pontual de seu propósito: em um plano decisivo pelos trinta minutos de O atalho, Reichardt desafia a centralidade clássica para nos revelar uma personagem que corre na extremidade do cadre 1:33, resgatado do uso bárbaro que a TV, herdeira genealógica das matinés do passado, havia imprimido a ele: ela viu um índio armado, e se precipita na direção contrária, para fora do centro que os antepassados haviam eleito como a perspectiva ideal para o aparecimento da figura humana; neste trecho, a démarche, os meios e a teleologia do propósito de Reichardt como cineasta aparecem de forma paradigmática: a eclosão da ação acontece por intercessão da aparição da figura humana ou figura tout court, porque para seu olho atento à grandeur nature do detalhe revelador, tudo o que aparece no plano deve ser levado em consideração: cinema epifânico do campo aberto, do confronto entre presenças segundo a noção do contracampo primitivo (Lourcelles) como choque frontal; as consequências, no entanto (na contramão dos raccords sensório-motores do cinema paradigmático clássico) serão anti-climáticas, minimalistas, enviesadas e difusas, e vão se espraiar pelo corpo do filme como uma espécie de infiltração sempiterna cujas coordenadas serão devidamente dadas pela trajetória, um tanto capturadas segundo a norma impressionista de uma empreinte figurativa, das rondas, das pistas e dos rastros digressivos do que nos aparece, dos personagens ao longo de sua peregrinação sobre a cratera do deserto; como as falas entre irônicas e impertinentes de sr. Meek, que atormentam para saborear sua fúria tímida a Emily Tetherow (a garota que viu o índio), os versículos da Bíblia murmurados pelos personagens entre uma siesta e a amarelinha com o invisível da criança comentam, agora numa chave sub species aeternitatis, os acontecimentos narrados para projetá-los em um solilóquio com a prece, e Reichardt talvez seja a mais adequada cineasta para filmar pessoas em contato com a palavra inspirada: em primeiríssimo plano de apoteose silente, um homem lê Jeremias para escapar ao peso morto da duração estagnada, e todo o mundo se reúne em concêntrica compunção para escutar com ele; como o marulho da pedra sobre a água serena, o evento traumático (ou dramaticamente construído, pático) é capturado em suas repercussões intimistas, em um alheamento anti-climático de que as deambulações no cadre, leitmotif magistral do filme, vão estabelecer a norma de ritornello; o índio será capturado, mas as consequências narrativas interessam a Kelly Reichardt como o banho no jardineiro de Lumière ou as aparições do Diabo, metteur en scène à onipotente espreita, em Méliès: a luz, o ritmo sorumbático, o sotaque anasalado do sul e a ação inerte como um escombro na rota das alvíssaras serão a decisiva pedra de toque deste tao destinado às rondas centrípetas de uma terra abandonada pelos favores de Deus, seu amante absconditus que só nos é dado ouvir pelas linhas tortas: a sensação figural, condensação entre percepção e intuiçãonão-categoriaisque Deleuze viu em Bacon, seria antes o moto de tudo; mas estaria sendo infiel a Kelly Reichardt se não observasse com atenção as arcadas e limiares com que nos presenteia em plena locação, lugar malfazejo para a escolha de cadres: O atalho é também uma ode plástica à Natureza, uma prova decisiva de que o corpo humano é a matéria figurativa de argamassa mais elevada de que o cinema dispõe, como neste sobre-enquadramento figurativo dos pioneiros na captura abaixo.
Em certo momento perto do final, O atalho, filme tecido com as agruras digressivas de uma duração impossível (de Deus ou do Diabo: a escolher, caro espectador) nos testemunha o desregramento de todos os sentidos e de todos os signos de que o deserto, lugar da aparição de Deus e das tentações de Asmodeu, é capaz: uma desterritorialização semiótica absoluta; em que sentido? Os pioneiros veem o índio falando alto e em tom trôpego, muito agitado, e concluem que está se comunicando com outros, com estes mesmos outros que virão para trucidar a troupe de Yavé; mas um intérprete benfazejo desfaz o equívoco: ele está rezando, como todos ao longo do filme; pelo raccord da direção do olhar e posição do índio no cadre, qualquer pessoa ainda humana se aperceberia de que ele fala a ninguém, ou a este Totalmente Outro que os incautos podem tomar pelo Nihil, ou Deus; perdidos no deserto, os personagens, porém, não podem ver como são vistos, e se equivocam ao confundir uma prece entoada com fervor com um plano terrorista de fuga ou invasão: o que se dá aqui, induzido pelo cansaço, pela paranoia deambulante e pela digressão extática é uma total incomunicabilidade, a ausência de totais coordenadas que talvez seja a coordenada mor: aquela que nos conduz aos deuses, extravio ontológico por excelência; em seu livro já clássico sobre profetismo judaico “A essência do profetismo”, André Neher nos comprova com índex míticos e místicos cabais que Deus (ou D’us: o impronunciável, interdita a imagem mesmo do significante) é alteridade radical; e como ele colocou esta irredutibilidade sem remissão, este no man’s land sem saída? A cada profeta D’us exige uma tarefa totalmente contrária a seus penchants subjetivistas, como por exemplo: a Ezequiel, muito higiênico, solicita que cozinhe um frango na merda e o coma; a Isaías, muito pudico, pede que saia de cabelos desgrenhados de fúria santa e nu pelas ruas de Israel, para proclamar sua prostituição; etc.
Deus é a alteridade do deserto, do mar negro e profundo, do olhar do cão e da prece do índio, aquilo que necessariamente me exclui (ergo, cogito, no caso ocidental, branco, americano, etc); para os herdeiros quakers, leitores dos profetas excluídos da ceia pascal do Egito, Kelly Reichardt acha uma forma de instituir uma exclusão da exclusão, e nos representa o deserto em seu nec plus ultra místico como o lugar do não-lugar (ou da digressão extraviante, à toa e qualquer): o Deus do frango cozido na merda encontra aquele que o cinema americano sistematicamente se empenhou em legar ao hors champ (o autóctone): temos uma paulada política de cinema tardio que, devidamente encoberta pelo brilho do roteiro de Jon Raymond (com as elipses certas para centrar o descentrado, ou revelar agora no centro aquilo que não víramos nas bordas) e pela mise en scène e découpage de elípticas ocultações e desvelamentos, sem a necessidade de nenhum discurso, panfletismo ou clin d’oeil grosseiro para nossas plateias politicamente corretas; séculos de exclusão são invocadas e evocadas com pertinência, elegância e decoro, de acordo com esta semiótica do miserere que espera os quakers na Terra prometida do extravio divino: a Diferença também pode ser representada numa arte materialista como o cinema, e aqui trata-se da eminência de Deus e seus oxímoros escandalosos: a Diferença da Diferença; O atalho antecipa First cow, penúltimo filme de Reichardt que faz tabula rasa do balbucio anencéfalo de majoritário presente do cinema para lançar as devidas cordas e liames de nossa relação, até hoje pouco esclarecida em sua profundidade de révelateur, com o passado opressor; mas o passado, ao contrário do que certa histeria de esquerda hoje possa pensar, não é apenas o lugar da exclusão, da diferença irrecuperável, da maldição (pós-metafísica) da Origem; ele é também o lugar da Origem como destinação do presente e imagem pela qual inventamos os deuses e fotografamos o ser nas empreintes de verité das palavras (relevância absoluta da etimologia, aliás); em Intolerância, filme épico do Griffith que viu o cinema nascer, temos Lilian Gish embalando um berço imemorial ao som do ritornello do Totalmente Outro, História carnívora e Mesmo padastro; o passo para trás heideggeriano de First cow e O atalho se reapropria do passado como a imagem-mater desta paternidade clássica, tantas vezes terrível mas necessária para se fazer o luto, que nos viu nascer e morrer novamente; não é pouco para os tempos intempestivos que nos atropelam.
“Aqui do alto, contemplo o campo, que se estende como uma pradaria sem fim. (…) Paisagem estática, desoladora. Bem longe, um homem atravessa os campos. (…) A verdade caminha por si através dos bosques.”
Caminhando no Gelo, Werner Herzog
Dos registros de população e máquinas urbanas do final dos anos 1890 às sinfonias de cidade soviéticas e europeias dos anos 1910 e 1920, o cinema investiga sensorialmente sua ligação intrínseca com a cidade e seu movimento. No entanto, o oposto do trânsito constante citadino encontra diálogo na investigação de diversos realizadores que imaginam, retratam, debatem e evocam, a natureza e seu tempo próprio – e como os registros dela são realizados, quais procedimentos utilizados.
A natureza filmada em locação, sob diferentes códigos de uma paisagem, é das bases mais sedimentadas de cinemas como os de Peter Hutton e Apichatpong Weerasethakul, que flutuam entre a sideração e a palpabilidade da concretude natural de uma vista, do fluxo de um rio ou da neve que cai, da floresta que respira ou do mar à espera. Nessa mesma disposição pela locação, dois italianos com códigos muito particulares (e semelhantes) filmaram natureza: Roberto Rossellini criou em Stromboli uma grandiosa representante do tumulto interno de sua protagonista à espera de uma experiência de estupefação, enquanto Michelangelo Frammartino fez em As Quatro Voltas e Il Buco um desencadear de acontecimentos místicos nas ações mais mundanas, linhas mais simples e diretas da comunhão sagrada entre o humano e o natural, um continuação do outro. Ambos sob a visão de uma névoa que a natureza deixa pra trás após agir.
Também temos a natureza hostil, filmada como ameaça, palco para violências imensas e alegorias políticas. John Boorman em Amargo Pesadelo cria um filme de guerra em microcosmo, com seus homens da cidade que vão à caça. Já Nelson Pereira dos Santos e Jim McBride em Quem é Beta? e Glen e Randa propõem utopias de novas organizações amorosas diante do pós-apocalipse e da terra arrasada, como se a falta da suposta civilização da cidade nos liberasse para lidar com a vida sem tabus. Kelly Reichardt, entusiasta do retrato natural como seu mentor e amigo Peter Hutton, filmou em O Atalho um velho oeste de travessias nada explosivas, que vencem pelo cansaço, cujo sobrevivente mais apto será aquele que entende a história da terra onde pisa.
Há também diretores que preferem filmar a natureza artificial, recriada e filmada em estúdio, para diversos efeitos – seja realçando a ilusão, como Powell e Pressburger em Narciso Negro com suas construções impossíveis e planos cuja magnitude da natureza, evocativa das pinturas de paisagem de artistas românticos como Caspar David Friedrich e mesmo revisionistas como Turner; seja para um controle maior da estrutura de produção, como Erle C. Kenton em A Ilha das Almas Perdidas, e no tanto que essa escolha se reflete em tela, do filme como resultado estético desse modelo de filmagem, da selva domada do estúdio servindo de palco direto para um cientista que cravou uma cicatriz a seu desejo no meio da natureza intocada, reflexo direto do colonialismo tratado pelo filme – assunto esse também tratado por Chantal Akerman em A Loucura de Almayer, mas sob o calor da locação, que encarna o natural como um pesadelo do colonizador em febre, a umidade sentida na pele, nas embarcações ruindo.
James Benning já filmou a natureza indo de um extremo de humor ao outro em filmes diferentes, das paisagens alienígenas de Sogobi à aridez se Equinócio de Outono, enquanto Herzog geralmente concebe esses extremos dentro do mesmo filme: em Aguirre, a grandiosidade contemplativa da paisagem rivaliza diretamente com sua implacabilidade, a loucura megalomaníaca do humano que brinca de Deus numa natureza indiferente. Em Claire Denis, a natureza desértica do passado de Bom Trabalho contrasta diretamente com o movimento da cidade do presente. Em James Grey e David Lean, essa megalomania do ego que se estende para conquistas da natureza ganha uma dimensão mais épica, cuja escala e aparato cinematográfico buscam a vocação (e construção) clássica dessas jornadas.
São formas que se interpolam e dialogam entre si, sempre sob um véu de dúvida e mistério, como exemplos da nossa própria comunicação tortuosa com a natureza. Buscando entender o idioma desconhecido do que o vento fala, ou o comportamento de quem passa por aqueles lugares, cineastas ao longo do século apontam suas câmeras para o mundo natural atrás de perguntas. Essa edição propõe investigar algumas delas.
When I speak of time, it’s not yet When I speak of a place, it has disappeared When I speak of a man, he’s already dead When I speak of a time, it already is no more – Raymond Queneau
Nós somos fascinados pelo fantasma de uma realidade integral, pelo alfa e ômega da programação digital. O real é o leitmotiv e a obsessão de todos os discursos. Mas não somos muito menos fascinados pelo real do que por seu desaparecimento, sua inelutável desaparição? – Jean Baudrillard
Uma das grandes questões que afligem a arte de modo geral desde o princípio e perpassam gerações de pintores, teóricos e até mesmo espectadores é a questão de verossimilhança da imagem. Seja em movimentos como o suprematismo ou o cubismo, nas artes, seja com o cinema experimental ou com a poesia concreta, a necessidade de uma representação de mundo tal como ele é, é uma porta entreaberta, um mistério sem solução. Afinal de contas, tudo depende do interlocutor e de como vemos. O mundo, em geral, é formado de grandes mistérios imagéticos e cabe a nós sabermos interpretá-los.
Há quem se confronte com as peculiaridades entre o mundo real e o mundo imaginário, o natural e o humano ou o real e o virtual. Esses questionamentos tem tido uma grande prevalência no cinema atual, principalmente com o advento do digital como matéria primordial de fazer fílmico. Fomos do assombro em captar o movimento das folhas ao fundo em O Almoço do Bebê pelos irmãos Lumière em 1895 até ao assombro da recriação do movimento das folhas e das paisagens em videogames com um grau de realismo exacerbado. Na fronteira entre o real e o maquínico, se encontra Harun Farocki, cineasta alemão que se põe em frente às máquinas para botar a câmera em cena, como uma espécie de figura anônima em uma estrutura mecânica; uma engrenagem em uma máquina.
Nesse caso, em Parallel I-IV (2012-2014), há um ciclo de filmes com foco na construção de um simulacro de mundo real em meio a ambientes virtuais, como os videogames e representações gráficas. Não é novidade que o confronto entre o homem, a máquina e o mundo das coisas é algo presente em grande parte dos filmes de Farocki; no entanto, o questionamento quanto à representação do mundo natural como simulacro e a interação entre simulacro/realidade e espectador é uma fórmula essa que vai se repetir em outras instalações, principalmente nas obras derradeiras (como em Serious Games e Eye/Machine). [1]
Em Parallel I-IV, a historiografia apresentada vai desde as primeiras formas de animação até os últimos avanços dos videogames, como a jogabilidade e a interação com o espaço se tornam figura central de questionamento do aparato cinematográfico; tanto os Lumière quanto Farocki almejam a mesma coisa, buscar um retrato do mundo, mas a intenção do segundo é questionar se, no realismo simbólico da natureza construída pelos jogos, uma árvore representa de fato uma árvore, apesar de não ser feita da matéria orgânica. Afinal de contas, na voz de Antje Ehmann por entre as paisagens computacionais, se torna a regra a emulação de mundo através da animação, oferecendo uma possibilidade de superação do cinema como retrato do real. No entanto, ela nos diz: Nos filmes, há os ventos que sopram e os ventos que são produzidos por um ventilador. Nos mundos animados, o vento sopra em uma única direção. E como considerar um mundo construído como algo natural? Ao mesmo tempo, como não dizer que aquele não é um mundo?
O que rege Parallel I-IV é a noção de que a representação natural de mundo pelo cinema e pela virtualização da natureza e das paisagens é uma espécie de retomada ao ímpeto inicial renascentista – onde a técnica e a ciência estavam à serviço da arte. Parece uma afirmação bastante controversa; porém, considerando um mundo em que a água se torna mais reluzente e as árvores são colocadas em coordenadas e tudo, absolutamente tudo, é formado por pontos e vírgulas e coordenadas cartesianas, talvez não seja de tão absurdo. Afinal, o plano achatado e o nada além da superfície das coisas é uma noção pré-helênica de mundo.
De toda forma, essa espécie de mistério representacional do mundo e da natureza, a água composta por algoritmos, um horizonte plano infinitamente finito e um mar sem fundo ou função causa um assombro. Quantas vezes, ao ver um retrato de um videogame ou de uma emulação, não se diz ‘isto é mais real que o próprio real’? Será mesmo? Se este é o mundo real, ele deixa de existir quando eu não o vejo? Onde é que esse mundo termina? E esse é o ponto central de Parallel: A natureza virtual é composta de um vazio e pontos de fuga inexistente. O mundo que se vê pode parecer, mas não o é e sua ideia de infinitude e o que há além do alcance mostram que talvez não tenha sido o movimento das folhas ao fundo do quadro que interessem nas emulações do mundo, mas sim, o seu desaparecimento. Queremos saber o que há por trás da montanha, para além do mapa, fora do horizonte. É uma necessidade sobre-humana: Alcançar o inalcançável.
Disse Jean Baudrillard: ‘Por trás de cada imagem, algo desapareceu. E isso é a fonte de sua fascinação. Por trás da realidade virtual em todas as suas formas, o real desapareceu. E isso é o que fascina a todos. Segundo a versão oficial, adoramos o real e o princípio da realidade, mas — e isso é a fonte de todo o suspense atual — é, na verdade, o real que adoramos, ou seu desaparecimento?’
De fato, o desaparecimento é a única constante real e virtual de mundo e Parallel I-IV reforça um mundo fadado ao constante desaparecimento e que tudo isso flutua no vazio.
Isso só evidencia que a diferença entre o mundo dos jogos e o mundo vivente é a regra primordial da finitude; se na Terra tudo nos é finito e regido por leis da física, no mundo virtual, a noção de infinito no simulacro só define o quão limitado é a existência dos seres nas telas e nos filmes. Isso possibilita infinitas representações de mundo dentro de um só local; no entanto, o horizonte é oco. O fundo do mar é o vazio. As criaturas são regidas pelas suas próprias regras, mas ao mesmo tempo a sua existência é somente entre si próprias, sendo eles mesmos obliterados por um poder invisível. A natureza que as cerca transpõe barreiras anti-naturais, obstáculos invisíveis. Tudo desaparece, até mesmo o infinito artificial.
[1] No caso de Serious Games e Eye/Machine, o questionamento da imagem cinematográfica vai além da simples manipulação imagética, mas sim, das implicações sócio-políticas de um mundo virtualizado; afinal de contas, segundo Farocki, na representação da guerra o sol somente brilha em tanques e personagens animados americanos, enquanto os personagens do Oriente Médio até de sombra são desprovidos, dada a desumanização entre invasor e invadido.
Falar de maternidade e gozo no cinema é um ato disruptivo. Encarar essa problemática com responsividade pode significar muitas coisas, mas todos os caminhos passam pela contradição. O longa-metragem de estreia de Ana Carolina Marinho elabora uma jornada que segue Letícia Bassit, performer e escritora de São Paulo, em seus caminhos depois de uma gravidez não planejada.
Eu também não gozei (2024) é realizado numa pegada investigativa ao estilo “documentário observacional” que bombou nos festivais recentemente – para o bem e para o mal. No entanto, o filme evita fragilidades típicas desta tendência contemporânea, como a falta de uma ideia ou gesto de montagem capaz de criar caminhos de fruição para os registros. Aqui entra a força da montadora Cristina Amaral nesta obra.
A premissa do documentário é simples: a personagem descobre que está grávida e não sabe quem é o pai de Pedro, o neném. Esta situação dispara toda a movimentação: a mãe resolve buscar o pai biológico da criança. Para isso, realiza testes de DNA, processos que a documentarista segue de perto. São quatro possibilidades de paternidade. Quatro homens surgem no fora de campo através de seus diálogos com Letícia por telefone.
A fala tem um lugar central nesse documentário. O longa procura dar voz à sua interlocutora, ao mesmo tempo que a persegue em suas passagens entre prédios institucionais, espaços domésticos e o interior de carros em movimento. Apesar de ser um filme que busca seguir os movimentos de Bassit em São Paulo, a cidade não aparece. Isto revela um desinteresse do filme em dar forma à relação entre o corpo da protagonista e o ambiente que ela rasga com seu vai e vem.
Impossível não falar dos dedos de Cristina Amaral nesta fita. A montagem bagunça tempos, sentimentos, temas – traço caligráfico do trabalho de Amaral, como vemos em Serras da Desordem (2006) e Mato Seco em Chamas (2022). O material fílmico e sua cronologia são redimensionados em espirais, o que cria um magnetismo em torno do encadeamento das cenas – seus intervalos e seu ritmo.
Mas, ainda assim, algo causa frustração no espectador. Apesar de dar voz ao discurso de Bassit em torno de problemas que são cotidianamente escamoteados na sociedade brasileira, o filme não consegue criar uma imagem expressiva desta vivência. A protagonista fala com clareza e transparência, com controle da cena. A impressão é que, ao mesmo tempo que o filme acolhe a personagem, também a enclausura numa redoma.
Não falta coragem à Eu também não gozei, mas falta estranhamento. Dar a voz significa dar forma? Em seu esforço por criar uma instância acolhedora para fazer ecoar a voz da experiência, acerta a transparência e a clareza – a comunicabilidade “universal”. Fico pensando o que seria desta obra se as cenas em que Bassit quebra a moldura da Razão com performances e improvisos tivessem mais espaço. E se o filme se perdesse um pouco no caos e no delírio? Aqui, a voz não vira cena.
Laser groove pois eu também sou ciborgue e quero dançar
por João Paulo Campos
Volume é drama.
Tantão. Drama.
O que vemos com os olhos em Aquele que viu o abismo (Gregorio Gananian & Negro Leo, 2024) é um homem que caminha por linhas tortas aqui e alhures. Perambula e vira estátua, para iniciar, novamente, seus passos convulsionados. Entre movimentos e petrificações, duas presenças fortes: o laser e o groove. Acontece uma trama, sem dúvidas, mas me esqueci do que se tratava. Algo entre Alphaville (1965) e Blade Runner (1982), mas com Negro Leo e Ava Rocha e a voz de Clara Choveaux falando coisas entre São Paulo, Xangai e Pequim. Mas o que ficou forte no meu corpo foi a memória do… laser e o groove.
E o que escutamos? O filme vai tecendo ritmos e arranjos no que parece uma jam session dos passos de Negro Leo entre o Brasil e a China. Passarinhos cantam bufadas de trompete e carros buzinam solos de bateria. Rasgando a malha urbana intercontinental, acompanhamos os cortes curtos do protagonista – desmemoriado e neurótico ao estilo film noir -, que performa em escrita-automática através de enquadramentos acrobáticos – pura variação de vistas e escutas.
A paranoia é esboçada em voice over através de meditações que, amalgamadas a todo resto, sugerem uma fuga contra tudo e contra todos – novamente reforçando a atmosfera do filme de gangster. Alquimistas, os realizadores remontam palavras, música, corpo e ambiente sem compromisso com a comunicabilidade clarividente das grifes artísticas atuais. O performer caminha no (des)compasso da música preta experimental, bagunçando nossos sentidos – na contramão do verniz de universalidade dos labs e incubadoras criativas. Se é Bebop em Xangai ou Free Jazz em Pequim, eu não sei. Mas parece que, depois de quase 10 anos de sua morte, Ornette Coleman performou na China.
E a luz? O corpo de uma mulher surge no escuro, desenhado por lasers azuis ou vermelhos ou os dois. Ela cai morta e me lembra, de forma inequívoca, uma replicante de Blade Runner, aquela que morre em slow motion na multidão neon depois de levar uma sapatada de tiros de Harrison Ford – clima chuvoso. A imagem retorna em diferentes momentos do filme, tal qual um bug no sistema nervoso de computadores.
Quando o filme começa a ficar maçante e talvez difícil de seguir-sentindo, surge uma aparição: é a personagem de Ava Rocha. Presença que carrega uma energia mística sui generis, a figura aparece para recalibrar o ritmo das imagens e sons – desacelera para depois (re)acelerar a fita. Isso em planos fechados que vão cortando vistas do corpo da performer, ressaltando a vibe ritualística da cena – o rito necessário para encararmos a parcela final da obra.
Coisa louca: o Abismo de Gananian e Leo não é filme para se identificar, mas acabei sentindo empatia pelo protagonista e seu jeito de andar. Já mencionei que não me lembro da trama, mas me recordo da presença de Negro Leo em cena – quebrado, rasgado e operante. Pois eu também sou ciborgue e não sei dançar. Tenho dois pinos de metal no joelho direito, algo que ganhei por me empolgar demais num show de música experimental em Minas Gerais.
Existem pessoas que confundem o futuro com o passado. Isso pode nos deixar tortos no caminhar. Mas tem um charme. Pois o segundo longa-metragem de Tiago A. Neves é torto e destemperado – e parece querer fazer o tempo explodir no caos coreografado em cena. Maçãs no escuro (2024) tem lá seus problemas – som estourado, tremores “meio doidos” de câmera, iluminação “ruim”. É um filme “desequilibrado”, para alguns colegas da crítica. Mas isso faz parte do show dos caras. Vida sem atrito é como pele sem cicatriz – se isso é bom ou ruim, bonito ou feio, cabe ao público escolher.
Numa pegada fantasiosa, o filme investiga a vida e obra de Edson Aquino, dramaturgo underground da cidade de Diadema, no ABC Paulista. Mas para isso, foge completamente do que assistimos em filmes de “retrato de artista” mais tradicionais. Num trato com seu interlocutor, Neves inventa uma história que serve de armação ou “dispositivo” a partir do qual todo o experimento do longa se desenrola: uma dupla de documentaristas estrangeiros, que nunca mostram seus rostos, chegam ao Brasil para fazer um documentário sobre a vida de um importante dramaturgo brasileiro. Toda a obra é um vai e vem caótico por uma Diadema noturna, sempre no encalço de Aquino, que no filme não é underground, e sim VIP.
A montagem (des)organiza os encontros com Aquino num ritmo marcado por trancos e saltos, bem ao estilo épico já esboçado no longa anterior do diretor, exibido na Mostra Aurora do ano passado, Cervejas no escuro (2023). Tem um caos coreografado aqui, mas que segue a pulsão da rua. Ou melhor, das ruas que o dramaturgo varre com seus passos.
Apesar das semelhanças entre os dois filmes, percebo uma radicalização dos aspectos lúdicos que já haviam sido semeados neste trabalho anterior. Mire veja: em Maçãs no escuro, a doideira é mais pesada. O ambiente também é muito diferente: a cena urbana, asfaltada, morros e becos, sombras e cigarros. As presenças que habitam essa Diadema estranhamente escura também são outras. Uma trupe de teatro que encontra suas formas de existir em cena entre o riso e o luto, o escárnio e a meditação existencial. Dos vultos dessa Diadema entre o pesadelo e o bacanal, a aparição de Edson Aquino dando uma “bongada” em sua maçã na escuridão de seu bunker é a que mais impregnou a minha memória.
Os filmes de Tiago A. Neves parecem surgir de uma obsessão do realizador com cidades e seus habitantes, mas não a partir de uma sociologia escolar, mas da perspectiva do desejo, sonho, delírio. Paraibano que foi viver em Diadema, fez do vai e vem marca estilística. Cada pessoa merece um filme na escuridão. Uma Comédia Humana entre a Paraíba e São Paulo parece estar surgindo nesses filmes baratos e escuros da trupe interestadual de Neves. Tentativas de fazer o riso driblar a morte.
Confesso que na noite da sessão de Lista de desejos para Superagüi (Pedro Giongo, 2024) durante a Mostra de Cinema de Tiradentes eu não dormi – fiquei a perambular pelas ruas e, naturalmente, terminei a noite no Vortex. Mas quando finalmente adormeci, sonhei com o movimento dos barcos. No meu sonho, uma senhora me sussurrava palavras que escutei na sessão deste filme. Era Dilma, uma das personagens do longa que, em dois momentos da história, toma a função de narradora. “Antes era melhor…”. Esta aparição sussurrante surge das sombras das praias azuis de Superagüi para enfeitiçar o espectador: “Não me acorda, Superagüi… Ainda tô dormindo”, diz ela baixinho para quem quiser escutar. É personagem ou veio para hipnotizar-nos? Os dois, sem dúvidas.
O filme dirigido por Pedro Giongo parte do registro da vida na ilha de Superagüi, no Paraná. Mas vai muito além de um documentário informativo, uma vez que consegue construir um universo que amalgama as promessas não cumpridas da Constituição de 1988, tensões do mundo atual como, por exemplo, a destruição do meio ambiente em escala global e, o que só a arte consegue conjurar, um mundo delirante de sonho – os sonhos dos habitantes da ilha azul-vermelho-fogo de Superagüi (sempre que escrevo ou digo ou penso nessa palavra, meu corpo arrepia).
Isso pois, como lemos na primeira cartela da obra, intitulada Lista de decretos, a vida por ali é fortemente impactada por leis federais, uma vez que a região é, desde a redemocratização do Brasil no fim dos anos 1980, uma Reserva da Biosfera e Patrimônio da Humanidade respaldada pela Unesco.
Das regras do jogo, ressalto duas: 1. É proibido plantar no solo da ilha; 2. Durante a época de reprodução dos peixes, é proibida a pesca. Isso impacta fortemente a vida na ilha, cuja principal ocupação é a pescaria. A última regra que mencionei também tem um efeito sobre a ossatura formal do filme, que se divide em duas partes. Primeira parte: Abertura da Pesca. Segunda parte: Inverno. Com pesca e sem a pesca. Entre um e outro: o movimento dos barcos e pessoas e seus desejos.
O filme consegue inventar a partir das idiossincrasias dos habitantes, mostrando muito mais que um registro do cotidiano da região. E o faz desde um compromisso com a beleza que parece nascer das tripas da ilha. O belo toma forma a partir da atenção para elementos da vida que escapam às observações apressadas de pesquisadores e jornalistas, agentes governamentais e turistas. É o jeito de falar e andar, o estilo de sonhar e fazer farra das pessoas de Superagüi que se metamorfoseiam em cena de cinema nesta alquimia sensual de imagens e sons. São as canções, acordes, batuques, cores, roupas, saberes e histórias que roubam nossa atenção e se infiltram em nossas memórias – verdades e mentiras que tem um estilo de ser e se refazer em filme.
Os enquadramentos muitas vezes pegam as cores pulsantes entre frio e quente das casas, barcos, roupas, instrumentos, pescados e fogueiras, mostrando belezas insuspeitadas em planos longos, serenos. Não preciso mencionar que é um filme atmosférico, sensorial. Isso sem dúvida nos ajuda a navegar por Superagüi – uma navegação imaginária que lembro ao dormir e relembro acordado. Estarei dormindo ainda?
A montagem do filme merece atenção, naturalmente. Pedro Giongo é, além de diretor, um sábio montador, tendo realizado, neste ofício, trabalhos como Casa Izabel (Gil Baroni, 2022), para ficar com um dos mais recentes. Giongo e Bruno Carboni (que divide a edição com o diretor) tecem ambientes entre a calmaria e a festa, o lamento da tempestade e sonhos de futuro por vida digna e felicidade coletiva. E isso tem um ritmo e também constrói um cromatismo singular. O ritmo acompanha o movimento dos barcos: cinética ondulante que faz subir e descer num flow sereno, mas não sem turbulências. As cores entram numa mistura entre o frio e quente: o azulado das praias entra em confluência com um vermelho incendiário das fogueiras, lanternas, cigarros, crepúsculos. O vermelho da aurora. Um esfria-esquenta gostoso de sentir.
A interrupção e o desvio encontram lugar na Lista de Desejos. De repente, a sombra vira luz. Um gesto de montagem interrompe a imagem em movimento e faz aparecer uma série de fotos em 35mm de quadros esculpidos de animais. As artesanias logo dão lugar para uma farra muito louca: uma música efusiva embala retratos de gente jogando cadeira pra cima, abraços e beijos, bebidas e saltos. A felicidade toma o filme de assalto para voltar ao claro-escuro do presente. Depois, um álbum de família, uma saudade bate forte. Sinto que os personagens da ilha são nostálgicos, de certa maneira: “antes era melhor…”.
Encontramos outros desvios nas cenas em que Martelo e seus companheiros e amigas da ilha buscam, num prédio na Justiça Federal alhures, provar a atividade profissional de longa data do velho pescador diante de um juiz, para que este consiga o benefício da aposentadoria. “Carente ajuda carente”, diz Passarinho para o juiz. Martelo já é velho de guerra, precisa descansar. “Superagüi não me acorda”. Mas talvez o atalho mais bizarro e belo do filme seja o momento em que Martelo conta a história do ouro enterrado muito tempo atrás em terras vizinhas. De repente o filme toma a forma do delírio do pescador. Ele e o comparsa traçam na areia o mapa do tesouro. Os amigos corsários partem na noite azul em busca do malote. “Dividir meio a meio”, repete Martelo para o outro pirata. Mas a cobiça toma conta: num mangue, o homem encontra o ouro cavando um barro-preto-escuro. O jovem dá o calote no velho e desaparece correndo por planos alucinantes na mata.
Antes de mais nada, Lista de desejos para Superagüi constrói um clima desejado, uma vibe indescritível. Obra que nasce, sintomaticamente, no tempo das catástrofes climáticas. Vem para oxigenar nossa imaginação e, quem sabe, contribuir para a desaceleração do mundo. Mas, como sabemos, isso já é papel de outros profissionais e o cinema, por si só, jamais salvará o mundo. Uma história criada a partir dos desejos de muita gente – pessoas que sonham e nos apresentam suas listas de desejos em imagem e som, cores, palavras e muita música.
Voltarei a dormir logo mais para, quem sabe, sonhar novamente com a ilha azul-vermelho-fogo. Desejo reencontrar Martelo, Cajá, Dilma e as outras pessoas e ambientes que vem voltando em minhas memórias num claro-escuro que tomou conta de meu corpo desde a sessão deste filme. Dessa vez, vamos encontrar o ouro debaixo da terra para dividir em partes iguais.