Ali havia assassinos por acaso e assassinos por ofício, bandidos e chefes de bandos. Havia simples ladrões e vagabundos – gatunos e arrombadores. Havia outros sobre os quais era difícil dizer o motivo por que estavam. E, no entanto, cada um tinha uma história, confusa e pesada como a ressaca da bebedeira da véspera. Em geral, poucos se referiam ao próprio passado, não gostavam de tocar no assunto e pelo visto procuravam não pensar em tempos idos. Dentre eles conheci assassinos que eram tão alegres, que evitavam tanto cair em reflexão, que se podia apostar que a consciência nunca lhes fizera nenhuma censura. Mas também havia tipos sombrios, quase sempre calados. Geralmente era raro alguém contar alguma coisa sobre a própria vida e, ademais, a curiosidade estava fora de moda, como que ausente dos costumes, não era de praxe.
Fiódor Dostoiévski, “Escritos da casa morta” (1862).
Os bandidos e a bandidagem têm história no cinema mundial. É possível detectar, entre filmes de épocas, estilos, países e gêneros variados, uma linhagem subterrânea em que se amontoam aparições de bandoleiros, contraventores, criminosos e facínoras. As cenas da criminalidade saltam aos olhos dos espectadores que se aventuram pelos universos tão díspares quanto semelhantes dos filmes de gângsters e westerns, documentários e filmes de ação. Ao expandirmos o escopo do cinema para o audiovisual, chegamos à obsessão contemporânea com séries televisivas de true crime, em que histórias reais de criminosos e crimes notáveis são deglutidas para um público ávido por desgraças em formatos acessíveis.
Percorrendo os caminhos do crime no cinema, topamos com figuras como as do bandoleiro que assassina e rouba em vilarejos de filmes de faroeste; o gângster e o policial corrupto das cidades labirínticas do filme noir; o matador profissional dos pastiches neo-noir; o bandido social dos cinemas modernos; o serial killer e o psicopata das fitas de horror. Restos da sociedade, os criminosos são mostrados como personagens turvos: homens e mulheres sem passado que transitam na linha tênue entre a aparição e a desaparição, a cena do crime e o esconderijo.
Cenas da contravenção se desenham no ecrã: roubos, mortes, canibalismo e atos de rebelião. São cenas fora da lei habitadas por outsiders que aparecem ora às margens, ora no centro da produção cinematográfica global, em obras que brincam com o perigo no plano da imaginação artística.
Diante desse universo artístico polifacético, a nova edição da Multiplot propõe uma viagem reflexiva por obras que dão forma e sentido ao universo da criminalidade. Seguir as linhas da bandidagem no cinema é a tarefa do dossiê Cinema e Bandidagem. Quais são as formas da criminalidade no cinema? Como as figuras de criminosos fora da lei aparecem e variam entre filmes distintos?
Com isto, pretendemos pensar com o universo dos brutos no cinema para finalmente construirmos um atlas do crime com análises de filmes de épocas, gêneros e estilos variados.
Explorado desde a década de 1920, o filme de cangaço tem seu verdadeiro desenvolvimento a partir da década de 1950. Entre o começo de 1950 e o fim de 1960, diversos títulos foram produzidos, quase todos eles com grande apelo popular. Não é muito difícil chegar à conclusão que, com o desenvolvimento do imaginário coletivo em relação ao tema, sobretudo através da figura de Virgulino Lampião, o cinema logo construiria suas narrativas em torno do mito. Surge uma espécie de Western brasileiro em que cangaceiros são geralmente representados através de suas características mais crueis, personificando uma maldade que se encontra em oposição à união matrimonial e à família. Tais filmes se alinham a uma estrutura narrativa que obedece à lógica do cinema estrangeiro comercial da época. O cangaço, em sua forma estereotipada, coube como uma luva nessa forma narrativa.
Por outro lado, há alguns filmes de cangaço que possibilitam um olhar mais cuidadoso sobre esse fenômeno tipicamente nordestino e, mais especificamente, sertanejo. Vou comentar sobre duas produções que julgo representativas. Não pretendo expor um estudo sociológico detalhado do banditismo sob a intermediação do cinema, mas analisar alguns aspectos que, relacionados a pessoas e situações reais, foram trabalhados criativamente em obras de ficção.
Os filmes em questão são O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Os tratamentos sociológicos e informações biográficas sobre o cangaço e seus personagens foram retirados de Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil, livro de Frederico Pernambucano de Melo.
Em Deus e o diabo na terra do sol, somos logo apresentados àquilo que, de fato, imperava no sertão nordestino: a ausência da lei estatal. Diferente do nordeste litorâneo, em que a monocultura estabeleceu a criação de grupos populacionais que estavam integrados a atividades econômicas e jurídicas relativamente estáveis, no sertão o indivíduo se vê em todos os sentidos isolado e, consequentemente, desassistido das leis constituídas pelo estado. Não há um patrão para obedecer e muito menos uma lei jusnaturalista a seguir.
Nesse sentido, o sertanejo está imbuído de um individualismo profundo, sua vida é pautada na busca solitária pela sobrevivência e por aventureirismos que se relacionam a um certo sentido épico da existência. É nesse contexto que se desenvolvem os arcaísmos tipicamente sertanejos. Em Deus e o diabo, Manuel (Geraldo del Rey) é atraído por dois arcaísmos básicos do sertão: o fanatismo religioso e, posteriormente, o banditismo do cangaço.
A história de Manuel começa por um conflito relacionado à propriedade privada. No sertão, pelo menos até a primeira metade do século XX, usurpar a propriedade alheia era considerado um crime grave, enquanto que atentar contra a vida do outro era algo relativamente normal. O crime de morte tem relação direta com a preservação da honra e por uma necessidade de vingança. Sem dúvida, a violência é o modus operandi do sertão e vence quem tem mais poder de fogo. Com as leis do estado frouxamente estabelecidas, resta a lei da bala, essa, sim, absolutamente presente e atuante. O conflito entre Manuel e o coronel acaba inevitavelmente em sangue.
Uma série de assassinatos ocorre, típicos crimes de honra e vingança. Manuel, o lado mais fraco da história, precisa fugir, iniciando assim sua aventura. Esse tipo de fuga é, inclusive, um dos elementos que fazem com que homens procurem refúgio no cangaço, ainda que esse não seja o fator principal do seu desenvolvimento. O indivíduo, diante de uma situação extrema que o obriga a fugir de vingança iminente, se vê sob a necessidade de se unir ao cangaço para sobretudo se proteger.
De todo modo, não é esse tipo de aventura que atrai Manuel. Primeiro ele é seduzido pelo sebastianismo, messianismo lusitano que possui sua variante sertaneja desde o período colonial. Manuel se torna um fanático religioso e, assim, alguém que, diante da brutalidade da vida, se aliena de sua própria condição de miséria e perigo.
O fanatismo religioso do sertão produzia uma alienação tão profunda na população que acabava por se tornar um problema para as autoridades locais. Seu caso extremo, ocorrido no final do século XIX, foi a Guerra de Canudos, comandada por Antônio Conselheiro sob um reacionarismo que atacava diretamente a autoridade do estado. Glauber Rocha estava atento a todas essas questões, e elas aparecem explicitamente em seu texto. Ele se debruça sobre o fanatismo religioso do sebastianismo como “ópio do povo”, mas também explora questões de classe que se davam através do interesse da igreja e do estado em eliminar possíveis movimentos religiosos que contrariassem os seus interesses. É nesse contexto que surge Antônio das Mortes, representante de mais uma tipologia do banditismo sertanejo.
Antônio das Mortes é o típico pistoleiro, matador de aluguel sem patrão e desgarrado de qualquer valor ético. Diferentemente do jagunço, espécie de guarda-costas de indivíduos importantes e com posses, o pistoleiro não estabelece nenhum tipo de vínculo com aquele que protege. É um solitário e o seu princípio é matar, não importa como. Ainda que Antônio das Mortes fique reticente em matar Sebastião, por um receio religioso e também por uma certa afinidade com o desamparo do povo, o dinheiro fala mais alto e ele aceita eliminar o profeta.
Morto, Sebastião, não pelas mãos de Antônio das Mortes, mas sim de Rosa (Yoná Magalhães), que o apunhala em um ritual de sacrifício que representa o paroxismo daquele delírio religioso, Manuel se encontra novamente desamparado. O seu vazio, agora, é preenchido pelo encontro com o famigerado Corisco (Othon Bastos). Em consonância com a realidade, o Corisco de Glauber é vaidoso e se considera o sucessor de Lampião. Também conhecido como Diabo Loiro, Corisco foi um dos principais subcomandantes do bando de Virgulino, tendo agido muitas vezes de modo independente, comandando o seu próprio grupo. Era sabidamente valente e raivoso, mas lhe faltava a habilidade diplomática e a inteligência estratégica de Lampião. Segundo os relatos, o que fez Corisco entrar para o cangaço foi sua motivação por vingança. Coincidência ou não, em Deus e o diabo Corisco sangra um sujeito e diz ter sido motivado por uma vingança que perdurava por vinte anos. Uma humilhação jamais esquecida. Segundo Frederico Pernambucano, muitos cangaceiros, se integrando ao banditismo sob a justificativa da vingança, carregavam tal princípio como uma garantia imaginária do que o autor chama de escudo ético[1].
1. Segundo Frederico Pernambucano, o cangaço se desenvolve, principalmente, sobre três instâncias definidoras básicas: o cangaço como meio de vida (é o caso, por exemplo, de Lampião, que viveu do cangaço por mais de duas décadas), o cangaço como instrumento de vingança e o cangaço-refúgio. Este é menos recorrente e produzia, segundo o autor, um tipo de cangaceiro que não procurava viver em armas por muito tempo.
Não queriam ser apenas bandoleiros, mas teriam motivações que se relacionavam com a manutenção de sua honra, sustentando assim uma justificativa, ainda que frágil, para os seus atos macabros. Esse escudo ético fez a fama do cangaço e foi corroborado por uma certa robinhoodização dos atos dos cangaceiros que por vezes se sentiam justiceiros.
Por outro lado, o Corisco de Glauber tem como característica principal um heroísmo místico e épico, ainda que seja a representação de um cangaço em decadência. Nessa representação de Corisco está presente a inevitável marca do destino trágico do herói. Ele desenvolve os seus monólogos em uma espécie de transe ao mesmo tempo poético e nostálgico, pois fazia apenas três dias que Lampião havia sido morto pelos macacos. Na fantasia de Corisco, o Dragão da Maldade (Antônio das Mortes,o seu principal perseguidor) devia ser eliminado pelo Santo Guerreiro (o próprio Corisco personificado, em seu delírio, como São Jorge). Ainda que o Corisco de Glauber seja excessivamente poético, ele acaba por revelar mais um traço concreto relacionado ao mundo do cangaço: um tipo de heroísmo envolto em todo o ambiente místico que perdurava nos arcaísmos do sertão.
Em O cangaceiro, marco do cinema de cangaço e, efetivamente, filme que inaugura o tema como gênero cinematográfico, alcançando grande popularidade no Brasil e no exterior, a narrativa se assemelha aos faroestes norte-americanos, mas há algumas particularidades que colocam a obra em uma relação mais próxima à realidade do cangaço. Inspirado no bando de Lampião, o filme expõe um grupo de cangaceiros que, além de fazer seus massacres e pilhagens, deixa transparecer todo o seu orgulho, vaidade e um desejo de liberdade causado por aquele estilo de vida. O comandante, assim como Lampião, possui os dedos cheio de anéis e uma vaidade excessiva com tais objetos. Todo o grupo está sempre adornado e há uma cena emblemática em que o bando é fotografado.
Esse exibicionismo é a fiel representação do cangaço como meio de vida. Os cangaceiros de tal classe se sentem coronéis sem terras e, como indica o título do romance de Maximiano Campos, sem lei nem rei. Diferentemente do cangaço por motivação de vingança, normalmente mais discreto e sem tantas ornamentações, o cangaço como meio de vida se dedicou à confecção de uma série de enfeites trabalhados no couro, no tecido e no metal. Como é sabido, o próprio Lampião confeccionava muitos de seus ornamentos. Há, portanto, um cuidado estético exagerado e uma exposição que parecia contrastar com a “vida de correria” sob a perseguição das volantes, tropas policiais especializadas em capturar cangaceiros.
Quanto mais o cangaço evoluía em seus desmandos, gerando uma situação que beirava o colapso social, mais os cangaceiros se enfeitavam e se exibiam. Basta olhar uma imagem do jovem Lampião e compará-la com fotografias de sua fase madura para entender a evolução do uso dos trajes cangaceiros.
O filme também retrata, ainda que com certa estilização que leva ao exótico, a relação entre o cangaço e as manifestações culturais. Além da vastíssima literatura de cordel que também servia como uma espécie de jornal daquilo que ocorria no ambiente do banditismo, os próprios cangaceiros versavam, tocavam e cantavam. O bando de Lampião, junto com seu líder, entoava cantigas com abertura de até três vozes. Lampião tocava sanfona, além de ser poeta e compositor, tendo criado o motivo de Mulher rendeira, espécie de xaxado que se consolidou como o hino dos cangaceiros e mundialmente conhecida justamente devido ao filme Ocangaceiro.
Além dessa música, há no filme uma cena em que diversos trechos musicais são entoados, todos eles composições ou adaptações de Zé do Norte, compositor e consultor do filme sobre a linguagem nortista.
Ocangaceiro, dentro de sua narrativa de aventura e perseguição, consegue complexificar a figura do cangaceiro tanto através desse contato com a música e a dança, quanto pela relação, ainda que conturbada, com a população sertaneja. Durante muito tempo, os cangaceiros conviveram com uma certa tranquilidade em meio ao povo e tinham uma relação de interesse com os coronéis. É em sua fase final que o cangaço se torna sinônimo de violência e roubo. Passa de um cangaceirismo endêmico para um cangaceirismo epidêmico.
À violência se misturam o épico e o religioso: medievalismo guerreiro e Padre Cícero; Dom Sebastião e Antônio Conselheiro. No sertão tudo se mistura com facilidade, porque Deus, ali, não dita ontologicamente o que é o certo e o errado. Quem manda verdadeiramente é o homem, é ele o diabo na rua, orando a Deus para que na próxima matança tudo ocorra como o planejado.
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Segundo Frederico Pernambucano, o cangaço se desenvolve, principalmente, sobre três instâncias definidoras básicas: o cangaço como meio de vida (é o caso, por exemplo, de Lampião, que viveu do cangaço por mais de duas décadas), o cangaço como instrumento de vingança e o cangaço-refúgio. Este é menos recorrente e produzia, segundo o autor, um tipo de cangaceiro que não procurava viver em armas por muito tempo.
Um slapstick chanchádico como Bang Bang é a ideal plataforma para digressões humorísticas e sinistramente paranoicas sob a égide de vinheta fantasista. E por quê? Porque as grandes formas de impassibilidade trágica diante do irrevogável, nos tempos contemporâneos que correm, são o chiste, a piada interna, a irrisão: grandes verdades são ditas gargalhando, para não insuflar os mais moralistas ou açular os asseclas do denuncismo, no Brasil pós-AI 5; A idade da Terra, filme terminal de Glauber, era também um exercício, entre histérico e iracundo, sobre a miscigenação antropofágica cujo paradigma maior foi o estabelecido nos filmes mexicanos de Buñuel.
Bang Bang também é um filme miscigenado, mestiço em matéria de gênero e leitmotif, mas o reductio ad absurdum que o consagra como um dos filmes mais cruéis de seu tempo (à la Artaud: crueldade é lucidez) é seu gênio paródico; e para celebrar a paródia, a alegoria, a paráfrase e outros ismos, Bang Bang se serve de distintos e eficientes vetores de desconstrução: a bandidagem aqui é a parte de leão de um cinema que precisou aliciar os modus operandis de representação possíveis para não sucumbir às agruras históricas mas também retóricas que, com os estertores do Cinema Novo, também se faziam prementes para dar conta de um país que, saturado do cinéma verité e de cinema moderno, precisava do sangue novo, terrorista e colorido, do cinema marginal para se renovar: não quero, com esta reflexão, contrapor ambos os cinemas, mas sacar que Bang Bang, como todo cinema antropofágico, se serve dos meios (numa arte materialista, como deve ser) para, segundo Deleuze, perverter os fins.
Os mesmos planos-sequência e locação do cinema novo e do moderno comparecem aqui, porém não mais com propósitos ontológicos e realistas (à la Bazin), e sim de delírio sistemático e explosivo, de guerrilha de vanguarda: desde a aparição do título, uma bomba em letras garrafais que avançam para o espectador com impulsão de ameaça ominosa, percebemos que a vocação documental, tantas vezes lírica e rapsódica (Lourcelles os chamava de estetizantes), do cinema novo deve ser solicitada para comê-lo de dentro, como certos abutres com o ninho de inocentes cotovias; um filme como Bang Bang nutre-se, como toda obra de vanguarda alimentada, à la Tropicália, por elementos da cultura pop que antes fecundam que apodrecem seu tirocínio extremista, é um anti-thriller entrópico, filme performático e demonstrativo do uso do plan tableau com focais grande oculares, mas também o espécime de obra que achata e encurva virtuosamente a linha horizontal do tempo para nele inscrever cerimônias iniciáticas, um locus de mise en scène suntuosa encravada no coração de uma clareira esterilmente repetitiva, um ritornello que escalona iconicamente o percurso do protagonista segundo a lógica do pesadelo de um beco sem saída, e neste sentido não há como não ver no filme igualmente uma metáfora bombástica, iracunda e cheia de verve retórica, sobre as trajetórias saturadas de treva do país pós-68.
Bang Bang é o filme terrorista por excelência, mas urde seu arsenal de guerrilha segundo a lógica, agora elevada ao quadrado, do sistema e da Summa ateológicas, de um cinema da digressão que, como dito acima, se serve dos restos e dos rastilhos do cinema novo para melhor consumi-lo, como a lei de Hilel que o Cristo invocava acabara por consumar a Torá e os profetas.
Não se trata precisamente de uma obra dialética, mas de um salto vultoso de verbo performativo, que é, segundo Austin, aquele que ocorre ao mesmo tempo em que a ação que ele descreve (a definição, conforme os trâmites legais e filosóficos é aquele ato de fala que implica a realização simultânea, pelo locutor): em qual sentido?
Cada plano, capturado segundo o andante de um cerimonial econômico mas prenhe de ritual, deve ser visto como aquilo que realiza, na cabeça do espectador, o papel de uma denotação explosiva; os planos não estão aí para preencher a duração do filme ou graduar seu espaço segundo a anedota, agora tardia, de uma obra que conta; antes, Bang Bang se interessa pela fixação icônica não do conto (que é fluido e procede por acumulação narrativa, como por orientação teleológica: o “the end”) mas daquele que mostra mostrando, com unção litúrgica (embora agora ateológica, mundana, como lá foi dito) tudo aquilo que acontece num mundo reduzido à platitude da sequência de cerimoniais, de ritos, de estagnação hierática com propósitos de iluminação profana, como ontem surrealistas como Aragon e Breton, para saudar a vetustez dos monumentos de Paris.
Tonacci flerta com o quadrinho, o teatro do pobre, os truques de prestidigitação de feira e circo, as marchinhas de carnaval encenadas para a câmera, a fotonovela, mas segundo o diapasão, enunciado na divisão estrita do filme em planos e sequências muito longos e muito estamentais daquilo que merece permanecer no imaginário do espectador, como arrimo de elaboração alegórica. Filmamos como se o Brasil (não devidamente localizado, declarado, é certo) estivesse sendo implodido, e a cadeia de entidades-planos isolados entre si, que fornecem ao filme sua paronomásia perversa e dão esta precisa impressão a nós. No entanto, sem nada mostrar de exatamente chocante, letal, venalmente violento. Estamos lá, com os sinais de fumaça enegrecida, os destroços do acidente, o gás molotov; como em outro filme de guerrilha, Jardim das espumas (1970) de Luiz Rosemberg Filho (aquele, no entanto, que age segundo uma linha infinitamente mais entrópica, que dá à distopia descrita a sua saturação glacial, no meio do lixão e da estrada enlameada), que vemos o apocalipse de que os filmes são debitários.
O cinema povero classicista antropofágico de Tonacci (e oxímoros sempre falarão melhor que eu) se concentra no hieratismo e no cerimonial, sequência a sequência ordenados – em suma: da mise em scène – para falar de caos sem remissão, de revolução abortada, de fim de mundo; se o Jardim de espumas abdicava deliberadamente da ordem de articulação dos planos, se era amorfo para denotar na própria carne do filme a agonia escatológica de que sofriam seus personagens, Bang Bang, talvez por meios diametralmente opostos – unção ritual, lentidão cerimonial, iconicidade paratáxica (como a que Adorno leu no Hino a Patmos), embora, como na fórmula de Godard, também terrorista, achada na lixeira do cinema novo. Há, aliás, uma citação selon la lettre de Weekend à francesa, com o carro incendiado na estrada -, aspire ao mesmo inferno, mas com teorema e método de cartesiano expletivo. Loucura embora, tem lá seu método, já dizia o pai da Ofélia de Hamlet e os kantianos geômetras de Sade e Bang Bang faz como os erotômanos do Sartre, autores deste culto suntuoso que jamais devem abdicar de todas as feitiçarias possíveis ao teatro do mundo que é a grande plenipotência do cinema, arte (quando moderna) do ao vivo e da montagem de atrações.
O minimalismo genial, a ironia ática e a iconicidade de Summa dos tableaux de Bang Bang atestam a existência de um cinema que, em um mesmo e outro movimento, herda (do cinema novo, das chanchadas) e lega à posteridade de cineastas atentos ao seu métier um paradigma, um horizonte transcendental, um emblema. Bang Bang não é apenas um grande filme, mas um marco de cinema que brinca sem abdicar do rigor formal, que exercita o fair play do jogo dos significantes sem renegar sua ascendência na sintaxe e na semântica do cinema que herda. Quando assistimos à bailarina andaluza em ação, intuímos mais que sabemos que esta imagem de evanescência langorosa é igualmente um salto abrupto do mundo venal, canalha e servil dos bandidos de subúrbio para um universo simbólico prenhe de transfiguração, mas ambos pertencem ao mesmo filme, como se a infraestrutura e a superestrutura enfim se reconciliassem, sem senões nem desvãos. A espinha cervical de todo filme com aspirações ao Eterno é a analogia do stimmung poético, pois nunca existiu um logos mais generoso do que a poesia para integrar, em sua trilha pneumática, a todos os sonhos possíveis, inclusos aí os pesadelos urbanos epocais, além dos devaneios do flâneur: é um grande filme de seu tempo, e em consequência uma obra-prima do porvir.
Há algo no gesto ritualístico da culpa, que nos faz esconder nossa face diante da vergonha de ações as quais cometemos. O gesto é acentuado, quando incorporado por um cristão, ou pelo menos, um cético romano batizado pelas águas abençoadas de Cristo. Torna-se ainda mais enfático, se esse cristão ou esse cético romano é um homem ou uma pessoa que performa a masculinidade. Em Accattone (1961), de Pier Paolo Pasolini, as atitudes criminosas e maldosas de uma pessoa são confrontadas por si mesmo, não na crença de seus pecados, na confissão secreta das cortinas, mas no arrependimento escondido, nos cantos das periferias da cidade de Roma.
No primeiro longa-metragem dirigido pelo então jovem escritor, militante e cineasta italiano, a representação do protagonista como o herói operário em declínio com sua sobrevivência no pós- guerra, é substituída pelo criminoso sem pudor, um cafetão chamado Vittorio, mais conhecido como “Accattone”, que vive às custas da exploração sexual de sua esposa Maddalena. Vittorio não trabalha, aliás, repudia o trabalho com todas as suas forças. “Accattone”, em italiano, significa “o homem fora do mundo de trabalho”. O longa de estreia de Pasolini alcançou os cinemas no início da década de 1960, em um período considerado o epílogo do neorrealismo italiano. Apesar disso, há elementos que contradizem os argumentos e rotulações de Accattone ser considerado parte do neorrealismo. Além da dimensão épica e grandiosa da construção dos planos junto aos seus cenários, destoando de um olhar neorrealista sombrio e ferido, ainda há figura do proletário sendo questionada
Em um filme de protesto social, era esperado que o trabalhador tomasse o papel de herói, como é apontado pela teórica Maria Bethânia Amoroso, destacando a figura do então subproletário: o ladrão, o bandido, o marginal o qual “só seria aceito, desde que houvesse uma redenção, isto é, ganhasse consciência crítica ao final do filme”[1].
Com isso, Pasolini passou a ser observado com olhar de estranhamento pelos críticos e espectadores da época, que o julgavam como uma pessoa amoral e devasso. Tais julgamentos escondiam não somente o conservadorismo burguês da classe média por detrás de suas palavras, mas também o preconceito diante da homossexualidade de Pasolini.
A poesia gloriosa e santificada do cineasta italiano, intensificava a inexpressividade emocional masculina de seus personagens, sendo possível enxergarmos além de sua própria pele. Além disso, a fabulação com o cenário periférico e em reconstrução da cidade de Roma, constrói momentos próximos da metafísica, da pureza do corpo e da natureza, transitando entre o onírico e a sacralidade cristã, estabelecendo planos minimalistas contrastantes entre claro e escuro, imenso e pequeno, destacando ora o cenário ora a corporalidade e expressividade de suas personagens.
Em Accattone, o homem marginalizado é jogado de lado pela sociedade que nunca o estendeu a mão, o levando a miséria. Tamanha condição social abre espaço para relações em que a masculinidade é performada da forma mais opressiva e repressiva possível. Os abusos tornam-se uma rotina circular, a qual rebaixa aqueles que a questionam ou escolhem não reproduzir seus manejos. Pasolini reforça seu interesse em registrar o corpo masculino e as cicatrizes da inexpressividade contida, por meio de sua direção, com grande sensibilidade. O filme nos coloca em um universo pós-guerra de repressão social, escancarando as dinâmicas de núcleos masculinos que exercem um papel definitivo nas malícias e decadências de uma sociedade abandonada. Violência sexual, demonstração de força física, humilhações, repulsa pelo trabalho, pela lealdade e pelo amor, são rituais que servem como gestos de comprovação dessa masculinidade. Quem não participa desses ritos, não é aceito, torna-se motivo de piadas, é condenado a eterna solidão do “fraquejado”, como assim é visto o irmão de Vittorio, Sabino.
Já no início do filme, Vittorio reproduz tais gestos de comprovação de sua masculinidade diante da aprovação de seus amigos. O cafetão, em meio a um jogo de cartas, provoca um de seus colegas com a aposta de saltar de uma ponte, com estatura assustadora, ao rio abaixo, e sobreviver diante do vazio de sua coragem. Não é de se esperar, que muitos garotos, crianças, adolescentes, homens feitos e velhos, reúnem-se para observar ao ato de loucura de Accattone. Após uma breve oração à Nossa Senhora, o jovem salta em um mergulho olímpico. No entanto, não o vemos emergir das águas. Pasolini nos deixa com o mistério de sua sobrevivência, que logo é revelado no retorno do jogo de cartas. Todos os homens em silêncio. É então, quando vemos Accattone, cuspindo no rosto de seu amigo, perdedor da aposta.
As profundezas dessa masculinidade são claramente vinculadas ao crime destes homens. O tratamento deferido às mulheres as quais eles se relacionam, é puramente sexual e agressivo diante de sua retração emocional, tornando esse tratamento também parte do ritual de aceitação desse grupo. Maddalena, esposa de Vittorio, é explorada sexualmente por seu companheiro, manipulada mediante ameaças, recebendo a culpa por seus crimes. Ao tomar a coragem de denunciar um dos colegas do marido, é punida com imensa violência em retaliação por companheiros do denunciado. Na delegacia, Maddalena é confrontada com a decisão de condenar aquele o qual a machucou tanto. Nesta cena, Pasolini cuidadosamente nos coloca na mente de Maddalena. Enquanto os suspeitos são dispostos em frente a jovem mulher, sendo nenhum deles seus agressores do dia anterior, no entanto, ainda assim, eram agressores de muitas outras mulheres como ela.
Há uma dinâmica de moralidade pontuada não somente nos exercícios narrativos, mas também na movimentação da câmera de Pasolini, que percorre lentamente os rostos dos suspeitos, paralisando o movimento no rosto de alguém reconhecido pelo olhar subjetivo de Maddalena, elevando seu interior emocional com um zoom, nos aproximando deste sentimento e terrível decisão.
Uma das faces reconhecidas pela jovem é a de seu próprio marido, o qual poderia facilmente ser denunciado por muitos outros crimes. Ironicamente, é presa que ela encontra liberdade para denunciar a rosto do marido para a polícia. Apesar das orações feitas para Nossa Senhora, mãe misericordiosa, a condenação ao martírio veio de uma mulher, proclamando, assim, a tragédia.
O peso da culpa pelos “pecados” de Accattone o perseguem de forma, muitas vezes, supersticiosa, aproximando o destino do protagonista do crucifixo de Jesus Cristo, como é abordado por Amoroso1. São em momentos em que Accattone encontra-se sozinho, que o que é carregado em seu peito manifesta-se, um sentimento que Pasolini encontra representar na performance e na corporeidade da personagem, na face cabisbaixa e perdida, nas mãos que tentam esconder seu rosto, o levando momentaneamente ao acalento da escuridão. Essa manifestação é também presenciada verbalmente, quando Accattone pede perdão ao seu único filho, sem que ele ouça sua voz, momentos antes de furtar seu colar de ouro, na tentativa de surpreender sua nova paixão, Stella, em disputa com seu amigo “boa vida”, Pio. Há também o reflexo visual, em cenas que se assemelham ao cinema onírico de Federico Fellini, como a procissão de luto nas periferias de Roma, acompanhadas de duas crianças que fazem o “sinal de cruz” no instante em que Vittorio passa em frente a elas, hipnotizado pela caminhada religiosa, a qual mais tarde, próximo a fim do filme, é relembrada em seus sonhos com tamanha poesia da sobreposição de imagens e a repetição sonora da respiração de Accatone.
Os elementos sacros de uma fé cristã, não demonstram apenas um caráter cultural do cineasta, que apesar de ateu, cresceu em meio a religião católica, mas também uma escolha poética, que através da metafísica e da subjetividade invisível da santidade, consegue alcançar o coração de um homem que vive isolado de sua própria sensibilidade. São sinais os quais não surgem como uma premonição divina, uma mensagem dos céus anunciando seu destino. Aqui, a voz de Deus, é a voz de sua própria consciência.
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AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Nós, 2022, p. 24-25.
Em 1975, Martha Rosler faz Semiotics of the Kitchen, um filme que consiste em um abecedário sobre utensílios de cozinha listados cuidadosamente: a de avental, b de bacia, c de cortador de legumes. Antes fosse apenas um singelo inventário; Rosler pega nas mãos todos esses objetos e os transforma em armas, batendo, jogando, amassando, apertando. Rosler faz uma espécie de abecedário macabro e jogral funesto entre o objeto e o que se intenciona com ele.
Essa maneira de inventariar a violência por meio de objetos não é de toda desconhecida, se considerarmos o cinema de Júlio Bressane, por exemplo. Aqui, obviamente, me refiro aos filmes- irmãos Cuidado Madame (1970) e Memórias de Um Estrangulador de Loiras (1971) que possuem a mesma premissa: para matar, basta usar as mãos.
No entanto, se em Estrangulador de Loiras há uma espécie de filme estruturalista de variações sobre o mesmo tema[1], sendo um moto-contínuo moroso das mortes em uma rigidez beirando à vigilância, Cuidado Madame é o seu gêmeo espevitado, que anda pelas ruas, se movimenta entre os espaços e acima de tudo: Não tem medo de ser pego e muito menos de usar as mãos.
A malemolência dos corpos em cena e as idas e vindas das duas partners in crime junto dos olhares curiosos dos transeuntes e do escrutínio da câmera elástica, mas simpática às duas, faz com que todos sejam cúmplices dos mesmos crimes e que, no fim das contas, são todos justificados e justificáveis. Patrões horríveis, casas hostis. Nas palavras de Maria Gladys: se há salvação para tudo isso, peça para que Deus dê um pulo aqui embaixo, pois a barra aqui está violenta.
Mas para além da situação em que se encontram de extrema opressão sendo empregadas de clientes ricos e geniosos, Helena Ignez e Maria Gladys constroem o mundo de verdade apesar de tudo isso. Fora daquelas quatro paredes, nas conversas entrecortadas pelas ruas, inaudíveis, caóticas, ambas conversam sobre as coisas que as cercam com um interesse desinteressados, como um papo de lavadeiras: Um namoro falido, uma mãe doente, um corpo em desalinho, uma amiga que resolve se casar com um homem que trabalha em um seringal em Cuiabá (“Borracha? Que gelada, hein!”, diz Maria Gladys). Talvez, os momentos de maior vida se encontram ali, nas pausas para o cigarro, no som do rádio na sala, na cantoria de um cômodo ao outro. Helena Ignez e Maria Gladys exploram a geografia de Copacabana entre os turnos de trabalho: entre lavar a louça e degolar a patroa, há sempre tempo para ir à praia ao meio-dia ou, quem sabe, tomar um cafezinho.
Sobre os patrões? Nada que cabe a eles importa, de fato. Tornam-se apenas matérias desfiguradas, escandalosas, vis, meros adereços aos apartamentos emperiquitados. Os rostos assassinados não possuem qualquer expressão ou sequer identidade, e quando muito se tornam alusões, como no início do filme em que a voz de um homem diz: A empregada matou a minha mulher a facadas. E agora? Eu sou um viúvo fracassado. O Brasil é mesmo uma terra abençoada. Quem é que está dizendo isso? Não importa. É só mais um.
E tal como no abecedário de Rosler, a existência dessas pessoas se torna apenas um inventário de coisas vagas e desimportantes: um despertador, um aparelho de gilette, um sapato vermelho, um vestido. Coisas essas que podem ser achadas em uma casa ou outra. Tanto faz quem as possuía. O que importa é o que é feito com tudo aquilo.
Logo, a toda essa sequência de crimes e patrões mortos, o que os une é a falta de qualquer lastro de identidade; todos são exatamente iguais em morte e semelhança. Isso também parece uma característica inerente ao ofício da limpeza: quem já limpou uma casa, já limpou todas as outras.
E entre o ato de limpar e o de matar em Cuidado Madame deixa-se claro que um corpo estirado no piso limpo cheirando a cloro, ensanguentado e nu, só é parte de mais um dia em uma jornada de trabalho bem sucedida. Agora, basta ir para a próxima casa.
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1. A autora desse texto acredita que há uma relação direta entre o filme Zorns Lemma (1970), de Hollis Frampton e Memórias de Um Estrangulador de Loiras (1971), de Júlio Bressane. Mas, correndo o risco de parecer deslocada para o caro leitor, preferiu deixar essa discussão para outro momento.
No dia 11 de agosto de 1978, Wilson Pereira dos Santos é fuzilado pela polícia. Os “caras” estavam de tocaia na casa de sua companheira Geni, que também foi baleada durante o tiroteio. Nascido no Paraná, Wilsinho Galiléia foi manchete no jornal pelos seus crimes desde os 14 anos, virando uma espécie de lenda urbana pelas regiões em que atuava. Ele foi morto apenas uma semana após ter completado 18 anos no bairro São João Clímaco, região sudeste de São Paulo.
Pouco tempo após sua morte, João Batista de Andrade dirige e escreve um documentário para televisão em que investiga a figura de Wilsinho Galiléia o caracterizando como personagem urbano. Censurado pela ditadura, o filme disseca a figura do bandido a partir da mescla entre a reencenação de fatos e o relato testemunhal.
O filme começa na ação: a câmera na mão filma uma casa através de zooms. A montagem inscreve jump cuts à cena. No som, escutamos uma gritaria seguida de tiroteio. Essa cena é uma reencenação da morte de Wilsinho. Imediatamente depois, somos levados para os arredores, onde o documentarista investiga o ocorrido. Alguns vizinhos ouviram, outros não quiseram saber o que aconteceu. Outro menciona que ficou em casa como o radialista Gil Gomes tinha mandado em seu programa. “Eu estava vendo televisão quando escutei os tiros.”, diz o homem.
A partir daí, o filme inicia o jogo de alternações entre as entrevistas e as encenações. Depois dos relatos, Paulo Weudes, que interpreta Wilsinho, entra em cena como O Estranho Sem Nome (1973) de Clint Eastwood: um fantasma. A música emoldura seu silêncio. Wilsinho é um vulto na cidade. Mesmo morto, ainda existe na boca do povo – é uma assombração.
Os testemunhos ditam o fluxo das reencenações. Nessa primeira parte, o diretor foca na visão da polícia, que traça todo o histórico criminal do bandido enquanto mostra as reportagens de seus atos. A câmera dá um zoom in na foto de Wilsinho enquanto seus interlocutores narram seus assaltos e homicídios.
Seus olhos estão tapados, pois ele cometeu todos esses crimes enquanto menor de idade. Com um corte, vamos para um close do intérprete de Galiléia. Enquanto ele ri para a câmera, a voz de um homem o descreve: “Mal, frio e perverso”. A dinâmica polícia/jornal dita um pensamento, sobretudo, superficial – uma visão calcada apenas em seus atos criminosos.
O ponto de virada do documentário é quando Bisquí, um dos seus parceiros de crime, depõe, na prisão, sobre Wilson. A partir desse momento, as entrevistas não possuem mais o dinamismo da primeira parte, as falas percorrem um tempo mais extenso, criando uma espécie de mosaico de pontos de vista sobre a vida e obra de Wilsinho Galiléia. Uma das entrevistadas descreve Wilson como um cara tranquilo, diferente do que a mídia o colocou. Chiquinho, outro parceiro do rapaz, diz que seu objetivo com os assaltos era tirar uma de rico, fingir ser ‘filhinho de papai’. As perspectivas vão se multiplicando, o que complexifica o retrato do personagem feito por João Batista de Andrade. A cena seguinte revela outros personagens da reencenação, como Ramiro, irmão mais novo de Wilsinho. Os adolescentes se divertem no carrinho bate-bate ao som de Erasmo Carlos, filmados por câmera trêmula, acompanhando a intensidade do grupo de amigos. A montagem paralela inscreve relances de corpos que ele matou no quadro, tensionando a cena.
O grupo vai para outro brinquedo no parque de diversões e o jogo de paralelismo segue com a manchete: “Wilsinho Galiléia, o jovem infrator que se torna mito.” A música para completamente. Em um plano aberto e mais lento, seguimos Dona Eliete, a mãe de Wilson, que leva flores para seu túmulo. Nessa sequência o filme assume lidar com a contradição, juntando discursos que vão além do policial e midiático. Diante disso, João Batista de Andrade entende que é necessário entrar nas entranhas da história, para contá-la. Diferente do cowboy de Clint, Wilson tem nome e tem passado.
Seguimos Eliete na favela onde ela mora enquanto conta a trajetória de Wilsinho do seu ponto de vista. Ela fala das diversas passagens que seu filho teve nas delegacias, e que mesmo sendo uma criança, sofria diferentes tipos de tortura policial. Ramiro, o caçula, foge da câmera achando ser a polícia. Sem qualquer corte, vemos ele correndo. Os jornais o colocam como “sucessor de Wilsinho Galiléia”, criando uma perseguição ao menino de 13 anos. Sua mãe, então, o chama de volta e garante que ele fale à câmera. Ela faz o mesmo com os outros três filhos que são entrevistados enquanto presos, fazendo eles denunciarem os abusos que sofreram dos policiais. Disso em diante, as encenações começam a ser interrompidas pelos próprios intérpretes. No meio da cena a personagem para, olha para câmera, anuncia seu nome, qual personagem está representando e sua história.
Na sequência final, João Batista de Andrade filma a casa de Wilson, que está totalmente destruída. “Ainda hoje a ROTA estava procurando por ele. Morreu? Eu não vi.”, diz o vizinho. O personagem de Wilsinho aparece andando pelos escombros. Logo depois da cena, um letreiro aparece, dizendo que Ramiro foi assassinado pela polícia depois das filmagens. Os “outros Wilsinho Galiléia” nascem e morrem pelas instituições de poder. O bandido esquematizado pela polícia não é o mesmo bandido que assalta o bar, que não é mesmo bandido de filme de cowboy. O documentário investiga a estrutura social que leva a manchete de jornal, filmando o que não quer ser mostrado. Adentrando ruínas.
No texto Da nocividade da linguagem cinematográfica, de sua inutilidade, bem como dos meios de lutar contra ela[1] Luc Moullet defende o fim da “linguagem cinematográfica” em prol da “arte cinema”, manifestando uma oposição completa entre elas ao indicar um sufocamento e invasão da linguagem sobre a arte. Essa cisão é feita por uma crença de que a linguagem cinematográfica seria uma espécie de comunicação reprodutora do objeto artístico, de um roubo da sua aparência sem a sua aura. Em sua acepção, a arte é um bem subjetivo e original, é individual, comunicação em um só instante, própria daqueles artistas. Em oposição, a linguagem é feita pelo espectador que em sua primeira etapa recebe o objeto artístico. E em sua segunda etapa, a profana, o espectador torna-se realizador através da intercomunicação ao refazer índices anteriormente criados pelo artista da obra original. Para Luc Moullet a linguagem é o ato de refazer o que não nos pertence. A linguagem é o roubo[2].
Em uma lógica contrabandista e desviante, posiciono a ideia de que a linguagem cinematográfica é o lugar artístico do cinema justamente por seu lugar dialógico. Não por uma oposição direta a este pensamento supracitado, mas sim por um vigor propositivo do roubo. De um deslocamento de um pensamento individualista junto a um desprendimento da ideia de posse das obras rumo à possibilidade de livre utilização e diálogo com obras anteriores. Seja de maneira direta ou indireta, por aproximação, incorporação ou rejeição de determinados modos e objetos cinematográficos.
Com isso, uso do termo “contrabando como fingimento” definido por Luc Moullet de que “contrabando é fingir que um produto é outro” feita a partir da fala do diretor norte-americano Martin Scorsese. O artista afirma que uma boa parte dos cineastas americanos agem como contrabandistas ao fingirem que o filme é de um gênero ou de que certas obras são adaptações fidedignas de outras e vice versa. Junto à ideia a acepção mais recorrente de contrabando como o ato de circular mercadorias, geralmente roubadas, de maneira clandestina. Ao transpor para o cinema, podemos articular ao menos dois modos de contrabando:
O do comércio e circulação dos filmes como mercadoria e a pirataria envolvida. Seja de maneira gratuita com os cineclubes e sua distribuição virtual por acervos em drives, nuvens, torrents e streamings piratas; ou de modo pago com os DVD’s piratas, “gato nets” e drives.
2. O do contrabando como método na feitura fílmica. Seja pela reutilização de arquivos de terceiros — roubados ou restituídos por direito de utilização livre —, pela citação direta ou indireta ou pelo plágio.
Partindo da máxima de Pierre-Joseph Proudhon que a propriedade é um roubo pelo sistema capitalista, a atenção nesse texto se dará na circulação gratuita, evidenciada por uma cinefilia digital e seu desdobramento com os filmes de arquivos de Cinema-Remix e seu Cine-Sample[3].
As imagens que são produzidas no interior deste sistema que beneficiam e são beneficiadas são fortalecidas pela ideia de propriedade intelectual e privada. Acabam tautologicamente sendo um roubo pela exploração assalariada e a restrição de circulação para aqueles que produzem o imaginário dessas propriedades intelectuais no capital cultural.
O ditado popular “Ladrão que rouba ladrão, tem 100 anos de perdão” sugere a defesa do roubo como método político contrário à ideia de arte original e imaculada, mas não só. Esta tonalidade irônica se alinha a um valor da restituição dessas imagens-mercadorias para o bem público, seja pela livre circulação dos filmes, mas também para maior abertura ao diálogo, amplamente presente na literatura de romance, poética, acadêmica e na música com o remixes, mashups e reinterpretações (covers).
Propus a expansão do conceito de cibercinefilia em minha dissertação para além das práticas dos frequentadores e redatores de blogs de crítica no início do séc. XXI, passando pela construção de uma curadoria e acervo pessoal por meio dos downloads ilegais e envolvendo um pensamento mais amplo, vinculado a cineclubes e festivais de cinema. Com isso, destaco o valor comunitário da cinefilia digital pelo diálogo possível entre cinéfilos – pesquisadores, realizadores, críticos, curadores e cineclubistas via fóruns, redes sociais e sistemas p2p (peer to peer). Resgato tal ideia para destacar a acessibilidade como um fator crucial na renovação de cânones que, em determinados contextos, foram relegados ao ostracismo. A cibercinefilia possibilitou a ampliação das discussões sobre obras, movimentos e textos, além de fomentar um maior pensamento sobre o cinema como campo, para além do filme em si.
Essa prática só foi — e continua sendo — possível graças ao contrabando que transforma a forma- valor marxiana dessas obras — antes restritas ao capital ou ao esquecimento — em um capital cultural acessível ao bem comum.
Ideias do primórdio da internet e da transição do milênio como o copyleft, a cópia de livre circulação, e o código aberto que se envolvem com a noção de contrabando; e a engenharia reversa não só foi como é crucial para o desenvolvimento intelectual, comunitário e antropofágico do cinema enquanto estudo, crítica e produção fílmica. Isso também é observado com a pluralização dos cineclubes, fóruns e drives de cinema que acabaram incorporando em nosso ethos de cinema terceiro mundista uma ética contrabandista de consumir cinema perante a sua forma-valor no capitalismo. Nesse sentido, nossa forma epistemológica de consumir, produzir e estudar cinema é transgressora, mesmo que atualmente em disputa com os grandes serviços de streaming.
Quando essa prática é transposta para a produção fílmica, há um estranhamento entre a liberdade do que se consome e uma restrição de acesso do que se produz e de como os filmes são partilhados. Muitos realizadores bebem de diversas fontes que só acessam por meio da pirataria, mas por conta de inúmeros fatores comerciais, jurídicos e contratuais da produção à distribuição, seus filmes se resumem aos pequenos circuitos comerciais; e justamente por causa da intimidade e da origem do cinema com o capitalismo, sua dimensão industrial e espetacular. Portanto, é neste vínculo que a defesa do roubo age como prática de dissolução ou ao menos de transgressão da ideia de propriedade intelectual aos moldes do capital. Seja para o consumo/distribuição quanto para a feitura. Assim, o roubo simultaneamente nos serve como uma metodologia de prática fílmica contra-hegemônica que nos possibilita pensar a inclusão de outras obras como forma de diálogo crítico, calcado na linguagem cinematográfica e na propriedade privada.
No livro organizado por Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega, Haroldo de Campos – Transcriação, há uma série de textos do autor que envolvem a tradução e sua construção transcriadora, profana, fingida, ficcional e transtextual. Ao trazer a ideia de contrabando como fingimento, resgato, em um de seus textos — Tradução e Reconfiguração: O Tradutor como Transfingidor —, seu argumento de como a transficcionalização, na tradução não servil/literal[4], age como um “ato de fingir”. Isso ocorre por ser caracterizada como uma transgressão de limites que reprocessa o objeto original e desmistifica preceitos de pureza fidelidade ao original.
Essa transgressão é defendida justamente por entender a tradução como crítica ao texto original, de modo em que os elementos atualizados pelos novos ‘atos ficcionais’ de seleção e combinação citam tanto os elementos presentes quanto os ausentes, relacionando-se assim dialogicamente em uma arqueologia de mídias alegóricas.
Com isso, transponho o conceito de transcriação e transficcionalização tanto para a adaptação de diferentes linguagens artísticas (poesia-música, música-literatura, literatura-cinema, etc.), quanto para para obras que utilizam materiais de outrem. Esse fingimento transficcional se deve à importância da seleção, combinação e desnudamento da ficcionalidade como procedimento de transgressão dialógica do material anterior, ou seja, da relação crítica do processo e de sua conexão com os elementos atualizados. Pela seleção e combinação — sua coleção e alegoria dos elementos presentes e ausentes neste diálogo construído entre hipotexto e hipertexto.
Desta forma, utilizo o termo cinema-remix para aqueles filmes que de maneira transtextuais usam outros arquivos para produzir dialogicamente uma terceira obra, seja para referenciar e discutir esta primeira ou para produzir algo completamente dissonante, quimérico e frankensteiniano, mesmo que mantenham (ou não) os vestígios das amostras utilizadas.
A exemplo disso há curtas-metragens brasileiros contemporâneos como Filme dos Outros (2014) e Aluguel: o filme (2015) de Lincoln Péricles, Thinya (2019) de Lia Letícia e o média-metragem Caixa Preta (2022) de Bernardo Oliveira e Saskia que entram nessa categoria mista de cinema-remix contrabandista pela discussão sobre posse e identidade relacionados com o uso de arquivos.
Seja através das imagens utilizadas de dispositivos roubados em Filme dos Outros; Pela transcriação malandra e fingida de Aluguel: o filme e dos planos utilizados e remixados da série televisiva Chaves; da inversão em Thinya da língua alemã pela Ia-tê dos Fulni-ô na leitura de textos de Hans Staden sobre suas expedições colonizadoras alemãs nas Américas, em composição distanciada com fotografias da sociedade alemã do século XX. O filme cria um estranhamento entre imagem, eu-lírico e texto. Também há o uso quimérico de arquivos numa espécie de Atlas Mnemosyne de Aby Warburg remixado de imagens de questões raciais em Caixa Preta que produz um diálogo mapeado de uma série de experiências, com suas contradições, de uma negridade[5] brasileira, sem um ponto ideológico central.
Assim, esse cinema-remix está profundamente inserido nas ideias de linguagem rejeitadas por Luc- Moullet pelas diversas formas de diálogo entre as obras textuais — por isso a dimensão transtextual — seja de maneira fingida, desviante ou restitutiva. Evita, portanto, cair em um valor da comunicação/linguagem como algo meramente servil ao público ou a arte como campo e sim que mobiliza esteticamente como metodologia e técnica política. Do desvio como importante técnica de fuga contrabandista, onde o filme fingido, roubado e/ou adulterado se apresenta por um distanciamento com uma dupla função estética.
É pela via de diálogo que diz pela boca do outro; e ao se relacionar com um terceiro é englobado totalidade como uma citação, com o valor de resgate memorial desse elemento atualizado e remixado. Nesse sentido, apelo para um cinema contrabandista: para que filmes roubem, sequestrem, dilapidem, transformem, surrupiem, desbaratinem, profanem e transgridam de alguma forma estas imagens apropriadas. Seja na circulação clandestina de filmes ou na prática do cinema-remix, como uma forma de resistência à lógica capitalista da propriedade intelectual e à ideia de arte como bem imaculado.
Aluguel: O Filme (2015) de Lincoln Péricles
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1.Texto transcrito de uma mesa-redonda da mostra de Pesaro em 1966 presente no catálogo da Mostra Luc Moullet – Cinema de Contrabando, 2011.
4. [N do E:] Tradução literal ou servil é aquela que busca fidelidade à palavra que se ancora em um ideal de pureza deste sentido eignora as características formais, criadoras e estéticas da prática tradutória.
Esta manhã, às 10 horas, na via dei Fiori, no conhecido bordel…
O bordel, velho conhecido da história do cinema, é o palco romanesco no qual se desdobra a conspiração anti-fascista do Amor e Anarquia (Film d’amore e d’anarchia. 1973), de Lina Wertmüller. Naturalmente, a câmera enquadra as prostitutas que ali trabalham, embaladas pela trilha de Nino Rota, e garante a elas o crédito de protagonistas do esquema. Mas o subtítulo, transformado em epílogo, continua: “um homem não identificado, tomado por um ataque súbito de loucura, disparou em uma patrulha policial durante uma inspeção de rotina”. A cena se desdobra entre as prostitutas Salomé (Mariangela Melato) e Tripolina (Lina Polito) e o anarquista caipira Tunin (Giancarlo Giannini), que vai a Roma para terminar o trabalho de seu amigo, morto ao tentar assassinar Mussolini. A cena descrita no epílogo resume a empreitada de Lina Wertmüller: narrar a vida desses bandidos apagados da história da Itália fascista, entre loucos, prostitutas e anarquistas.
Aqui se destacam as prostitutas: Salomé e Tripolina, entre as dezenas de outras garotas que enfeitam o bordel, poderiam repetir as performances das Cabírias da história do cinema, mas se transfiguram em outras imagens ao se envolverem com o esquema anárquico de Tunin. Uma delas é a da prostituta anti-fascista, figura real apagada da história italiana: trabalhadoras do regime de Mussolini, cujos funcionários controlavam e frequentavam as chamadas “casas de tolerância”, aparecem nos registros policiais condenadas à institucionalização por subversão ao fascismo. O livro-reportagem Puttane antifasciste nelle carte di polizia conta histórias como a de Maria Degli Espositi, detida em 1928 por indecência.
Após dizer ao policial “se Mussolini estivesse morto, você não estaria me prendendo”, somaram-se à acusação de Maria os diagnósticos de “louca e paranóica”, rendendo-lhe mais de dez anos de institucionalização.
O controle do corpo das mulheres, sobretudo das mulheres das ruas, é uma constante de regimes autoritários. Mas a imagem subversiva evocada por Wertmüller transcende aquele contexto, refletindo na imagem da trabalhadora do sexo através dos anos e do mundo – discussão esta em voga desde a vitória de Anora (Sean Baker, 2024) no Oscar deste ano. Dedicado às trabalhadoras do sexo, o prêmio levantou estranhíssima onda de misonigina no público brasileiro, cuja história do cinema, no entanto, é repleto de histórias como aquela. A presença cinematográfica da prostituta entre bandidos e mocinhos não é à toa, mas representativa.
Deixando de lado o voyeurismo, Walter Benjamin, em Passagens, evoca a imagem da trabalhadora sexual enquanto exemplo do projeto capitalista moderno: “ao mesmo tempo vendedora e vendida”. No bordel, ainda, a mulher não aparece apenas enquanto mercadoria, “mas, num sentido preciso, como artigo produzido em massa”. Em resumo, a imagem da prostituta ilumina os cinemas mundiais pois potencializa os efeitos da exploração, da objetificação e da alienação capitalista, sofrida por todo trabalhador, em um só corpo. A alegoria datada é renovada por outro aspecto levantado por Benjamin: enquanto mulher, a prostituta não é apenas vítima, como todo trabalhador, mas também agente capaz de expor e destruir o sistema através da sexualidade. Ao negar o dogma essencialista querido ao fascismo e ao capitalismo, desdenhando de seu papel biológico enquanto “reprodutora” e negando ao sexo seu caráter natural, escolhendo o cultural, ela se revela politicamente subversiva.
Frequentado sobretudo por oficiais do governo fascista, em Film d’amore e d’anarchia, as forças subversivas confluem para o bordel quando a figura do anti-fascista encanta as duas garotas, seja pela anarquia, com Salomé, ou pelo amor, com Tripolina. Mas nas imagens de Wertmüller há algo de ambíguo sobre a relação entre os três personagens: um Tunin passivo é levado a ação pelas duas prostitutas até que, no último instante, elas decidem impedi-lo. O personagem de Giannini é passivo até o último o limite – e lhe rendeu o prêmio de melhor ator no Festival Cannes – e pede para que Tripolina o acorde na hora certa para o atentado. Quando ela não o faz, explode a cena descrita na epígrafe, quando Tunin vira enfim o anônimo que atirou contra a patrulha.
Nas margens da sociedade, loucos, anarquistas e prostitutas fazem história em silêncio. Já nas margens do cinema, elas deixam de acompanhar os bandidos e tomam as armas em suas mãos.
Em Film d’amore e d’anarchia, o mundo em que os espaços públicos, dominados pelo poder fascista, são acinzentados e vazios, o bordel, povoado e colorido, é casa de prazeres e de políticas revolucionárias.
Riso, gozo e revolução estão nas mãos dessas “putas sentimentais de merda”, como descreve Salomé ao falhar da conspiração, cujas condições sociais escancaram e fazem troça de um capitalismo sempre autoritário. Um pouco como a Medusa de Hélène Cixous, Lina Wertmüller escolhe não apenas denunciar a imbecil máquina fascista, mas, pelo teatro da sexualidade feminina, histerizar o espaço social e, enfim, rir.
A primeira sequência de Câmara Escura (Marcelo Pedroso, 2011) é reveladora de seu todo. O fragmento de pouco mais de um minuto constitui a imagem-síntese de um movimento de guerrilha, de uma obra bélica, de um filme terrorista. Situada em uma rua tranquila de classe média recifense, uma panorâmica que vai do céu à rua revela uma casa qualquer, com muros altos dos quais só é possível avistar a copa das árvores e o telhado da residência, além de cercas elétricas e câmeras de segurança. O aparato de defesa protege uma fortaleza quase impenetrável, se não fosse pelo “dispositivo de infiltração”, nas palavras de Mariana Souto, que Marcelo Pedroso planta na porta dessa casa. À medida que o plano avança, aproximamo-nos da entrada e compreendemos que se trata de um POV, mas não um ponto de vista qualquer: é a visão da própria bomba, instalada à luz do dia nessa calçada. Ainda manuseado por Marcelo Pedroso, o dispositivo tenta adentrar ao interior do lote através do olho mágico disposto no portão, mas, sem sucesso, opta por penetrar a residência de outro modo.
Contudo, há uma trapaça, uma tática para que esta bomba passe do muro para dentro. Pedroso não põe de cara suas cartas à mesa e precisa ludibriar o destinatário para que a operação seja efetivada. Não há maneira segura de filmar o inimigo, é preciso driblar, falsear, trapacear. Em planos-detalhe, ainda no início do filme, vemos um par de mãos — provavelmente as do próprio realizador — preparar uma caixa com esmero e delicadeza. Como um cavalo de Tróia, a caixa de madeira é lixada, envernizada e revestida internamente com um macio tecido verde-musgo, abrigando a pequena bomba — ou melhor, o dispositivo de registro. Feito isso, todo o arsenal está pronto. Câmara Escura, portanto, se dá em um procedimento relativamente simples e possui a repetição de um método para adentrar a cada um dos lotes: Marcelo Pedroso toca o interfone da casa, anuncia que há uma encomenda para os residentes, corre até o carro — que o filma à distância — e o veículo acelera depressa em rota de fuga. O que poderia assemelhar-se a uma brincadeira infantil de tocar a campainha e sair correndo ganha, aqui contornos de uma ação terrorista, criminosa, bandida. A postura do realizador (e da equipe) é a de alguém que acabou de plantar uma bomba e precisa fugir rapidamente para não ser atingido pela explosão.
Feito esse primeiro movimento, no dia seguinte, a equipe de filmagem retorna às casas onde os dispositivos foram deixados com o objetivo de recuperar as imagens e tentar justificar seus “crimes” de invasão. Finalmente convidados a entrar em território inimigo, a câmera escondida que mira o chão endossa a dimensão de marginalidade, de coisa “errada” dessa postura. Ainda que por vestígios de imagens, Pedroso insiste na dimensão do registro desse confronto. Câmara Escura é um curta em que o processo de feitura e a materialidade da obra caminham juntas.
Trata-se de um filme-processo ou, melhor dizendo, de um filme em processo. Como o próprio realizador diz nas entrelinhas, sua forma e sua feitura tateiam o terreno da descoberta conforme as filmagens se desenrolam. Contudo, ainda que Pedroso indique certa abertura ao mundo filmado, o cerne fílmico indica uma rigidez no gesto: tocar o interfone, entregar a caixa, sair em fuga e voltar no dia seguinte para obter acesso às imagens.
Na repetição do gesto, torna-se possível identificar mais um padrão: as residências invadidas por esse dispositivo-câmera-bomba. A descrição feita acima, ainda que referente à primeira residência que o filme nos mostra, é representativa de todas as outras: muros altos, cerca elétrica e câmeras de segurança apontadas para a rua que dificultam não somente o acesso ao interior do lote, mas também qualquer resquício de comunicação ou visibilidade.
Nesse sentido, mais do que um “dispositivo de infiltração”, temos um dispositivo de relação, ou melhor, um dispositivo que constata a não-relação entre quem filma e quem foge da filmagem. A câmera, portanto, surge como delatora das barreiras entre os de dentro e os de fora, entre a via pública e os esconderijos. Os muros separam as classes e o filme evidencia o confronto, o dispositivo torna a propriedade vulnerável e o procedimento emerge como uma maneira de penetrar a fortaleza onde esses “outros” se escondem.
Sob diferentes estratégias, é curioso notar que às margens do período histórico em que Câmara Escura foi realizado, um forte interesse na vida privada da classe média tornou-se tema recorrente em diversos documentários e documentaristas brasileiros, também em algumas ficções como O Som Ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012) e Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015). Contudo, o que há de vizinhança nesses filmes é um sobressalto do dispositivo para acessar o modo de vida desses “outros”. É como se os filmes (e realizadores) constatassem que não é mais possível estabelecer uma relação cênica entre o “nós” e o “eles”, de tal modo que é preciso que a câmera seja mediadora desse confronto. Isto é, o dispositivo surge como delator de uma não- conciliação entre classes. Na própria filmografia de Marcelo Pedroso podemos pensar em Pacific (2009) como um exemplo possível. Distante do banditismo de Câmara Escura, o filme é realizado inteiramente com filmagens feitas por passageiros de um cruzeiro que carrega o mesmo nome do filme. A postura aqui é observar a vida desses “outros” a partir de uma autoinscrição desses sujeitos em cena — ou seja, eles próprios têm “controle” sobre seus modos de representação. Quem filma é também o filmado.
De modo similar, Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012) também partilha de algumas estratégias de filmagem: Mascaro dá uma câmera para sete adolescentes filmarem o cotidiano de suas empregadas domésticas. Aqui, há também a dimensão de ceder o dispositivo ao outro, entretanto, diferentemente de Pacific há um embate de classes intrínseco à cena: o patrão que filma a empregada. Podemos pensar ainda em Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, 2009) ou Vista Mar (Victor Furtado, Rodrigo Capistrano, Pedro Diógenes, Claugeane Costa, Henrique Leão e Rúbia Mércia, 2008), nos quais os realizadores precisam blefar de suas verdadeiras intenções para obter acesso a luxuosos prédios ao redor do Brasil e aos modos de existência de seus moradores — quase como um filme etnográfico entre sujeito e objeto. Ou também em Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2014), em que Lincoln sampleia imagens extraídas de celulares roubados para fazer um filme em que “a classe média se filma e nóis assiste”, como indica sua sinopse.
Portanto, o que há de comum em todos esses filmes é a necessidade de sabotar, ludibriar, ceder o dispositivo para capturar imagens, travar confrontos e expor as contradições entre as classes. Se, nas palavras de Jean-Claude Bernardet “a classe média não se autorrepresentava no cinema brasileiro”, o que realizadores como Péricles, Pedroso e Mascaro fazem, enquanto operação, é inverter essa lógica: tornam visíveis os modos de vida desses “outros”, lançando luz sobre a caverna dos leões. Em maior ou menor grau, expõem as vísceras e contradições de uma classe que não deseja ser vista, que se oculta atrás de câmeras e muros.
De volta à Câmara Escura, mais do que capturar as imagens do interior dessa fortaleza, o filme persegue o procedimento que ele mesmo criou. Em outras palavras: o gesto pelo gesto, o crime pelo crime. Isto é, não se trata de devolver o olhar àqueles que direcionam suas câmeras de segurança para a rua, mas de transformar a objetiva em um artefato de violação, em um dispositivo de violência de classe.
Nesse sentido, é preciso ir onde o inimigo está, avançar sobre seu forte, travar um confronto em sua própria propriedade. Se, em um primeiro momento, temos a lente que mira a rua e viola o anonimato do espaço público, o dispositivo de Pedroso assume uma dimensão terrorista ao violar o direito à propriedade. Portanto, no curta a lente é um objeto de uma dupla violação: se a classe média-alta tem o direito de nos filmar na rua, também temos o direito de filmá-los dentro de suas propriedades.
Por esse ângulo, é irônico notar como os personagens relatam pavor ao descobrirem que estão sendo gravados. Em um dos momentos em que o filme explicita ainda mais sua postura, os relatos de susto são sobrepostos a imagens das câmeras de segurança das residências em questão. O gesto não apenas ironiza o relato, quase desqualificando-o, mas também torna seus procedimentos excessivamente didáticos. Se não estava claro antes, agora está. Ou seja, mais do que o medo de ser invadido, é o pavor de ser visto — “eu não quero minha imagem em filme seu, eu não autorizo porque isso aí é um crime”, diz um dos personagens.
Aqui, reside um outro duplo que tange à propriedade. É curioso notar que, apesar de todo o esforço, o que se obtém enquanto matéria é somente rastros de imagem, vestígios. A lente que surgia como artefato violador só deflagra uma das partes: a visualidade dos “de dentro” é preservada, ao passo que os “de fora” são expostos — “quem está falando com a gente? É aquele moreno aqui no portão?”, identifica uma das invadidas pela câmera de segurança que vigia a equipe de filmagem. Frente aos limites da visualidade, o que emerge como verdadeiro artefato violador é aquele que transpõem as barreiras do visível: o som. Não que isso signifique que o som pertence à ordem do invisível e sim que seu aparato de visibilidade dribla as vigas de concreto, delata quem se esconde nas sombras. Em Câmara Escura, a classe média, portanto, se manifesta principalmente na dimensão sonora, espaço onde seu aparato de controle da autorrepresentação escapa.
É nesse âmbito que emergem falas de caráter punitivista, como em Um Lugar ao Sol, e o jogo de gato e rato parece, finalmente, encontrar sua finalidade. Enquanto a preservação do anonimato está ligada à imagem, as vozes emergem no filme com a mesma clareza de uma foto 3×4. A dimensão do relato adquire força e, ao que poderia ser caracterizado como “um olho não governado pelas leis da perspectiva”, talvez pertença a outro sentido. Sons apesar de tudo?
Há no cinema mundial a tradição de retorno às narrativas de personagens marginais, párias, criminosas. Isso se dá tanto com a autoconsciência temática e estética explicitada no cinema moderno ao redor do mundo a partir dos anos 1940, quanto em narrativas mais clássicas. Tal esboço de uma delimitação histórica não pretende ignorar, contudo, complexidades e nuances; Há movimentos anteriores, como o expressionismo alemão, o cinema soviético e as vanguardas francesas dos anos 1920, entre outros, como formas também conscientes, autorreferentes, até mesmo com elaborações teóricas; ou mesmo toda a disputa tecnológica, epistemológica e de linguagem desde a invenção do cinematógrafo, no final do século XIX. Chegando até a gradual prevalência da narrativa clássica, já na década de 1910. Todos, em maior ou menor grau, com a presença de personagens e tramas criminais — no primeiro cinema temos filmes como A Subject for the Rogue’s Gallery (1904, A. E. Weed), curta que brinca com retratos policiais que começavam a se popularizar com a implementação da fotografia no século XIX ou o clássico O grande roubo do trem (The Great Train Robbery, 1903, Edwin S. Porter). Western, film noir ou Wuxia[1] muitos são os subgêneros e tendências centrados nas histórias de crimes. Ainda que possamos traçar essas referências anteriores, sempre passíveis de complexificação, a intenção deste texto não é trazer uma genealogia totalizante da questão; importanta a contextualização, destacar pontos significativos para reflexões, antes de atingir o cerne do recorte – o cinema queer contemporâneo.
Com a inflexão marcada pelo neorrealismo italiano nos anos 1940 em direção aos personagens párias e criminais, há filmes como Ladrões de bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) – por demais evidente nesse sentido, desde o título – ou mesmo com personagens envolvidas em “crimes de subversão”, como o pároco de Roma, cidade aberta (Roberto Rossellini, 1945) ou os guerrilheiros de Paisà (1946). Aqui, vemos o escancaramento da politização das relações entre cinema e criminalidades.
Seguem-se, então, os “cinemas novos”, de finais dos anos 1950 até os anos 1970. Grosso modo, com uma clara predileção pelos párias — da Nouvelle Vague com Godard, em Acossado (1960) e em Bando à parte (1964), O pequeno soldado (1963), Tempo de guerra (1963), etc; Truffaut, em Os incompreendidos (1959) e sem nos esquecermos de Jean-Pierre Melville, com o emblemático O samurai (1967). A nuberu bagu em filmes como Conto cruel da juventude (1960), de Nagisa Oshima, Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) de Shuji Terayama, A mulher inseto (1963) de Shohei Imamura, ou Tóquio violenta (1966) de Seijun Suzuki, etc. até o cinema novo alemão com O medo do goleiro diante do pênalti (1972), de Wim Wenders, O amor é mais frio que a morte (1969) de Rainer Werner Fassbinder, todos eles acompanham personagens criminosos; por vezes, como em Godard, Suzuki ou Fassbinder, fazem referência às histórias de gângsteres hollywoodianas, reinventando-as.
Podemos observar uma série de configurações no cinema queer contemporâneo que além de fugir a padrões normativos em termos morais, transgredindo tabus arraigados, não raro apresentam também contravenções à lei. Podemos reportar, para essa vertente queer, à herança de artistas LGBTQIA+ dos primórdios, extravasando até mesmo o campo do cinema, com manifestações na literatura, por exemplo, com Jean Genet (Diário de um ladrão, Nossa Senhora das Flores, Querelle), William Burroughs (Almoço nu, Junkie, Queer)[2], Allen Ginsberg (Howl), Oscar Wilde (O retrato de Dorian Gray), entre outros autores, alguns dos quais tiveram livros censurados e chegaram a enfrentar disputas em tribunais por conta do conteúdo de suas obras. No caso de Wilde, sua prisão, motivada por um relacionamento homossexual, crime na Inglaterra até os anos 1960, foi “comprovada”, em retrospecto, por passagens de seus livros, em especial de O retrato de Dorian Gray. Foi a primeira vez que o termo queer constou nos autos oficiais, para imputação de um crime. Antes disso, no contexto anglófono, cabia ao juízo popular a atribuição do “queer” a pessoas “estranhas” em termos de gênero e sexualidade, com a tradução literal de “aberrante”, “anormal”, “bizarro”, etc. O termo só seria ressignificado e apropriado pela comunidade queer a partir dos anos 1960, sendo um marco histórico nesse sentido a revolta de Stonewall (1969), em Nova York, em que frequentadores do bar Stonewall Inn, de público queer, foram reprimidos pela polícia e resistiram à violência, encabeçados por travestis negras e latinas, como Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, em um processo de culminância e inspiração para uma série de movimentos pró-direitos das pessoas LGBTQIA+ ao redor do mundo.
Se recuarmos mais no tempo, veremos outros casos paradigmáticos da criminalização de práticas (posteriormente convertidas em identidades, com a invenção da sexualidade) dissidentes. Desde o Brasil colonial, no século XVI, temos a condenação à morte por crime de “sodomia” (o primeiro condenado no Brasil foi Tibira, uma pessoa indígena morta na boca do canhão, depois convertida em São Tibira do Maranhão, por seu martírio inspirador da luta LGBTQIA+). No século XVIII, o Marquês de Sade é outra figura emblemática, também condenado por sodomia, entre outros crimes, e aprisionado na Bastilha.
No cinema queer moderno temos Pasolini, em que não só as transgressões internas ao dogma religioso se operam como também a transgressão de tabus que, não raro, envolvem paixões assassinas e sanguinárias – em Medeia (1969), há ritos sacrificiais, assassinato dos filhos; Édipo Rei (1967) envolve o assassinato do pai e a prática incestuosa com a mãe; em Pocilga (1969), o jovem do deserto come a carne do próprio pai e treme de felicidade; Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), adaptação de Sade, traz uma série de crimes sexuais com requintes de crueldad. Também Fassbinder precisa ser lembrado com seus personagens criminosos (por exemplo, no já mencionado O amor é mais frio que a morte, em que o bandido se apaixona por seu comparsa, ou mesmo O direito do mais forte à liberdade (1975), cheio de bichas interesseiras e safadas, e, claro, Querelle, assassino por natureza (1982), baseado no romance de Genet, que chegou a dirigir, sobre a experiência da prisão, o curta Um canto de amor em 1950). Vale dizer que, no mapeamento de “um certo old queer cinema” (Lucas Bettim, 2015), além do cinema moderno europeu, temos exemplares fundamentais no underground norte-americano, com Kenneth Anger (Scorpio Rising, Lucifer Rising), John Waters (Mondo Trasho, Pink Flamingos), Paul Morrissey e Andy Warhol (Flesh for Frankenstein, Blood for Dracula), entre outros, nos limites do erótico e do escatológico ou sanguinolento. São experiências que nos permitiriam de pronto endossar a declaração de Hugo Gomes: “finalmente histórias de gays trambiqueiras. ninguém mais aguenta só história de gay sofrendo. queremos mais gays assim, gays empinando de moto, gay dando tiro etc”. Este texto sobre bandidagens queer há de compilar, por certo, um corpus atrativo de gays trambiqueiras, entre outras cuir bandidas.
Com a “passagem pós-moderna” nas narrativas nos anos 1980, uma característica marcante, como destaca Fredric Jameson em “Remapping Taipei”, é o não julgamento moral dos personagens criminosos por parte dos narradores — eles não mais ecoam um possível código moral dos autores, são mais ambíguos, nuançados e opacos, autorreflexivos —, em tramas circunvoltas em mise-en-abyme. A ambiguidade moral se reconduz às formas dos filmes. Paradigmático dessa mudança é Terrorizers (1986), de Edward Yang, que nos ajudará a pensar o ambiente amoral da Tapei de finais do século XX, onde, mais à frente, vão se situar as narrativas de Tsai Ming-Liang, como veremos. A Taipei moderna, a partir dos anos 1970, é uma metrópole que combina suas raízes rurais – estradas de terra, vegetação abundante, galinhas pela rua, crenças e práticas religiosas ancestrais, com uma modernização acelerada, de urbanização mal planejada — erguem-se grandes edifícios espelhados, letreiros luminosos, outdoors, etc.
A expansão urbana traz, além de efeitos climáticos evidentes (como o afundamento de prédios no solo úmido) questões sociais relevantes, com a proliferação de sujeitos marginalizados. Crescendo a desigualdade social com a investida neoliberal, cresce a violência e a instabilidade, tudo o quanto pode ser visto no cinema de Edward Yang e de Hou Hsiao-hsien, mestres da primeira geração do cinema novo taiwanês, influência para Tsai e Apichatpong Weerasethakul.
Além de Taipei nos filmes de Tsai, observaremos, em Apichatpong Weerasethakul, a cidade de Bangkok (com uma menção honrosa ao cineasta Thunska Pansittivorakul, também tailandês). Apichatpong e Thunska transgridem, pelo cinema os rígidos dogmas da monarquia tailandesa. Voltando, então, o olhar para o ocidente (inescapável, incontornável: ocidente criminoso?), temos a figuração de Lisboa no cinema de João Pedro Rodrigues, e um vislumbre de Los Angeles em Bruce LaBruce. Por fim, de retorno ao Brasil, o fenômeno do cinema queer contemporâneo será observado desde São Paulo e Tiradentes. Por serem as cidades, em essência, que dão lugar aos corpos e a seus crimes, é por elas que nos guiamos ao longo deste percurso queer e estranho.
Taipei
A filmografia de Tsai Ming-Liang oferece visões significativas de Taipei, capital de Taiwan, com seus fluxos modernizadores iniciados nos anos 1970, que atingem um ápice e início de derrocada já nos anos 1990 justamente quando Tsai inicia sua produção para cinema[3]. No imaginário dos espectadores de Tsai, Taipei é uma cidade sempre molhada — há apartamentos alagados, prédios que afundam no solo úmido, incapaz de suportar tanto peso (como se naufragassem…); há fluxos imparáveis para dentro ou para fora dos corpos (urina, água mineral, suco de melancia); banhos, ritos, chuva. A cidade naufragada dará lugar a personagens soçobrantes e por vezes soluçantes.
O primeiro longa-metragem de Tsai, Rebeldes do deus neon (1992), de pronto dá a ver essa metrópole de urbanidade mal planejada, em que prédios se alagam e afundam — afundamento este que encontrará a máxima dramaticidade narrativa em O buraco (1998). O protagonista dos filmes de Tsai, Xiao Kang (Lee Kang-sheng), seu alterego e “ator-fetiche”, em Rebeldes… nutre uma paixão platônica e obsessiva por um jovem criminoso, Ah Tze (Chen Chao-jung); este comete pequenos furtos junto ao parceiro Ah Ping (Jen Chang-bin), arrombando orelhões para coletar moedas, dinheiro que será gasto no fliperama, no bar, em pequenas diversões cotidianas. Eles roubam também o fliperama, retirando placas de jogos das máquinas, o que os faz experimentar a violência das gangues.
O Buraco, de Tsai Ming-Liang
A paixão de Xiao Kang também o leva a atos criminosos quase inofensivos: ele risca, rasga e pixa a moto de Ah Tze como forma de chamar sua atenção: realiza invasão de propriedade privada ao passar a madrugada no shopping, trancado após o fechamento do comércio, permanecendo secretamente para espionar Ah Wei. Xiao Kang também poderia ser acusado de blasfêmia, talvez? Afinal, sua mãe (Lu Hsiao-ling) acredita que ele seja a reencarnação do deus Nezha (o título original do filme, ⻘少年哪吒, significa, em tradução literal, “Adolescente Nezha”), como lhe informaram no templo. Sabendo disso, Xiao Kang faz um arremedo zombeteiro de um arrebatamento com o Deus, com gritos e movimentos espasmódicos que deixam sua mãe transtornada. A cena é interrompida pela brusquidão do pai (Miao Tien), que atira um chinelo no filho, de modo a encerrar sua pilhéria.
No filme seguinte, Vive l’amour (1994), Xiao Kang, novamente levado por um desejo obsessivo não correspondido, furta uma chave esquecida na fechadura de um apartamento vazio. Ele passa a ocupá-lo secretamente, como um fantasma, observando os encontros sexuais de eventuais ocupantes, Mei Lin (Yang Kuei-mei), corretora de imóveis que usa o apartamento para seus encontros, e Ah Jung (Chen Chao-jung), vendedor ambulante que se torna amante de Mei e objeto de desejo de Xiao Kang. Segue-se, ao longo da filmografia de Tsai, uma série de maiores ou menores contravenções por parte de Xiao Kang, que exerce diversas ocupações provisórias, de camelô em Que horas são aí? a ator pornô em O sabor da melancia (com a transição entre uma ocupação e outra no média-metragem A passarela se foi (2002)).
Ele se relaciona com um imigrante ilegal (Eu não quero dormir sozinho) e até mesmo com o próprio pai (O rio), transgredindo o tabu do incesto. Fran Martin refere-se a essas práticas como sintomas de uma “subjetividade pós-jia” (ou “pós-família”), em que os valores chineses tradicionais são frontalmente contestados. A questão sexual, a propósito, também é abordada centralmente em Adeus, Dragon Inn (2003), em que todo o espaço físico do cinema é, de certo modo, erotizado (lembrando-nos Barthes no texto “Ao sair do cinema”, em que todo o erotismo da experiência cinematográfica, do escuro da sala à proximidade entre as poltronas, é ressaltado) — especialmente o banheiro, locus privilegiado do cruising. Algo que, no Brasil de hoje, seria rapidamente chamado de “atentado ao pudor”, contra a moral e os bons costumes, má influência, possessão, certeza de condenação, violação das leis (de Deus, da natureza), um crime contra a natureza, contra a pureza, contra a beleza, a castidade, com risco de contaminação, de espalhamento viral, maldição, o medo de um planeta queer[4].
II. Bangkok
Bangkok, como Taipei, ora só existe no meu imaginário — ambíguos aislamentos LGBTQIA+ friendly (mas por baixo dos panos a mesma condenação de sempre? Veremos.)
A Bangkok de Apichatpong Weerasethakul é — também como a Taipei de Tsai, aliás — não dicotômica (isto é, estranha, queer — não binária?). Embora muitas análises da obra de Apichatpong insistam no lugar-comum do binário campo-cidade, arcaico-moderno, natural- tecnológico, selvagem-civilizado, animal-humano, etc. (cf. James Quandt, 2014), como se houvesse uma valoração moral de um passado rural idealizado, bem como das práticas religiosas animistas, qual uma pretensa alternativa espiritual “positiva” ao budismo de Estado — qualquer dicotomia cai por terra em face da complexidade mesma dos filmes.
Afinal, como afirma o próprio Apichatpong, até mesmo o animismo pode ser utilizado com intuitos dominadores pela política oficial. Desde Eternamente sua (2002), as supostas leis invioláveis da ciência e da medicina já estão contaminadas pelas crenças e práticas populares — para o bem ou para o mal, e inclusive para bagunçar também esses “opostos”. É justamente o aspecto religioso que fez com que o cinema de Apichatpong fosse censurado oficialmente na Tailândia (não é essa uma forma de acusá-lo criminoso?).
Em Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2010), ele mostra o personagem Tong (Sakda Kaewbuadee) — espécie de alterego e “ator-fetiche”, como Lee para Tsai —, um monge, despindo-se de seu manto alaranjado para tomar banho, o que bastou para as autoridades o considerarem “amoral”, criminal, desrespeitoso com a religião oficial. De modo similar, o close-up da ereção do personagem de Síndromes e um século também lhe rendeu censura. O “atentado ao pudor, à moral e aos bons costumes” opera insidiosamente, seja no Brasil, seja em Taiwan, seja na Tailândia. Este último, suposto “paraíso” para as cirurgias de redesignação sexual, é de pronto questionado na filmografia de Apichatpong, desde suas primeiras realizações, com As aventuras de Iron Pussy (2003), em que a figura da kathoey, especificidade identitária local, que no Brasil poderia fazer um paralelo com travestis e mulheres trans, grosso modo, encampa o avesso de todos os estereótipos, na performance camp da buceta de Ferro (Michael Shaowanasai). Tudo isso nos faz elucubrar que o turismo LGBTQIA+ friendly, visando ao chamado pink money, não dá conta de todas as sutis (ou nem tanto) coerções cotidianas.
Por fim, há o também tailandês Thunska Pansittivorakul, que opera através do cinema, como Apichatpong, as suas contravenções oficiais. Em Terrorists (2011) — Terroristas, título que nos ecoará diretamente o Terrorizers de Edward Yang —,a primeira cartela traz uma lista de elementos proibidos nos filmes tailandeses pelo governo ditatorial monárquico. Thunska enumera as proibições com o intuito único de transgredi-las uma a uma. E é isso que veremos ao longo de Terrorists. Protestos políticos, violência de Estado, nudez, sexo explícito… Em seu longa-metragem anterior, Reincarnate, Thunska já havia sido censurado pelos elementos sexuais e religiosos em comunhão — implicando-se corporalmente em trocas íntimas a ponto de engravidar de seu amante e dar à luz nada menos que a câmera cinematográfica! Então, o cinema participa ativamente da criação de crimes de amor (contra a nação, contra a natureza, contra Deus[5]).
III. Lisboa
O protagonista de O fantasma (2000), Sérgio (Ricardo Meneses), inicia o filme como um coletor de lixo urbano em Lisboa, capital de Portugal. Sua ocupação oficial é por si só marginal, devido ao preconceito social, mas aos poucos ele sai desse lugar de legalidade e se entrega ao crime, também movido por uma paixão obsessiva, como vimos a respeito de Xiao Kang em Tsai. Aqui, no entanto, Sérgio vai além das tímidas investidas ou depredação de objetos como Xiao Kang: ele amordaça e arrasta pela rua o rapaz que é seu objeto de desejo, depois de tê-lo agredido e violentado.
O despojamento das normas de convivência em sociedade aqui se dá em um nível radical como em Pasolini (lembremos o canibal do deserto em Pocilga, a perambulação pelo deserto em Teorema, destino reservado ao pai burguês); a abolição da própria humanidade é acompanhada em O fantasma por uma fusão erótica com o lixo — guardando algo de animal, selvagem, mas também sintético, plástico. Os dejetos humanos como limites do abjeto, aquilo que borra as fronteiras dentro-fora, desejo-repulsa, prazer-dor, vida-morte. Tal sentido erótico é agravado pela imagética do BDSM, com a máscara e as roupas pretas de látex, que tornam o sujeito anônimo e aproximam sua superfície corpórea da textura e aparência negra brilhante dos sacos de lixo — a sombra o torna uma fusão de breu na carroceria do caminhão, só visíveis seus olhos brilhantes de bicho (ou nem isso).
O ornitólogo (2016), ainda que não se passe majoritariamente em Lisboa, mas nas florestas fronteiriças entre Portugal e Espanha, traz como protagonista Santo Antônio de Lisboa, justamente. Ele também é conhecido como Santo Antônio de Pádua, pois há uma disputa entre as duas cidades, de nascimento e de morte do santo, respectivamente, a respeito de seu nome.
Seja como for, no filme de Rodrigues, o santo é figurado em diversas composições que reinventam a imagética cristã e católica, desde posições eróticas que ressignificam o martírio de São Sebastião, reinvestido pelo erotismo do shibari, tradição de amarração japonesa utilizada atualmente em práticas de BDSM; passando por referências à mitologia romana, com as caçadoras de Diana até a presença de tradições pagãs locais e demônios asiáticos (tengus). A mistura sensual de práticas tradicionais e figuras de diversas religiões poderia, em O ornitólogo, assomar profanadora, e de fato assoma, nos termos agambenianos: a profanação como uma atualização do mito, com a devolução ao uso dos corpos vivos daquilo que foi apartado pelo dogma. Coroa a tudo uma relação de amor com Jesus; e, por fim, uma ferida penetrada em close- up após um assassinato… A Incredulidade de São Tomé (1601–1602), Caravaggio, reinventado por Derek Jarman (também Sebastiane, que ressalta o homoerotismo do mito de São Sebastião): novas circunvoluções da trama espelhada de crimes em mise-en-abyme.
O Ornitólogo (2016) de João Pedro Rodrigues
IV. Los Angeles
Em LA Zombie (2010), François Sagat interpreta um personagem marginal que também caminha entre os sacos de lixo, com roupas rasgadas, um carrinho de supermercado, caracterizado de forma algo caricata como um morador de rua. Sua estranheza, contudo, reside no fato de ele ser um zumbi, que tem a capacidade de, ao transar com homens mortos (violentamente, diga-se de passagem), devolver-lhes a vida. Seguem-se a assassinatos sangrentos, acidentes de carro e outras mortes extremas (mas também camp), cenas de sexo explícito sanguinolentas, em que as convenções do pornô industrial (como o close da penetração, o ritmo acelerado, a teleologia do gozo, etc.) são embebidas em sangue, tensionando mais uma vez o desejo e a repulsa — como só o erotismo em si é capaz de fazer, recorda-nos Bataille.
V. São Paulo
Pude conhecer muitos filmes brasileiros contemporâneos em São Paulo especialmente no Cinusp em mostras como a “Novíssimo Cinema Brasileiro” e ainda mais nos tempos de curadoria e programação. Muitas vezes me perguntava, como no meme, onde estavam as gays bandidas, que dão tiro pro alto e empinam de moto, cansado das gays sofredoras.! Mas aos poucos elas foram surgindo (quer dizer, eu as fui conhecendo, elas foram aparecendo, fantasmagóricas, monstruosas e bestiais): sobretudo aquelas safadas, que atentam contra o pudor, a moral e os bons costumes (muitas delas, quase que principalmente pela via do sexo, pois ainda não aprendemos com Pasolini suficientemente bem que o sexo pelo sexo é facilmente capturado e que a suposta “revolução sexual” fracassou antes de começar — o que temos hoje, senão (ainda) os zumbis de LaBruce, os fantasmas de Tsai, os monstros de Apichatpong, as bestas santas de Rodrigues…?
O Brasil também nos oferece exemplares de um horror pornô queer: Nova Dubai (2014) de Gustavo Vinagre é um bom caso. Em meio às referências sanguinolentas de filmes de terror, cenas de sexo explícito sucedem-se, afrontando a família tradicional e os estereótipos de masculinidade — o trabalhador braçal, musculoso, da construção civil (Hugo Guimarães); o pai (Herman Barck) do amigo/ficante/namorado (Bruno D’Ugo), o que quer que seja — tudo flui para…A especulação imobiliária (crime maior destes tempos?) projeta fantasmas de prédios vazios sobre o horizonte de árvores, e é num apartamento branco, asséptico, que se desenrola mais uma cena de sexo, com o personagem de um corretor de imóveis (Caetano Gotardo) dominado em um ménage à trois, implorando por pica.
VI. Tiradentes
Querido diário,
Eu tentei fugir, mas fui assumindo progressivamente um tom subjetivo, confessional, umbilical. Vai ver é uma crescente influência do conteúdo na forma. O primeiro filme que vi na Mostra de Cinema de Tiradentes de 2025 foi Parque de diversões (Ricardo Alves Jr., 2024): um “filme de sexo”, nas palavras do diretor, e não um filme sobre sexo, como fizeram questão de ressaltar — à moda de trigger warning? Ou uma pretensa distinção forma-conteúdo contrassensual?
Envolver a nudez com filtros, flores artificiais, luzes saturadas, tableaux-vivants, quando bem realizado, resulta belo: Pink Narcissus, Nus masculins. Eu, de minha parte, poderia falar sobre o amor, a paixão, o desejo, e também sobre o sexo dos cães pelas ruas de Tiradentes — o quanto vi e vivi. Mas parece que ainda há experiências cinematográficas que podem espelhar, borrar, confrontar, até ajudar a ressignificar outras. Assim foi Um minuto parece uma eternidade para quem está sofrendo (Fábio Rogério e Wesley Pereira Castro, 2025), que me ajudou a desessencializar uma série de pressupostos que se vinham cristalizando, como se a relação umbilical do filme com seu realizador (por exemplo, em Uma montanha em movimento, de Caetano Gotardo, o mesmo que outrora implorara por pica ao interpretar um corretor de imóveis em Nova Dubai) fosse meramente (moralmente, até) “negativa”; ou o gesto de falar de cinema, perfilar referências, expor sua cinefilia por meio de DVDs e livros, por exemplo (tanto em Uma montanha em movimento quanto em Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo) fosse por si só “pedante”. Então, tudo se nuança.
O crime recorrente desse cinema brasileiro será sempre o atentado ao pudor, falar de si, mostrar o pênis como um ato revolucionário, teimar e insistir em falar de amor? Penso que, especificamente em relação à Mostra de Tiradentes de 2025, ainda estamos vendo muitos “filmes de pandemia”, resultados fílmicos de um período de isolamento psicologicamente perturbado. São filmes isolados, e o seu crime não seria acenar para outras possibilidades de encontro? Tudo se nuança: as relações interpessoais, que se evidenciam em direções diversas — da conveniência ao acanhamento à efusividade ao esgotamento à euforia à ansiedade e de volta ao encantamento, a um certo deslumbre, à inocência…?
Em Baby (Marcelo Caetano, 2024), que foi exibido na Mostra como parte da homenagem à atriz Bruna Linzmeyer, a inocência corrompida teima em retornar em pequenos gestos de carinho ou explícito desejo em ambiente marginal, criminal: garotos de programa e seu bonde queer batem carteiras em um cinema pornô no centro de São Paulo.
O desconforto que parte do público declara testemunhar ao ver tantos paus em cena — será apenas um impulso conservador, ou pode também ser pensado transgressivamente, expondo uma necessidade de escuta? Trata-se do lugar-comum condensado do “cinema brasileiro só tem sacanagem” com “LGBTs são sexualmente promíscuos”? Mas pode apontar também para a abertura a outras formas de ativar e cativar sensibilidades?
Enfim, um texto de perguntas: pois são só o que há sobre este presente. Em Resumo da ópera (Honório Felix e Breno Lacerda, 2025), com linguagem opaca, borrada, a crítica cuir afia suas garras sobre a história brasileira recente — nossa história do presente. Será um crime dizer tudo assim tão oblíqua e, ao mesmo tempo, frontalmente?
Nem Deus é tão justo quanto seus jeans me ajudou a encerrar um percurso queer, que continuará pela Serra de São José, pela Trilha do Carteiro, lá onde foi morto um Inconfidente que transportava as mensagens insurgentes, onde a água borbulha sobre pedras cor de Coca-Cola, lá onde mais uma vez se cometerão crimes de atentado, tão caros.
*
1. Gênero literário e cinematográfico chinês que envolve artes marciais e elementos fantásticos,similar às “lutas de capa e espada” do contexto europeu.
2. Burroughs, embora tivesse publicado livros transgressores sobre experiências pessoais com o vício em heroína, encontra maior barreira ao abordar sua sexualidade, em Queer, que só foi publicado em 1985, mais de três décadas após ter sido escrito. Pasolini também enfrentou desafios de publicações nesse sentido, tendo suas primeiras novelas autobiográficas sobre a descoberta sexual,Amado meu precedido de Atos impuros, escritas nos anos 1940, publicadas apenas nos anos 1980.
3. Tsai havia realizado filmes para a televisão no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 como Deem-me uma casa eGarotos, que antecipam muitas das questões trabalhadas ao longo de toda a sua filmografia.
4. Fear of a Queer Planet de Michael Warner (1993), proliferação pelos espaços protegidos da vida comum, anti-família (pós-Jia), anti-pátria (Taiwan não é sinônimo de China?!?!), promiscuidade, sodomia, safadeza, etc.
5. Que poderiam ser também: pela nação, pela natureza, por Deus.
Há um episódio específico de The Shield (2002 – 2008) que concatena aquilo que de melhor o seriado televisivo possui no que diz respeito à complexidade e contradição de seus protagonistas. À certa altura da terceira temporada conhecemos Robert Huggins, interpretado pelo rapper Andre 3000, dono de uma loja de quadrinhos na periferia de Farmington. Ao ver a rua ser tomada pela epidemia do crack do começo dos anos 2000, ele resolve não somente acionar a polícia como também filmar diariamente todos os usuários da fachada até que os mesmos sejam presos. A solução equacionada pelo então chefe da polícia, David Aceveda, um delegado latino na tarefa de gerenciar o corpo policial precarizado na luta contra o crime na região, é a mais simples de todas: ao invés de autuar ou prender usuários e traficantes, dá-se um jeito de levar a boca de crack um quarteirão para baixo, e tão somente deslocar o problema milimetricamente até que o mesmo exploda mais uma vez, em um ou dois meses. Essa atitude, cirurgicamente equacionada, é sintoma do modus operandi estabelecido pela série criada por Shawn Ryan, no retrato de uma corporação corruptível, maleável e maligna em todas as suas esferas.
Se há algo verdadeiramente notável em The Shield é como cada sujeito, cada extrato social e cada direção assumida por seu sem fim de protagonistas (poderíamos dizer que a série possui um núcleo básico de uns cinco ou seis personagens, no mínimo) nunca possui uma leitura binária. E não se trata de um estudo básico de personagem construído paulatinamente para que ele possua um conflito demarcado — gesto costumeiro de quase todo conteúdo audiovisual feito nos últimos dez ou quinze anos.
Pelo contrário, o paradoxal surge em The Shield quase que instantaneamente. Todo dia uma tarefa diferente se apresenta para cada um dos núcleos da série. Não há um ou dois vilões a serem perseguidos. Há, por baixo, uns cinco ou seis “bandidos” a serem caçados a cada capítulo. Gente morre e gente aparece, paulatinamente, episódio a episódio. A força restauradora de conflitos imprimida pela série se cristaliza a partir de um modo de filmar muito particular e rotineiro, violento por natureza, que coopta a câmera na mão e a direciona instantaneamente ao rosto de seus protagonistas, a partir de uma montagem sobretudo geográfica, de certo modo insana, que aproxima e afasta do corpo o tempo todo, como que roubando do ator ou da atriz seu estado de espírito, seu êxtase energético, seu gesto mais catártico. O modo como conhecemos a Los Angeles de The Shield, com seus guetos urbanos, centros comunitários, hospitais e delegacias de polícias é sempre de soslaio, de passagem, o que traduz a sensação de estarmos habitando constantemente um inferno intermitente.
As salas são sujas, as paredes surradas, as relações e as pessoas fraturadas. O núcleo de bandidos incorpora as mais variadas raças e etnias entre homens e mulheres, brancos, negros e latinos, michês e prostitutas, traficantes e líderes corporativos. Não há qualquer tentativa, por parte de Shawn Ryan e seu corpo criativo, em tornar sua experiência mais branda. Todo dia incorpora- se sempre um aviso: o pior ainda está por vir. E daí talvez seja tão interessante pensar em como um sistema televisivo, alicerçado pelos gêneros mais sofisticados e ao mesmo tempo renegados que o audiovisual já estruturou — do melodrama à ação, das telenovelas aos programas policiais — consegue ver em uma série como The Shield justamente um espelho. A operação é cristalina, pois, se há algo extremamente viril e, ao mesmo tempo, extremamente estiloso, nuançado e cristalino em The Shield é o modo como a série capta para si este sintoma de lata de lixo da história e a reproduz em forma de audiovisual. Não só os sujeitos são sujos e contraditórios, não só a cidade é poluída e violenta, as imagens também o são, e seu estilo é alicerçado a partir de uma mixagem daquilo que há de mais barato no projeto televisivo, uma rotina um pouco espantosa de revelar ao telespectador, quase como se estivesse em um telejornal dos mais violentos, a vida cotidiana de quem tem suas casas invadidas, seus parentes mortos, seus filhos capturados à sorte das mais terríveis torturas.
Ao fim e ao cabo, trata-se de um produto, como todo material televisivo. Um produto que depende, logicamente, de dinheiro e de audiência para sobreviver. Mas o grande truque por trás desta lógica comercial publicitária é como The Shield conformou uma espécie de case de sucesso — lembrar que, à época, nomes como Glenn Close e Forest Whitaker passaram a fazer parte da série após seu sucesso imediato — a partir de uma releitura muito viva e violenta do pathos da sociedade americana.
É como roubar da produção televisiva aquilo que há de mais corriqueiro (seus sensacionalismos, suas vilanizações compulsórias e binárias) e premente, e devolver justamente à ela, televisão, uma hiperestilização desses sentidos todos, para falar não só de seus conflitos étnicos e raciais; de 11/09, de corrupção e racismo no corpo policial, mas para falar também do diabo de cada dia, das entranhas de um mundo que nasce sujo e morre sujo, vagabundo, desleal e descompassado.
A bandidagem, em The Shield, não está apenas em seu conteúdo, nem na celeuma de grandes personagens e atores que protagonizaram espécies de “vilões” desse universo — há poucas coisas mais incontornáveis que o gangster de Anthony Anderson, deslocado totalmente de seu papel de comediante —, mas sobretudo no modo como Shawn Ryan é capaz de liquidificar as linguagens mais óbvias do extrato televisivo, de sua característica inerentemente B, escondida, oculta, para fazê-la dar luz à algo proeminentemente heavy metal, brutal em certo sentido, na face explícita de um mundo que nunca se retrai, nunca para, de um sangue que permanece rolando e rolando, de um lado e de outro, pelo bem e pelo mal, a partir das vísceras explícitas da América.
Nesta entrevista originalmente publicada na revista Zagaia, mergulhamos na trajetória de Dácia Ibiapina, cineasta, educadora e uma das fundadoras do histórico Grupo Mel de Abelha, surgido em Teresina na efervescência cultural dos anos 1980. Com uma formação marcada pelo cineclubismo, pela militância cultural e por experiências em instituições como a Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba, Ibiapina compartilha memórias e reflexões sobre sua formação, suas escolhas estéticas, as dificuldades de fazer cinema fora dos grandes centros e a potência coletiva de movimentos culturais como os cineclubes e associações de classe. Neste relato, ela revisita os caminhos que a levaram do Super-8 no Piauí à docência em cinema na Universidade de Brasília, refletindo sobre política, arte, memória e os desafios de se manter fiel a uma prática cinematográfica que pulsa com o desejo de registrar e transformar o mundo.
Queria saber primeiramente da sua formação. Você estudou em Cuba não foi? Como foi isso? E como foi o retorno ao Brasil nesse sentido da formação (não apenas acadêmica)?
Sim. Estive em Cuba, na EICTV, por 06 meses, em 1987. Fiz o Curso Básico. Foi um período intenso de aprendizado e convivência com jovens estudantes e também professores: “de três mundos”, (Américas, África, Ásia), como gostava de dizer Fernando Birri, cineasta argentino que foi o primeiro diretor da EICTV. Eu já era graduada em Engenharia Civil quando fui para Cuba. E já trabalhava na Prefeitura do Campus da UFPI e colaborava com a Coordenação de Assuntos Culturais da Pró-Reitoria de Extensão da UFPI. Houve uma seleção no Brasil e em vários outros países, para a primeira turma da Escola de Cinema e TV de San Antonio de los Baños/Cuba,. Nessa primeira seleção brasileira houve uma ênfase em candidatos do Nordeste. Eu e meu colega do Grupo Mel de Abelha Valderi Duarte fomos selecionados, juntamente com outros colegas de Fortaleza/CE.
A EICTV não tinha nem tem pretensões acadêmicas. Oferece formação técnica e oportunidade de convivência e debates. Eu gostei muito dessa pegada da Escola. Lá tivemos acesso a câmeras, salas de montagem, iluminação, ilha de edição, laboratório de fotografia e de som, ferramentas e insumos de cinema que não era fácil ter acesso no Brasil e muito menos em Teresina-Piauí-Brasil. Trabalhávamos com película e também com vídeo, que estava começando a se firmar como formato de produção audiovisual. Os professores eram excelentes.
Nosso professor de fotografia de cinema, por exemplo, foi Cesar Charlone e nosso professor de montagem foi Nelson Rodríguez Zurbarán, que montou filmes de diretores cubanos como Tomas Gutierrez Alea, Humberto Solas, Santiago Alvarez, dentre outros diretores cubanos e latino- americanos. Ele montou, por exemplo, o filme “Memórias do Subdesenvolvimento”, de Gutierrez Alea. Morreu em Miami, em 12.02.2020, aos 81 anos. Era adorável Nelson Rodríguez. Passei muitas horas com ele na sala de montagem. Ac4h6ava incrível a forma como manejava os copiões em película no corta-e-cola interminável. Era um artesão da montagem e um grande narrador. Ir para a EICTV foi também uma oportunidade de conhecer Cuba, esse país que até hoje desafia o coro capitalistas contentes . Os personagens do filme “Cadê Edson?”contam que quando estavam no presídio Papuda em Brasília, apanhavam, e que seus algozes lhes diziam: “Comunista de merda. Ta pensando que isso aqui é Cuba?”. Quando fui para Cuba já tinha feito “O pagode de Amarante” e trabalhado em outros filmes Super 8 do Grupo Mel de Abelha. Minha formação é cineclubista e curtida no “mel de abelha”. Quando retornei de Cuba, percebi que não conseguiria ir adiante com o cinema em Teresina. Decidi então vir para Brasília.
Poderia nos contar um pouco sobre o grupo Mel de Abelha? O que os levava a fazer filmes naquele momento?
Estudei Engenharia Civil na Universidade Federal do Piauí entre 1977 e 1981. Foi a partir de nossa turma que surgiu o Grupo Mel de Abelha, em 1978. O primeiro filme, “Povo Favela” (1978) foi dirigido por colegas da engenharia: Luís Carlos Salles e Valderi Duarte. Eu não participei da produção desse filme. A partir dessa experiência, novos estudantes se juntaram e foi criado o Grupo Mel de Abelha, com: Dácia Ibiapina, Luís Carlos Salles, Socorro Teixeira, Valderi Duarte e Lorena Rego (estudante de Economia da UFPI). Cabe registrar também a colaboração de Rosemberg Vieira Peixoto, que também fazia parte de nossa turma de Engenharia Civil. A área de interesse dele no cinema era o som. Dentre as muitas referências nossas destaco: o Cineclube Teresinense (a mais importante), o Cine Royal com suas sessões de cinema de arte (sexta-feira, 22hs e reprise no sábado as 10hs); a Coordenação de Assuntos Culturais da Pró-Reitoria de Extensão da UFPI, a Jornada Maranhense de Super 8 ( embrião do Festival Guarnicê de Cinema, então coordenada por Euclides Moreira), a Casa Amarela Euzélio Oliveira em Fortaleza (espaço de extensão da Universidade Federal do Ceará), a Jornada de Cinema da Bahia, que também era promovida pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação do cineasta e professor Guido Araújo.
Por que a gente fez os filmes do Mel de Abelha e o próprio Mel de Abelha? É cruel essa pergunta. Muito difícil de responder sem revisitar memórias e sem cair pro campo das narrativas. Digamos que as razões eram difusas e contraditórias. Havia uma efervescência cultural, boêmia e política nos anos 70 e 80 do século passado, em Teresina e em outras cidades brasileiras, meio inconseqüente, porém mobilizadora. A gente queria participar. Ao mesmo tempo, estávamos ocupados com nosso projeto de ascender socialmente e ganhar visibilidade pela educação. A gente queria um diploma de Engenharia Civil, uma espécie de vingança emocional contra a burguesia local. Não dava pra ser porra louca e estudar engenharia ao mesmo tempo.
Por outro lado, o cinema brasileiro, como a música brasileira, como a cultura e as artes em geral, foram muito importantes na resistência à ditadura militar. A gente queria participar. A gente não sabia tocar, não sabia cantar, não sabia dançar, desenhar, nada. Éramos uns nerds. Eu trabalhava também, para ajudar no projeto familiar de ascensão social. A gente gostava de cinema e então resolvemos ir por aí. Meu pai dizia que o cinema era meu esporte. E reclamava de minha dedicação a ele. “Minha filha, esse seu esporte é de lascar. Você não descansa e não tem tempo para mais nada”. Ele estava certo.
Um amigo me disse que pesquisadores comentam que o Mel de Abelha tinha uma relação com os filmes do Torquato Neto. Isso é real? Se isso for verdade, como se dava essa relação, essa influência? Vocês assistiram, por exemplo, Terror da Vermelha (Torquato Neto, 1972)? O Torquato Neto dizia algo a vocês? Tinha uma interlocução de conversa ou mesmo de influência pelos filmes? Pergunto isso pois essa herança do Torquato Neto no trabalho do Mel de Abelha é comentada em trabalhos acadêmicos e nós nunca vimos ninguém perguntar isso à integrantes do grupo.
Sim. Sentíamos orgulho de freqüentar o mesmo cineclube que ele freqüentou – Cineclube Teresinense. Ficava no Colégio Diocesano de Teresina, onde Torquato Neto estudou na adolescência. Convivemos com amigas e amigos dele, especialmente o quadrinista, fotógrafo e cineasta Arnaldo Albuquerque (1952-2015). Este chegou a fazer filmes Super 8 com Torquato Neto, como por exemplo “Adão e Eva do paraíso ao consumo” (documentário que se perdeu no tempo). Arnaldo fez a câmera em “O terror da vermelha”, dentre outros filmes. Conhecemos também o pessoal da música e da literatura, que também conviveu com Torquato, como Durvalino Couto, Claudete Dias, Viriato Campelo, dentre outros. Não chegamos a conhecer Torquato pessoalmente. Nós éramos as pirralhas e os pirralhos caretas da parada. Brincávamos que esses artistas da geração de Torquato eram os “caetanófilos”. Torquato morreu em 1972 e nós só entramos na universidade em 1977. Eles eram a geração da contracultura piauiense e nós não. A gente fazia Super 8 e estudava muito, tanto a engenharia civil quanto o cinema (que considero também um tipo de engenharia). Sim, Arnaldo Albuquerque era generoso conosco e nos mostrou os filmes que fez com Torquato. Sim. Torquato Neto diz muito para nós, ou pelo menos para mim. Agorinha mesmo, letras de músicas, poemas e fotografias de Torquato Neto enchem minha cabeça. Afinal ele era “O terror da Vermelha”. Vermelha é um bairro antigo de Teresina.
Lá tem uma igreja – Nossa Senhora de Lourdes – onde fica exposta, ou pelo menos ficava, a obra sacra monumental de Mestre Dezinho. Esculturas em madeira hoje reconhecidas nacional e internacionalmente. Li em uma entrevista de Durvalino Couto que Torquato trouxe o super 8 para Teresina e que virou uma febre entre os artistas da cidade. Segundo essa entrevista, Torquato achava que o super 8 era a nova onda, que todo mundo podia fazer, e que um dia todo mundo ia ser cineasta. Premonição.
Os filmes do grupo Mel de Abelha eram em super-8 não é? Como funcionava essa forma de fazer filmes? Como você vê essa diferença entre os filmes de super-8 e os filmes que faz hoje em dia?
Sim. Os filmes do Mel de Abelha foram feitos em Super 8. Em Teresina havia uma loja da Fotóptica onde comprávamos os rolinhos de película super 8. Usávamos uns que vinham com uma fita de som magnética colada na lateral. Nossos filmes eram sonoros. Após expor os negativos utilizando equipamentos super 8 do Cineclube Teresinense, ou de amigos, levávamos na mesma loja e eles seguiam para serem revelados em São Paulo. Quando chegavam as cópias positivas, íamos fazer a montagem. Luís Carlos Salles eram bom em montagem. Era um processo manual, com cortadeira e coladeira. Na coladeira se fazia os cortes e a junção dos takes selecionados com uma fita especial, tipo um rolinho de durex. Dava para agregar uma banda sonora também. Com o tempo e com a grana do crédito educativo, espécie de FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) da época, passamos a adquirir nosso próprio equipamento: câmera, projetor, tripé, um ou outro refletor, microfone. Nossa onda era o documentário. Nossos territórios eram geralmente periféricos e nossos personagens eram as pessoas que habitavam esses territórios. Era um trabalho coletivo, onde cada um agregava o que tinha ao processo. Os filmes tinham naturalmente um viés político.
Éramos estudantes da Universidade Federal do Piauí onde tinha um debate político fomentado pelo movimento estudantil, sindical e cultural. Disputa eterna entre PT e PCdoB. A gente não conseguia entender e não dava vontade de participar. E tinha também nossas preferências e referências estéticas. Muitas delas formadas no cineclubismo, pelas festas, e por leituras e estudos que fazíamos. Não estávamos isolados. Promovíamos exibições de filmes super 8 ou 16mm, eventos, mostras temáticas. Viajávamos para São Luís, para a Jornada Maranhense de Super 8, para Fortaleza, para a Bahia. O Nordeste era uma de nossas paixões. Nosso território.
E hoje? Como faço os filmes? As bases estão lá, no Piauí. Foram ampliadas em Cuba. E foram consolidadas em Brasília. Vim para a UnB, em 1989, dois anos após o retorno de Cuba. Vim para fazer mestrado. E, em 1993, vim como professora concursada do Bacharelado em Comunicação – Habilitação Cinema, atualmente habilitação em Audiovisual. Devo muito à UnB e a sobrevivência do cinema na UnB também deve muito a mim e aos meus colegas. Fomos incansáveis nessa trincheira aí, da qual os estudantes são uma parte fundamental. Meu cinema é misturado com educação e especialmente com universidades: UFPI no Piauí e UnB em Brasília. Minhas equipes são compostas por ex-alunos. Meus temas, meus estudos, minhas pesquisas, eu os encontrei nas universidades ou ao redor delas. Foi assim e ainda é assim. Aposentei-me em novembro de 2018. Agora começo uma nova jornada e, curiosamente, tenho construído umas parcerias no Piauí. O filme “Carneiro de Ouro”, com o cineasta Dedé Rodrigues, é um exemplo disso. Agora estou pesquisando com Antonio Bispo dos Santos, quilombola da comunidade Saco-Curtume, na região de São João do Piauí. Queremos fazer um filme, uma “confluência”.
O trabalho do grupo Mel de Abelha tem a ver com cineclubismo? Qual a sua relação com o cineclubismo?
Já falei sobre isso. Acrescento apenas que tem um tipo de filme, como os que faço, por exemplo, que não têm muito apelo para o mercado exibidor hegemônico, mas tem um papel importante na construção da memória coletiva e do patrimônio cultural. Os cineclubes e universidades, as escolas em geral, as cinematecas, o fomento público, são importantes para que esse tipo de cinema continue a ser feito, discutido, preservado. O momento político atual é assustador nesse sentido: Ancine, Fundo Setorial do Audiovisual, Cinemateca Brasileira; estão em desmonte. O que posso dizer é que estamos juntos nessa briga aí e que tudo que está sendo destruído será reconstruído, assim espero. Não há autoritarismo que dure para sempre. Somos “ressurgentes”. Amanhã vai ser maior e melhor.
O seu trabalho e do grupo Mel de Abelha têm alguma relação com os filmes e artistas da CORCINA (Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos S.A) e ABD (Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas)?
CORCINA não. ABD sim. As ABDs construíram uma rede nacional que acolheu cineastas e cineclubistas do Brasil inteiro. A ABD/PI foi construída em 2003, com o incentivo de Leopoldo Nunes, então chefe de gabinete de Orlando Senna na Secretaria do Audiovisual do MinC, onde estava Gilberto Gil como Ministro da Cultura. Eu não participei desse processo. Já estava em Brasília. Valderi Duarte participou. Ele ainda reside em Teresina.
Ao assistir O pagode de Amarante eu percebi algumas ressonâncias com um conjunto de curtas documentários (ou etnográficos) realizados por Leon Hirszman (sobretudo Nelson Cavaquinho e Partido Alto). Sinto que os filmes conversam ao mesmo tempo que são completamente diferentes. Como foi essa relação com a criatividade ou expressividade popular? Existiu alguma interação com esses filmes que menciono quando vocês elaboraram este filme?
Não. Quando fizemos “O pagode de Amarante” eu ainda não conhecia esses filmes de Leon Hirszman. Depois que conheci, claro, notei que há uma proximidade etnográfica, temática e estética entre esses filmes de Leon e o nosso.
Aproveitando que mencionei O pagode de Amarante. Você poderia comentar sua relação com a fotografia? Pois algo que se destaca nesse filme são os momentos em que a câmera deambula no espaço quase que esboçando desenhos a partir dos telhados à contra luz. Acho essa cena muito bonita e me parece que você tem um apreço danado pela imagem em geral!
Sim. Não me canso de olhar e tentar enquadrar, decupar e montar o que o que me é dado ver, ouvir e sentir. E tem os sonhos. Realidades, sonhos, filmes, fotos, climas. É tudo junto e misturado. Daí, tenho que enquadrar, decupar e montar. Se filme fosse árvore, o cineasta com sua equipe, personagens e insumos seriam a terra, a água, o fogo e o ar. A semente seria a fotografia e a montagem seria o tempo que leva para a semente germinar e a árvore crescer, florescer e se multiplicar. Filme pede tempo e só dá as caras quando quer. Na Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños/Cuba, minha área de interesse era a fotografia.
Sua obra me parece, em vários momentos, utilizar um método muito bem pensado de montagem – e com isso não quero dizer que a montagem de seus filmes são iguais. Como você trabalha a montagem em seus filmes?
Eu me entrego na captação. Para não ficar, na hora da gravação, olhando o monitor e conferindo o som com fone de ouvido. Conto ao técnico de som e ao diretor de fotografia o que busco naquela filmagem. O que busco, o que me move naquele contexto de gravação. Daí eu entrego, pra ficar atenta ao que ocorre no extracampo, no decorrer das gravações. Rapidamente abro mão do que planejei. Não sofro pelo take que não rolou, pelo personagem que não veio, pela chuva que chegou de repente. Celebro o que foi gravado e, sobretudo, se não foi previsto e veio como presente. Por isso gosto tanto de documentário. Fico ligada o tempo todo durante os períodos de captação, trabalho muito e a equipe trabalha muito. É um processo de imersão e as idéias-imagens chegam quando menos se espera. Na montagem, revisito o que veio da captação, geralmente com um assistente de fotografia ou de montagem. Gostaria de fazer esse visionamento com quem vai montar, mas não é possível. Geralmente tenho muito material e pouca grana. O visionamento é um momento mágico. É onde me pergunto: tem um filme aqui?
Que filme pode ser? Geralmente tem muitos filmes e escolho aquele que me toca mais, que me persegue e me desafia mais. Que está comigo o tempo inteiro: durmo e acordo pensando nele, levo ele pra fazer caminhadas comigo, levo para o boteco, apresento ele aos meus chegados e peço opinião. Daí faço uma pré-montagem tosca e chamo quem vai montar. Daí começa o entra e sai. Muita coisa fica, muita coisa sai, muita coisa entra. E, finalmente, o filme dá as caras. Feio e bonito não me dizem nada no processo de montagem. Da mesma forma a explicação. Filme não é para explicar. É pra tocar. Quem entendeu, entendeu, quem não entendeu…Muitas vezes na montagem desagrado a fotografia, destruo o “roteiro” e a pesquisa, desagrado “personagens”. Trabalhei muito com Waldir de Pina, diretor de fotografia de boa parte dos meus filmes feitos em Brasília. Ele costuma me dizer que o melhor de meus filmes fica no material bruto. Fica “na lata”, como se dizia quando se trabalhava em película. Pode ser. Depende do ponto de vista. Em Brasília, Waldir é talvez o cara que mais entende de cinema que eu conheço. E é muito solidário. Coloca seu trabalho, seus equipamentos, seus conhecimentos, a serviço de qualquer um que esteja fazendo verdadeiramente um filme e precisando de sua ajuda. Comigo foi assim. Comigo é assim. Salve Waldir de Pina.
Outro dia participei de um debate com o Adirley [Queirós] e ele disse algo que achei muito importante. Gostaria que você, se quiser, comentasse isso que ele disse…Estávamos falando como cada longa dele apresenta uma profecia, aponta para o futuro. Respondendo a isso ele mencionou que: “toda observação atenta da experiência na periferia é premonitória”. Lembrei disso que ele disse no final de Palestina do Norte. O medo de sua interlocutora dos militares voltarem foi premonitório. O que você acha dessa observação do Adirley Queirós?
Acho que ele tem razão. Não posso falar do processo dele, mas em meu processo, eu antevejo, de certa forma, o que vem politicamente depois do filme. A imersão no processo, as contradições que afloram, as conversas nos bastidores das filmagens; vão nos informando sobre o futuro próximo.
Tanto no decorrer do filme, quanto depois do filme pronto. No caso de “Ressurgentes” dava pra sentir que aquela geração de militantes estava fechando “uma jornada de lutas” e que ia partir pra outra. O que é natural e vale a pena. A militância os fez pessoas melhores. Tudo que o país precisa atualmente. No caso do Cadê Edson?”, com a prisão e um tanto de processos nas costas, além de uma conjuntura política extremamente adversa, dava pra ver que a militância de Edson Francisco da Silva e do MRP ia pegar outro rumo após o filme.
Se você fosse dar um título para essa entrevista, qual seria?
Tomo de empréstimo as palavras de Raimunda em “Palestina do Norte: o Araguaia passa por aqui”. Eu não sei. Tenho medo.
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Dácia (centro) e equipe durante as filmagens de “Carneiro de Ouro” (2017)
A principal fronteira do banditismo não é jurídica.
Há um arquétipo nos faroestes: o ex-marginal que, convertido em agente da lei, se vê na obrigação de enfrentar um velho parceiro. Para tanto, o personagem também precisa brigar consigo mesmo, desfazendo antigos laços de honra e afeto, reafirmando seu novo conjunto de valores: a lei, o dever.
Essa sublimação corresponderia a um percurso histórico, parte importante da mitologia do western: a selvageria necessária durante a fase “civilizatória”, se tornaria indesejável durante o estágio do sedentarismo. Mas há um elemento, constantemente em cena nos filmes do gênero, que complica essa narrativa: a trajetória da conquista do Oeste é a da expansão do capitalismo. Nesse contexto, o limite entre crime e legitimidade se ajusta de acordo com a conveniência.
São observações que oscilam entre texto e subtexto, entre mais ou menos desengano. Há, por exemplo, a figura do homem de negócios que tenta sabotar a prosperidade geral em benefício próprio (como em Aliança de Aço, dirigido por Cecil B. DeMille em 1939). Ou a do facínora que se converte em homem respeitável em função da prosperidade econômica e cujos interesses passam a se confundir com os da cidade (Entardecer Sangrento, Budd Boetticher, 1957). Ou, ainda, xerifes ou juízes que institucionalizam o roubo (Região do Ódio, Anthony Mann, 54).
Três iterações, às quais poderíamos acrescentar muitas outras. Situações em que a delinquência é praticada a mando de especuladores, barões da ferrovia, grandes fazendeiros. Significativamente, os meios ilícitos são mostrados como uma continuidade das atividades lícitas: um business as usual. Nada nesses filmes parece sugerir que estamos diante de exceções. Antes, pela sua manifestação reiterada, acabam sugerindo uma constante.
Pode-se argumentar que, pelo menos no contexto da Hollywood clássica, todas essas histórias são finalmente otimistas, uma vez que quase sempre terminam com a vitória da comunidade, do homem de princípios, ou da união ideal entre os dois. Mesmo assim, a partir da riqueza de exemplos, é possível defender que um componente crítico sempre fez parte do gênero, como consequência lógica de várias de suas tramas, como as descritas nos parágrafos anteriores.
Reinado de Terror (Terror in a Texas Town, Joseph H. Lewis, 1958), é uma variaçãointeressante desses temas. Temos novamente dois bandidos que se conhecem de longa data: um deles (interpretado por Sebastian Cabot) se tornou magnata, o outro (Nedrick Young) segue pistoleiro. O primeiro, sabendo haver petróleo em um lugarejo, contrata o segundo para expulsar os pequenos proprietários da região. O empresário já possui vantagens em relação aos camponeses (incluindo a documentação fajuta, porém legalizada, que lhe confere a posse daquelas terras), mas nem por isso abre mão da violência. Assassinatos e a influência político-judiciária são mobilizados de forma coordenada, sem incompatibilidade essencial.
Reinado de Terror (1958) de Joseph H. Lewis)
Enquanto um dos malfeitores vive no conforto, o outro, ainda fora-da-lei, sofre de uma condição frequente entre a mão-de-obra: sequelas físicas e psicológicas associadas ao desgaste ocupacional. Nada disso o impede, contudo, de seguir exercendo a sua função.
Já o herói (Sterling Hayden) é, atipicamente, um baleeiro sueco, filho de uma das vítimas. Note-se que o imigrante escandinavo é um coadjuvante habitual nos westerns[1], retratado como simplório e otimista, um estrangeiro ideal (e não-racializado), que confia nas promessas da América legalista. Esse vínculo entre o protagonista e o estereótipo é bem explorado em Terror in Texas Town: o personagem de Hayden procura as vias legais como forma de resolução dos conflitos ao invés de recorrer às armas de fogo, enfrentando cada agressão com um corajoso estoicismo. Mesmo no embate final, inevitável, prefere o velho arpão ao revólver, rejeitando a estrutura simbólica proposta pelo inimigo. Em outro desvio da situação mais típica, não confronta sozinho o algoz, mas marcha acompanhado pelos demais posseiros.
Uma manobra recorrente do discurso oficial é tentar isolar no passado as injustiças e as suas consequências. O cinema é um dos vetores desse falseamento, mas uma análise atenta demonstra como até mesmo o faroeste, considerado o gênero mitificador por excelência, possui uma notável abertura para as tensões da História, mesmo quando trabalha para reprimi-las, especialmente quando trabalha para reprimi-las. Joseph H. Lewis, encenando um roteiro escrito (mas não assinado) por Dalton Trumbo[2], amplifica ao máximo essa potencialidade que não é, contudo, um corpo estranho nesse tipo de filme.
Finalizando, vale lembrar que se alguns conflitos históricos compõem diretamente o material da trama, outros subsistem enquanto conexões latentes com o mundo extra-ficcional. Reinado de Terror é assombrado por pelo menos dois espectros: o primeiro é que esse enredo de despossessão violenta se passa no Texas, anexado pelos EUA poucas décadas antes da narrativa, e um território indígena antes de integrar os dois estados coloniais. Não por acaso, a família mais vitimizada ao longo do filme é justamente mexicana. O segundo é a exploração do petróleo como estopim de um morticínio, algo que conecta o tempo diegético, o ano de produção de 1958 e, evidentemente, 2025, vide o horror que ronda a região equatoriana no momento em que escrevo este texto.
Agradecimentos a Pedro e Gabriela pela paciência.
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[1] Cabe a ressalva de que boa parte do que abordei ao longo do texto não é exclusividades dos faroestes na época da Hollywood Clássica, também podendo ser observadas em outros gêneros, mesmo que suas interações saturadas ocorram nos bangue-bangues.
[2] Em 58, Dalton Trumbo, já estava proscrito havia mais de dez anos pelo macarthismo. Àquela altura, Joseph H. Lewis já havia decidido se aposentar e somente assim pôde assumir a direção sem medo de repercussões para sua carreira. Tanto Nedrick Young quanto Sterling Hayden carregavam estigmas advindos da perseguição anticomunista.
Uma gama considerável de estudiosos se debruçaram sobre a relação do discurso, poder e valor, indo de Foucault e Agamben até teóricos e curadores com ênfase no cinema como Tom Gunning e Henri Langlois. As definições que remetem aos casos que serão citados nas próximas páginas certamente são as de Foucault: “é uma produção coletiva e histórica, portanto anônima, que na maior parte do tempo trabalha em silêncio, dando sentido ao que dizemos e fazemos” e de Gunning e seu estudo de relações diretas com a imagem e espetáculo a partir do cinema de atrações. Em rápida apresentação, a Universidade de Chicago relaciona o trabalho de Gunning com “problemas de estilo e interpretação de filmes, história do cinema e cultura cinematográfica”. Portanto, partindo da ideia que toda prática social tem discurso – questão posteriormente refutada por Fairclough -, o anonimato e os “problemas de interpretação de filmes” têm seu apogeu no senso coletivo fantasmagórico das redes sociais ou da busca por aprovação de nicho a partir de um espetáculo simples quando o que se deteriora, na verdade, é a experiência individual com o filme em si.
Se voltarmos aos primórdios da relação filme-público, notaremos o enraizamento na submissão do público pelas reações viscerais indo do medo à violência quando falamos de um primeiro encontro com a estrutura de exibição. O mais emblemático exemplo é o do susto na chegada do trem em L’Arrivée du Train dos irmãos Lumière em 1896. Mais tarde, com variações destes sentidos e linguagens usados por Sergei Eisenstein que pavimentaram a montagem das atrações, junto à mudança para o cinema narrativo em D.W Griffith e a chegada do cinema sonoro mudam a relação do público e os filmes. Com o passar dos anos e mudanças radicais de comportamento através das guerras, da revolução industrial e o avanço tecnológico apontam para outras formas de consumo, da consolidação como indústria até ao VHS. Já a chegada da Internet beneficia a construção de uma cinefilia sem limites através das trocas de arquivo e informações em fóruns. Concomitantemente, câmeras digitais ganharam acesso democratizado – na medida do possível – e novos cineastas construíram filmografias que invariavelmente usam até hoje os meios digitais como melhor alternativa de divulgação. Se os fóruns ajudam na troca e proliferação de arquivos, as redes sociais ganharam contornos de poder que implodiram o real. É necessário lembrar que juízes e soldados não trabalham com a subjetividade e que discurso está enraizado em suas intenções.
Pulo para hoje, 2025, ao citar dois eventos muito importantes para o cinema brasileiro, cada um à sua forma e impacto particular: a 28ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes e a indicação de Ainda Estou Aqui (Walter Salles, 2024) ao Oscar em três categorias – incluindo a de melhor filme. A começar pelo segundo evento pois este é o mais recente: Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro como melhor atriz e ascendeu. Aparições nos programas de TV americanos foram frequentes na mesma medida que nas redes sociais todo tipo de meme era criado para enaltecer o filme e a performance de Torres. O clima otimista não foi o bastante. Era necessária uma atitude que chamasse para si (o usuário) o frenesi – talvez a epítome da função do Twitter (ou X) nos últimos anos.
O clima era de “Copa do Mundo” e funcionou de forma pragmática: o “motim” não era mais a favor do filme, mas sim para derrubar seus concorrentes. Aquele que se mostrou vulnerável para um ataque foi Emília Perez (Jacques Audiard, 2024) seja por escolhas profissionais questionáveis de Audiard e, posteriormente, pelas declarações preconceituosas de Karla Sofía Gascon, uma das estrelas do filme, encontradas em seu extinto perfil no Twitter. O filme logo caiu nas cotações ao prêmio. Gascon, primeira mulher trans indicada ao prêmio de melhor atriz neutralizou este grande feito e após a vitória do filme de Walter Salles ironizou o feito com um vídeo da comemoração do público brasileiro durante o carnaval em Curitiba.
Durante a transmissão, a onda do cancelamento ia e vinha enquanto o resultado mais esperado da noite não chegava – Adrien Brody, Sean Baker e Kieran Culkin não saíram incólumes de seus discursos de agradecimento. Enquanto estes três homens deram brecha para questionar algumas de suas falas, o mais pesado dos julgamentos estava destinado a uma mulher que simplesmente exerceu seu trabalho de atriz – e venceu. Mikey Madison, protagonista de Anora (Sean Baker, 2024) em questão de horas foi alvo de misoginia deliberada e não era mais atriz e sim uma prostituta segundo sua página no Wikipedia – posteriormente foi comprovado que tal alteração foi feita por um IP brasileiro. O comportamento é anacrônico e bélico, e, acima de tudo, fundamentalista, que aposta no triunfalismo de um avatar, um número em um aplicativo ou uma corrente comportamental semelhante às reuniões de condomínio. Ironicamente, um comportamento espelhado ao dos intolerantes.
Mikey Madison: página adulterada no Wikipedia.
Todos os discursos de defesa a Torres ou Demi Moore por A Substância (Coralie Fargeat, 2024) caíam num ponto cego: o da comparação entre personagens. Diminuir o trabalho de Madison, que viveu uma prostituta, sugerindo assim a impossibilidade de um aprofundamento maior que as personagens mais cotadas, transparecem ideias muito preocupantes de quem estava militando (vale reforçar a diferença entre “torcer”) há meses por um filme. Deste ponto saem acusações de etarismo, xenofobia enquanto um apedrejamento a Anora (e consequentemente a Madison, sem separar a pessoa de seu trabalho) acontecia. Enquanto você lê este texto provavelmente já esqueceu dos indicados a melhor filme no Oscar de 2025 e Madison não está mais no alvo. Os quadros são trocados rapidamente – não há tempo para discuti-los, há uma nova polêmica correndo agora para o uso de uma postura professoral em prol de uma verdade absoluta – a presença fantasmagórica de um veredito sobre o tema em discussão é de mais-valia que a extensão de um assunto em comunidade e que existam discordâncias, variantes e novas informações para construções e reconstruções de discursos e opiniões. O ódio é o espetáculo.
Cabe aqui uma observação a respeito à defesa popular do filme de Walter Salles: um apedrejamento virtual ao crítico Raul Arthuso que considerou o filme mediano – a julgar pela sua cotação na rede Letterboxd – diminuindo seu trabalho como crítico e professor, pois um “profissional que se preze é obrigado a gostar do filme que coloca o cinema brasileiro no holofote”, diz um deles. O holofote americano, vale frisar. Arthuso, que escreve para a Folha de São Paulo, recebeu um “texto resposta” de outro crítico. Apesar de uma tradição que envolve trocas de correspondências entre críticos, cineastas e filósofos, é importante mencionar que jornais têm por costume publicar um texto positivo e outro negativo a respeito de grandes lançamentos há muitos anos – em tempos digitais é ainda mais fácil que estes textos caminhem juntos, mas o direito de resposta está mais para uma colisão e reinvidicação pela defesa de algo que não foi feito por quem o escreveu.
O carinho da torcida para quem não defendeu “Ainda Estou Aqui”. “My way or the highway”
A quem interessa encaixotar morais e sentidos sem considerar a subjetividade de um filme?
Não menos importante, a Mostra de Cinema de Tiradentes deixa mais explícita como a reflexão e percepção está embutida num calvinismo em troca de um senso de pertencimento e afirmação que invariavelmente criam certo prazer – e que sempre estará relacionado ao perigo da insuficiência. Considero uma grande aposta curatorial a lista de longas-metragens selecionados este ano para a mostra Aurora e Olhos Livres a partir da questão “Que cinema é esse?”.
Filmes como Um Minuto é uma eternidade para quem está sofrendo, (Fábio Rogério e Wesley Pereira Castro, 2025) Kickflip (Lucca Filippin, 2025) e As Muitas Mortes de Antônio Parreiras, (Lucas Parente, 2024) para citar alguns, andam numa linha de risco necessária para se fazer cinema no Brasil. De baixo orçamento, feito onde se dá, com suporte de amigos e familiares, reinventando o espaço filmado e criando signos a partir do que há por perto. Não falarei do meu filme que esteve no mesmo programa, ainda que ele entre no mesmo recorte de alta vulnerabilidade para um engessamento argumentativo. Volto a citar os três filmes acima como exemplo. Um Minuto…é uma penosa luta por algum tipo de alívio. O pênis de seu protagonista e diretor, Wesley, aparece diversas vezes. Para urinar, para gozar e se exibir. Alívio para borrar o que seus olhos veem senão filmes e livros. O argumento lido por alguns críticos nas redes sociais é de ser um filme fálico. Kickflip, um filme suicida e entediado, sujo, propositalmente jogado na sarjeta, feito por adolescentes que estão no exato momento de fazer o que é filmado é resumido por suas cenas mais extremas como a competição de ingestão de marshmellow que enoja aos mais conservadores. Já Antônio Parreiras virou um problema estético: o bichano-símbolo do filme não é de verdade. Seus personagens não são naturalistas; é um filme distante. Me pergunto o que há de errado nessas três abordagens. Goste ou não delas.
Umminutoéumaeternidadeparaquemestásofrendo(2025)
Abro um parêntese muito pessoal aqui: este tipo de comportamento/visão/julgamento lembra demais os tempos em que fui atendente de uma locadora. Boa parte dos clientes era mais velha e bem rica (arrisco dizer que hoje são bolsonaristas). Nesta função eu tinha que esclarecer, muitas vezes, sobre “o que era” o filme X ou Y. O capital nos coloca nesta posição de “explicar” e o escapismo e o prazer falam mais alto para muitos na hora de ver um filme. Na mesma medida o efeito manada fez certos filmes serem procurados nas prateleiras e hoje temos termômetros de qualidade a partir do tempo de aplausos ou “debandadas” do público em uma sessão. Enfim. O destino destas ações é a indulgência. O prazer de quem vê. Um identificação ou uma brecha para se reafirmar enquanto as camadas dos filmes são ignoradas.
De certo que estamos numa dicotomia preocupante quando falamos de visão e moral quando se vale somente da frontalidade pictórica e do próprio ego que aponta o que está na tela como reacionário, fálico, nojento, etc. O prazer de esmagar o que já é esmagado por toda sua história, indo da Cinédia ao fim do Ministério da Cultura por Jair Bolsonaro, é, no mínimo, assustador.
A proposta inicial é a do debate e que a organização da Mostra faz muito bem, mas se o detalhe que nenhuma trajetória será de acertos somente é esquecida e que a resposta é inquisitora, o que há para fazer? Não há diretor com filmografia irretocável, filmes perfeitos ou festivais sem filmes ruins – ainda que tudo isso, também, seja subjetivo. A pergunta é feita para identificar o cinema e não a quem ofende, tampouco quem o faz.
O que ganha o cinema brasileiro se o movimento institucional é o de debate sobre a produção, os meios, os destinos se a interdição externa suporta regras à obediência a um certo cinema que necessariamente precisa ser direto, naturalista, contemporâneo – ou melhor, “urgente”? Talvez nem mesmo estes adjetivos funcionem mais ao público que chega hoje. Se o cinema brasileiro precisar de ser emissor da autoindulgência por duas horas, sem usar a invenção, reinvenção, adaptação e, principalmente, as entranhas, chegaremos ao ponto de vermos a tela sem a necessidade de imersão. Aí sim chegaremos aos holofotes da indústria, pois voltaremos à submissão. Obrigado àqueles que escolheram provocar de alguma forma e aos que apostam no incômodo.