Loin de Manhattan, de Jean-Claude Biett: De paisagens naïves e pinturas in loco

Por Luiz Soares Júnior

“Certamente, se falamos de máscaras, é necessário antes pensar que elas dissimulam faces”.

George Steiner, Real presences: is there anything in what we say?

“Pour saisir la verité, il fault jouer la comédie!”

Albert Camus citado por Paul Vecchiali na epígrafe de Femmes femmes (1975)

Canyons paisagísticos foram a situação essencial (cadre, décor, eixo de câmera, e é claro pv) daquela gesta clássica por excelência do western; a panorâmica, tropo elementar do sub species, mimetiza o olhar do pioneiro sobre as extensões a percorrer e as tribos a abater, da distância do canyon-loggia-stand; aferia-se topograficamente os entes que a cavalgada armada se incumbiria de amealhar, pois foi segundo a Bild metafísica da perspectiva de Alberti que o cinema clássico conheceu o mundo: representatio. De alguma maneira, podemos pensar que o in loco de suas investidas tópicas, telúricas – fiquemos no western como paradigma respectivamente de Bild-representatio topográfica e loco-nunc telúrica, reflexão e ação coordenadas segundo uma mesma vontade de potência onívora- foi a máscara de um projeto totalitário de possessão do ser aí (da-sein) pelo pensamento, que de Aristóteles a Hegel e de Hegel a Griffith e Anthony Mann foi Una; e avancemos mais um tanto: a julgar pela relevância da panorâmica no western clássico e pela preeminência do ponto de vista ‘plongée de Deus’ a que o cowboy se identificava das alturas de seus desfiladeiros de eleição, a  stylo mortuária que vimos em ação no projeto filialmente moderno da nouvelle vague já experimentava seus tentáculos de apreensão do mundo pela representação no seio do cinema clássico: não apenas o portrait de uma experiência, mas um experimento-experienciado na tela. 

O Bonitzer de Decadrages, Daney, Biette, Deleuze e Schefer já haviam, aliás, nos alertado que a ‘janela para o mundo’ clássica projetava menos o mundo como conjunto de fenômenos e relações fenomênicas que se dão para o homem do que como um cosmo urdido, entalhado, estruturado pelos asseclas do próprio homem. E quais seriam estes? Proporção, simetria, causalidade, Arché e teleologia, por exemplo; How green was my valley (Ford), Only angels have wings (Hawks), High tension (Dwan) já nasceram infectados pelo selo da pata de Cain do Logos, dívida para com a linguagem que Biette, falando de Eyes wide shut de Kubrick(!), designava com a lapidar fórmula La distance post-morten est son nombre d’or.1 Os clássicos, porém – razão da suspeição ideológica da Cahiers maoísta para com suas obras -, nunca revelaram enquanto tal este déficit para com o significante, preferindo antes rejubilar o espectador com a jouissance da identificação supostamente mimética e secretamente metafísica da “janela com o mundo”: les mots et les choses, les mots sont les choses.

Em 1982, ao final desta história, reencontramos talvez o seu começo sem porém sair do lugar. Acalmem-se, que já me explico e retifico. O plano final de Loin de Manhattan, filme realizado pelo supracitado Jean-Claude Biette em 1982 no cadre de produção da Diagonale de Paul Vecchiali- empresa de cinema que para mim nos deu nossos mais consequentes, ponderados, ruseiros espécimes de cinema tardio- realiza o prodígio de sincretizar estas trajetórias que historiadores do cinema preguiçosos ou lenientes haviam nos acostumado a julgar opostas e mesmo irreconciliáveis: de Pais (clássicos) ou de Filhos (modernos). Sonia Saviange, que se decide a abandonar o seu ‘mundinho’ diletante, pequeno-burguês de marchands e consumidores de arte para finalmente experimentar uma paixão por um artista clássico, desses que pintam paisagens que carregam na alma e que antes preferem a companhia dos campos de miosótis que dos homens in vitro, demasiado credores do julgamento: sim, desses que pintam paisagens in loco, que ainda acreditam na identificação entre aquilo que é e aquilo que se representa, como um dia os clássicos…e Biette nos dá um plano genialmente sintético, tinto de ironia crepuscular para ilustrar este imbróglio genealógico; la Saviange abandona o ‘jardim de Versailles em miniatura’ que é o décor central de deambulações do mundinho ‘tardio’ e, enfim neo-clássica, toma um revelador atalho para reencontrar o campo de miosótis onde seu amado pinta óleos fidedignos à obra da Natura: ela desaparece detrás de um muro pintado com uma natureza-morta um tanto mais do que naïve, com sua indefectível janela (para o mundo) enleada por trepadeiras e rés de mato ralo; da linguagem não se foge, foi-nos ensinado dos rabinos de Hilel a Hölderlin, mas os artistas tardios experimentaram-experienciaram com particular acuidade este espinho na carne que, como o de São Paulo, foi obra daqueles que chegaram tarde demais, uma vez que a Infinitude da Presença ficara com a Promessa dos profetas da Israel pretérita.

Sim, uma natureza-morta…para introduzir esta blague final, onde os neo-clássicos são desmascarados da forma mais classicamente nonchalante deste mundo, Biette dá-nos uma crônica leggera, cheia de piparotes humorísticos, poses e perfis fecit de ‘ plano sequência, luz natural e locação”, cinema de ação cerrado por onipresença da fala- variamente divertida como meditativa sibilina, ‘rugosa tartamuda proletária’ (Lemoine, saído das Belas maneiras de Guiguet) ou ‘cínica-lapidar-bourgeoise’(Delahaye, Bouvet e Bouvet) como oracular-rêverie-diva (Laura Betti)-, atenta às paisagens como aos homens presentes mas infiltrados pelos jogos de linguagem (a assinatura bietteana por excelência, aliás), contracampos de desaparições e substituições mèlierianas, e discurso  ainda, como paisagens e cachorros a nos assistir assistindo…Longe de Manhattan é um filme festivamente idiossincrático, modulado pela impressionante empreinte de e documentado pela féerie elementar, cujo paradigma foi dado pelo Aroseur arrosé, de que o espetáculo mais fascinante da vida consiste em ver alguém chegar ou partir do campo, e que o novelesco mais digno de ser encapsulado em um portrait ( de conjunto) cinematográfico consiste na captação das reverberações mediúnicas destas chegadas e partidas, vagas estas que o discurso, talvez a empreinte de primordial, cristaliza exemplarmente, como raccorda ao mais-que-perfeito do imaginário e ao pretérito imperfeito da rememoração. Mas sistematizemos um itinerário tão prenhe de bifurcações, gioco exuberante onde a secreta dívida clássica para com o Logos se revela mais brincante, criticamente fascinante como fascinantemente conhecedora. 

Van Gogh dizia em uma carta ao fiel Théo que queria pintar cafés onde houvessem sido cometidos crimes; o gouache negro mercurial da paleta de Van Gogh já é suficientemente conhecido para que me perca em digressões impressivas aqui, mas o que devemos reter é que René Dimanche, o pintor de quem se fala frequente, obsessivamente em Longe de Manhattan– centro manifesto e ocluso de todas as interlocuções do filme, seu leitmotif e moto perpétuo-, se considerarmos para fitos esquemáticos o pintor dos girassóis como um expressionista, seria o anti-Van Gogh. René, por exemplo, recusa de maneira atrabiliária que críticos e la Saviange (aspirante a discípula e sedutora ocasional) interpretem seu silêncio criativo de 8 anos em termos existenciais, passionais, ‘efeito de uma desilusão amorosa que lhe ocasionou este bloqueio terrível”. Não; Dimanche não é expressionista, romântico, devedor de ‘casos’, estudos de caracteres e inspirações; ele é um artista classicista, e isto, de Wörringer a Heidegger significa uma arte que exprime mundo (paradigma clássico ühr: Giotto; paradigma neo-clássico-moderno, com quem podemos identificar Dimanche: Cézanne). Mais precisamente, de que mundo se trata? Certamente não aqueles com que aprendemos, desde meados dos 1800, a  identificar a obra: o mundo interior, Ego imanente ou transcendental, pático lírico ou patológico, “To be or not to be” ou “Je est un Autre”, de que a obra é a expletiva manifestação; trata-se antes daquele mundo ‘Logos da res’ que, de Fídias a Michelangelo, de Michelangelo a Rafael, de Rafael a Corot, de Corot a Courbet e de Courbet aos impressionistas frequentou a pintura como seu objeto privilegiado de punctum aurático: a paisagem. Mas não começamos o filme com as montanhas (sim, esta é a atual fase de Dimanche) ‘naturatas’, e sim com estes monumentos naturans (processuais, históricos) com que os homens se apoderaram da Cidade, disseminando seus possessivos índexes de presença sobre seu planalto escarpado, aliás como ontem as caravanas dos westerns pioneiros: é um terraço de onde se veem terraços, varandas, telhados pontiagudos e varais endomingados; percebem o sentido da analogia com que comecei este texto? dos canyons de desfiladeiros do western às coberturas da burguesia aisée, temos esta mesma distância de apreensão totalizante- sim, uma Bild de-, para quem os entes se dispõem em um circuito de meios para obter fins (e o Fim ürh: o segredo de Dimanche, como ontem o sangue Comanche); tardios, porém, aqui tudo deve ser trivialmente elíptico, ‘smooth mas de arestas aceradas’ pelo corte em stacatto: exatamente, esta é a maniera deste neo-clássico de ser tardio: incisões, mas no seio do marasmo hebdomadário; rupturas de tom, mas emasculadas pela digressão casual; intempestivos raccords, porém da ordem dos significantes, já que estamos diante de um filme clássico americano, além de uma sonatina francesa, afinal:  ainda somos clássicos, pois elegantes (“O classicismo é uma arte da elegância”, Jean Renoir). 

Paulette Bouvet, mãe de Christian (nosso crítico obcecado em conseguir uma entrevista com Dimanche e ator do mesmo nome) conversam, mas ela também pinta ocasionalmente, entretida em reproduzir talvez a curva em L da chaminé; e Biette, sagaz sem alarde como ruseiro sem máscara estará sempre cá, ainda lá para flagrar o maquiavelismo sinuosamente felino de Chistian em telefonar, providenciando ‘ficções’ e pessoas para chegar a Dimanche, mas igualmente bocejar em dó reticente e exercitar os dedos dos pés em um suntuoso close de metacarpos convulsos pela irresistível coceira; ainda retoma-se a mãe, e num contracampo fulgurante, que sem dúvida surgiu da revisão na Cinemateca daqueles tantos filmes em que Mèliès interpretou o Diabo, reaparecem ambos com outros traje ( cor de roupa, enquadramento, talhe de), papo outro e casualidade ‘chá das cinco’, apenas para ao cabo de minuto tudo retomar-se em Dimanche, ‘como se nada’. A chegada de Sonia Saviange à cobertura, diva ataráxica de perfil angelical- physique du rôle adequado à sua função primeira no filme de musa e isca neo-clássicas de Dimanche- será carnivoramente intensificada por uma citação do Modot em L’âge d’or: Christian devora as mãos untuosas da Melusina envelhecida. 

Mas permanecemos ‘smooth and soft’, pois nada deve abalar o pace fluido de Biette senão as turvas pinceladas da stylo do próprio Biette, sempre compensadas no próximo contracampo por uma retomada do pace regular, basso continuo de calmaria descontraída. Este será o movimento serpenteante de todo o filme: imprevisto e concertante, necessário e ondulante, retamente fatal, de curvilínea embocadura; um metrônomo corrigido pela graça ática tão francesa! Biette nunca nos deixará deduzir ou depreender um sentido estável para o filme porque haverá sempre no itinerário de Longe de Manhattan fiapos e estilhaços de gestos, conversações pegas no último minuto, trama canora de pássaros e espessura de fá imprevisto de mulher para impedir a cristalização do filme em uma Summa orgânica, e sobretudo fechada: como os melhores espécimes do cinema tardio de  que tenho notícia (Corps à coeur, Une sale histoire de sardines, Das nuvens à resistência, Les cinéphiles, trilogia folle de Rivette e Out 1, Love streams, a obra de Monteiro e o Godard de Passion e depois), Longe de Manhattan antes  flutua e reverbera que fixa e ordena: estratos de ( histórias do cinema, tropos, inflexões de atuação), jamais inteiramente integrados, jamais exatamente estabilizados pela soberania autocrática do auteur (aliás, um auteur.…?) Lembram-se do texto panegírico a Rohmer (mas também a Straub, Griffith, Pagnol), A borboleta de Griffith? “Os maiores momentos dos filmes de Rohmer são menos aqueles onde ele desenvolve sua acuidade psicológica única (…) do que aqueles em que capta, para além da linguagem falada, nos rostos mudos, nos olhares, no espaço, na natureza, o movimento quase invisível do mundo”.

Sim, o ‘movimento invisível do mundo’ é este contexto generoso de presença que farfalha, irisa e ondula os movimentos dos homens e das palavras em Longe de Manhattan: cachorros que nos contemplam partir, efeitos sem causa evidente e palavras sem nexo flagrante, ao vento outonal de uma festa que finou-se antes do apogeu, além deste ultra-close gourmandise do pé de Bouvet são, por exemplo, alguns dos espécimes que nos acompanham pelo itinerário do film in progress; mas esta onipresença do mundo também comparece tematicamente, por exemplo quando daquela misteriosa cena em que Saviange, pé avanti no caminho da clareira e do Dimanche entusiasmado por ‘flagrá-la’ in loco e pé atrás com a enervante possibilidade de que “tenha alguém nos seguindo”, reconcilia-se enfim com seu próprio passo ao ouvir a resposta do pintor: “Sim, o mundo está cheio de presenças; vento, luz”…mas será que ouvi bem? Rebobino o vídeo e rejubilo-me a confirmar que René também se interessa por pássaros: sim, um filme cheio de andorinhas e scherzi de Schubert. 

Quando Biette, no texto sobre Rohmer, evoca-nos o ‘movimento invisível do mundo’, não lhes parece também um elogio enviesado a, respectivamente, Helena Blavatsky e Jacques Tourneur? Exato: de médiuns. O melhor de Biette é, como no melhor de Tourneur e de Rohmer, questão de mediunidade; mas para fazer justiça à ‘letra’ do filme, pensemos mais apropriadamente segundo a metáfora musical que é devida ao musicista Biette, e elejamos como o metrônomo de tudo a figura do interstício cromático, se auscultarmos com atenção o diapasão de sua montagem impressionista, feito de prolongamentos quietistas e intrusões vertiginosas, como o belicoso vento noturno numa maré feita para a placidez da manhã; se Biette, em um judicioso texto sobre o Bassin de John Wayne de João César Monteiro, falava com enfático de Revelação num certo Teatro do plano 3, o découpage de Longe de Manhattan invoca-nos antes a musicalidade, entrecortada e oscilante, da sequência, pois os planos do filme aspiram menos à autonomia antinômica do coup que à sua integração devaneante num espiral de minutos; reparem bem ( como ouçam): Longe de Manhattan é uma tempestuosa sinfonia de Bruckner – chiados de cigarras, volutas de Haydn, sombras e passos e frases soltas – , finamente retrabalhada para caber em uma sonatina de Busoni; aliás, precisamente lembram-se de ouvir Bach rearranjado por Busoni? Sim, tantos temas e variações de catedrais sempiternas, agora ‘reenquadrados’ em um terceto camerístico para salões de chá burguês: Biette, o miniaturista (arte tardia novamente: Paradjanov relendo os vitrais-Summa medievos segundo escrínios infinitamente pequenos ‘palma da mão e lente de celular’, em A cor da romã). 

Esta não será a única duplicidade- no caso, cromática- do filme; ao longo de Longe de Manhattan (antes  dizia-se, e bem: arcabouço) há a sua difração em uma dupla embocadura serial: antes de tudo, a linha causal ‘melodramática, mise en scène e cadre’ do Complot ( aqui, para abordar Dimanche e saber a razão de seu silêncio); mas esta será sempre percutida e tamisada pela linha ‘casual intempestiva ‘plano sequência e locação’ – sim, repito-me, como no Parto de Mozart -, do fá imprevisto de mulher, do ‘chá das cinco’ e do passeio das sete; lembremo-nos, para este propósito ilustrativo, da extraordinária cena em que Bouvet  finalmente desce de sua cobertura ‘de Alberti’ e tenta convencer Saviange a seduzir o pintor para, a qualquer custo, descobrir  a razão de sua inatividade de oito anos. Reparem neste plano (captura acima) arguto, ardiloso em que o mascaramento da personagem de Saviange, que nos furta o rosto neste eixo ligeiramente enviesado, abre o filme  a uma insuspeita vertigem hermenêutica; thrillers de suspense, investigação sigilosa, sugerido terror se deixam inervar por este rosto que se nega; é pelo minimalismo genial de Biette (leitor da litote clássica, em situação agora completamente dessaturada de aura, casual-jornalística) que o espectador, co-partícipe suis, penetra no filme; mas em um mesmo movimento – e isto vocês não podem ver, mas perturba-nos e enleva-nos em off no filme -, o som direto nos presentifica uma tarde semi-chuvosa nos arredores de Paris depois do chá das cinco tomado em porcelanas de Sèvres! são bandos de andorinhas à espreita desses personagens exilados de thriller, e o plano recende ainda a fio elétrico desencapado de ruas ensopadas da chuva recente; na calçada, ressoam os passos de um homem de rosto turvo (gim barato? dívidas a resgatar?) e expedito beat de lord decaído, que conversara com Sonia minuto antes, distanciando-se para pegar o próximo trem; e não ‘podem ver’ que na vizinhança de ambos uma schubertiana invicta encontra um haydniano apóstata (dedica-se a Pergolesi, quando bêbado) para falar de Mozart? 

Eu gostaria francamente de ler o que Proust, fenomenólogo  eminente, teria a nos dizer sobre este plano extraordinário, infra e supra percutido por vastidão de impressões fugidias mas não menos incrustadas em nossa perceptivo reminiscente; sabemos que o fora de campo, segundo uma função herdada por exemplo da metonímia literária, pode presentificar-se por efração fantasmagórica no plano, da dimensão ominosa-cognitiva da câmera que se aproxima dos ombros da vítima no filme de terror (para” avisar ao espectador” do perigo iminente) à chã-desconstrutivista de um movimento abrupto de câmera onde se revela malgré lui a presença da câmera e artefatos de filmagem; mas o que Biette consegue ‘sem conseguir aqui’ (é esta precisamente a sua tática encoberta: fascinantemente crítica como vice-versa) é realmente extraordinário: a vida geral e a particular da Cidade, corpo movente e fremente de sinais; a presença dos ares molhados de chuva e dos passos crepitantes de pressa, como os stacatti sussurrados da schubertiana invicta.

Perdoem-me deter-me um tanto nesta sequência, mas o sonso de tudo merece uma inspeção com detida lupa; Bouvet fala para Saviange (toca-lhe o rosto com este expedito-descontraído que é o gesto mascarado por excelência do primeiro Biette, mas aqui intumescido com o mau-humor sestroso tão típico de Bouvet) que ela “deve tirar esta mancha negra do olho; ele não deve gostar daquilo, porque é o tipo de coisa que deve indispor o homem”; para leitores ‘do espírito’, devemos poder ler que Dimanche, pintor classicista, não deve suportar traço, franja, rusga de expressionismo na cara de sua iminente discípula: deve ficar claro para nós que o expressionismo é lido aqui como índex de máscara, e logo Dimanche reconheceria sob o angelical ataráxico de Saviange a máscara de uma demoníaca Musidora, que o queria devorar! é assim em Longe de  Manhattan; grandes, decisivas questões do ser e do pensamento roçam a epiderme do mundo, mas esta deve permanecer intacta para que o fascínio ainda seja possível: não se pode aprofundar nada (elogio clássico da superfície, naturalmente) porque é o Mistério do que é que merece ser preservado; tudo aparece-nos de relance, ‘casual-descontraído’ e como se nada; não lhes parece ser este um método ideal para reconciliar a Jouissance clássica e o melancólico para-si moderno? Tudo saber, mas como se nada, brincando ainda? Para mim, sim.

Eu falei de Mistério? Perto do final – vocês se lembram, antes da festa funebremente irônica onde se celebra um livro escrito sobre Dimanche -, Biette nos oferece um monólogo revelador, pois se dá num plano médio onde dialogam com Sonia Saviange, perdida em si mesma, as folhas e o vento ao fundo;  ela não está mais maquiada, travestida (Musidora?), ‘encenada’, , ou pelo menos esta máscara não lhe cola mais na pele, pois abandonou o thriller  “Segredo de René Dimanche” e acedeu à vita contemplativa (aliás, praticada fervorosamente por alguns artistas a que admiramos), vita esta a que se dedicou com empenho grande parte do cinema moderno; como dizem aqueles pastores protestantes, que se fazem de mais ingênuos do que são para um público realmente ingênuo, Sonia agora é uma Outra, pois a palavra (o gesto do pintor) a revelou para si mesma. E em que consiste esta Revelação? Numa ascese mística. Ela narra para Bouvet (que a escuta, num contracampo de close violentíssimo, onde nada se vê senão o nariz atrabiliário do investigador) que enquanto Dimanche desenhava sentiu-se num “deserto, num deserto de nuvens, onde se perdeu; (…)”; e que deste deserto de nuvens, onde nada via senão a  si mesma, ela talvez tenha visto o que Dimanche via; e que neste mesmo deserto de nuvens onde tudo, menos este mundo, se via, Sonia viu o seu mundo passado: o seu marido coronel, com quem tinha sido tão bonito viver, antes que se tornasse atroz viver; lembrou-se de seu filho morto, de seu filho que era tudo para ela…sim, neste deserto de nuvens, onde também vivia (e via; sobretudo via) René Dimanche, ela também pôde ver. Bouvet abruptamente a interrompe, encimado por aquele close violador, onde a função policialesca do conceito sobre aquilo que é (como? o que? O Segredo de Dimanche!) se figura literalmente: “Você deve esquecer tudo isto; tudo é passado; o seu presente é outro; haverá outros amores; haverá outras histórias”. Mas para a experiência de Presença que Sonia como Dimanche tiveram não existe Presença senão Una; a Eterna? Conhecemos o final desta história; Sonia deixa para trás o circuitinho ‘diletante-esclarecido’ dos marchands, dos jornalistas bisbilhoteiros e dos conceitos inefáveis, que se despedem de nós naquela festinha desolada em que se cruzam (sem nada significar), extravios de passos trôpegos e réplicas sem replicante; acompanhada por esta panorâmica ‘de parada’ com que Biette (assistente de Pasolini, herdeiro de Tourneur e de Rossellini) nos delineia o percurso de uma conversão, Sonia Saviange abandona o in extremis mundano da supra-significação pelo in extremis naturans da epifania; sabemos, como lembrado no início deste texto, da ruse da natureza-morta pintada, e que portanto a crença íntegra, como o raccord diretivo-causal, não são mais totalmente possíveis; o mundo e seus entes, porém, permanecem aí como no Princípio, e o cinema, arte da Revelação, estará também para atestar a empreinte cabal desta presença.

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