LIÇÕES DE HISTÓRIA

Por Felipe Leal

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    É possível arriscar que para Hou Hsiao-Hsien –, que aqui logo chamaremos de ‘HHH’, e não mais por razões de abreviação e sinalização textuais do que pelo que será suscitado enquanto marca indelével e incandescente de autoria, a pequena memória enquanto produtora de história(s) – a luz está para seu cinema assim como a madeleine molhada de chá está para Proust: basta um encontro para que as funções vitais se espraiem em uma multiplicidade de estilhaços, para que o músculo palpite diferente, em busca não de um elo temporal perdido, mas de uma incidência em gradiente luminoso que possa salvaguardar a liberdade como um dia se olhou para fotografias para além da descartabilidade incessante do presente; cristalizar os sucessivos roubos da possibilidade de erigir ou semear futuros diante do país que não pôde respirar livre após a ocupação japonesa, logo recaiu num subsequente governo opressor sob a bandeira continental sangrenta da China. E se o toque do elemento-função, aqui, não fará reverberar as camadas involuntárias daquilo que já foi, ao menos não pelos mesmos princípios, o motivo se esconde neste início de filme que é um duplo nascimento: da luz, que retorna à casa depois de um apagão (e dá nome ao filho) e que não é para Hou senão a matéria bruta, inicial, do mundo.

Pelos mesmos princípios, não, mas decerto pela mesma “aquosidade” dos meios, das técnicas: do epicentro-objeto, Proust extrai as ondas do rememorar infectado, embriagado do exercício imaginativo de uma prosa que serpenteia pelo irresgatável, tornando-o o tempo vivo do amor, o fruto do imaginável; em A Cidade das Tristezas (1989), para a memória daqueles quatro irmãos e agregados destroçados pela guerra, HHH, se já não havia afirmado por obra (testemunho) e palavra a imperiosidade de seu fluxo observatório, distanciado, um laissez-être peculiarmente interativo, vem aqui densificar os gestos, dotá-los com a propriedade de capturar o movimento histórico para fazer o social pesar sobre o particular, e deste, somente deste, mostrar os frágeis fios do tempo que, à conjunção e entrelaçar dos milhões, compõem a verdade da memória, quase literalmente incrustando a equação física em tela: massa sobre um volume: à exceção da imagem violentamente frontal de Hinome, escancarada referência a Ozu, num instante precioso em que só a “rostidade” do cinema pode imaginar a tristeza de todos os mortos, desaparecidos e loucos, todos os planos são a equalização, a trazida a um mesmo grau de todos os ocupantes de um espaço e da extensividade do mesmo.

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O som irrompe de quíntuplas direções e imanta os microacontecimentos – é simultaneamente que os colegas discutirão desemprego, mentalidades escravocratas e intelectualidade e que o par fará confissões um ao outro sobre a surdez dele e sereias de vozes encantatórias, mas também que a melodia doce emanando do toca-discos e que perturba o ar e as folhas esvoaçando através da janela possa não tanto produzir quanto tornar momentaneamente uma dádiva a percepção do enamoramento, quando num corte da montagem um giro de perspectiva fará da luz um novo padrão sobre o rosto e a camisa simples abotoada, uma dobradiça de claros e escuros que culminam no corpo alegre ao fazer mímicas para se expressar. Sabemos que ela se apaixonou, ali, não pelo olhar de Wen-ching, pelas idiossincrasias de seu movimento ou pelo que ele havia escrito no bloco de notas, mas, antes, pelo todo, o momento que é-sendo pela mobilização de todas as suas partes. Não é por acaso, muito menos por autoria tornada palatável pela firmeza e abismo da proposição, que HHH dirá do seu interesse no cinema que este não é o de relatar histórias, mas fabricar ambientes, ou antes ambiências: é no espaço e no que fazemos dele/com ele que os fantasmas se amontoam, que as memórias se dispersam e onde povoam. Que a literatura tenha não só popularizado, como também facultado que lançássemos olhares sobre objetos antes talvez “quaisquer” – os espelhos, as baratas, os subsolos e os duplos, as neblinas e as mansões –, parece curioso que a escolha cênica (moral!) de Hou não consiga não retirar do mundo, também, certos véus, descobrir a tessitura transparente da História.

Ora, há aí quase uma teoria da espacialidade posta em prática, mas cujo requerimento único é o de deter-se, ficar à espreita, pacientar, deslizar o globo ocular, apalpar, com ele, a descamação do fluxo mnemônico já há muito desimpedido das tolices lineares. James Benning já o disse muito bem e sua carga expoente de dedicação, em matéria fílmica e visão-do-mundo, desdobra e reflete o léxico que vem a inseri-lo na santidade disto que veio a se chamar de slow cinema: não interessa de quê, nem para quê: o aprendizado é uma função do tempo. É preciso, em outras palavras, dar, ao tempo, tempo – para que algo advenha em forma de uma apreensão sobre o que se vê, se ouve, se cheira, se sente no epitélio. Mas, se as perguntas refutadas sinalizam à situação espectatorial esse momento indivisível e de certo modo obsceno de co-criação, “co-dotação” do sentido (é angustiante, terrível, sentir-se observado observando algo), aquela que pode interessar é sobre o porquê: por que se aprende no tempo?, e sua resposta não poderia ter se aferroado sobre uma superfície mais triste na filmografia de Hou do que a de A Cidade das Tristezas. Ainda que Flores de Xangai (1998) ou A Assassina (2015) re-explodam as potências sensitivas e pictóricas em estilísticas tão assombrosas quanto, é somente aqui que ainda um outro elemento basilar – a narrativa – se afeiçoa dos movimentos fugidios e sinuosos da memória.

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Nos flashbacks, há uma redução dupla, pois que eles são menos que explicativos ou próximos de qualquer apregoação causal-justificativa: o retorno ao passado de Hou é antipedagógico e também, fator curioso, a princípio só parece reiterar aquilo que as cartas, anotações e palavras fazem emergir. Mas, vê-se logo, o princípio e a resultante mais uma vez se igualam: é só por poder ser livre por natureza, na circunscrição daquela obra, que a memória flutua livremente nesse desbotado melancólico pelos espaços e gestos mortos. E quem assim o promulgou, que a memória não servisse que a si mesma? Aqueles que esculpem ou os que se enamoram do tempo, tornam-se ondulantemente passivos em relação a ele, sua passagem se estirando em interconectividades indispensáveis? Quem, não tivesse partido das orelhas atentas ao acariciar do vento e dos olhos deslumbrados e cerrados a contemplar, chegaria a transmitir a história do mundo que está nas coisas, não mais tão-somente nas fortificações ou nos milhões em campo, mas também nas lâmpadas e fotografias, bonecas e cartas?

Porque é isto: é por isto mesmo que Hou insiste no rádio, aquele ambiente de uma coletividade imóvel a auscultar a macroestrutura que a atinge, nos planos que multiplicam as bordas e instauram subnúcleos, inserem passantes, participantes, o mundo em energia cinética e em sotaques até então imperceptíveis pelas suas nuances; a bem da verdade, Hou é Wen-ching enquanto pensamento cristalizado, nem que por um breve momento, e ching é toda a epítome do cinema do primeiro, por reverso: ao preparar-se para tirar a fotografia que veio talvez a imortalizar a cena mais impiedosa e memorável da obra, aquela que inegavelmente canaliza toda a tristeza cabível aos massacrados num instantâneo posado de casal e filho, ching detém-se diante do contracampo antes de ir sentar-se com a família, mãos à câmera, olhos “na cena”, como se ao mesmo tempo lançasse um último olhar à felicidade e antevisse que aquela captura os salvaria da morte, aliás: do esquecimento.  A dedicatória é a tarefa básica do cineasta e que vem ali a ser transmutada num momento eminentemente heroico, a junção de todas as figuras ao mesmo tempo, num só lugar, sentimento fechado temporariamente – mas só àqueles que param para contemplar e lembrar, imaginar e antever.

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