A vida entre espelhos
Bem diferente das imagens comuns de uma Amazônia verde e em certo estado de dádiva ou prenhez eterna, com rios de dimensões martítimas, Enquanto o Céu Não Me Espera apresenta uma vida ribeirinha cinza e claustrofóbica, apesar de toda amplitude, e progressivamente esmagada entre dois espelhos: o céu sobre a cabeça e o Rio Negro sob os pés.
Apostando num futuro de cheias cada vez mais agressivas para a região, o filme nos apresenta uma família que vive num palafita no interior do Amazonas, tirando sustento do cultivando juta, planta que se adapta melhor a ambiente tropicais úmidos e da qual se retira uma fibra que pode receber diversos usos, principalmente têxteis. Neste sentido, a realidade de Vicente – interpretado por Irandhir Santos – mesmo neste futuro distópico, acaba não diferindo muito das histórias de antigos soldados da borracha de séculos antes. Escravizado pela própria insalubridade da relação entre trabalho e território, e principalmente pelas dívidas assumidas com um patrão cuja autoridade mais parece a de um capataz, Vicente absorve a brutalidade como modo de navegação social e na construção deste núcleo de relações o filme de Christiane Garcia remete a um clássico do cinema nortista sobre a dureza da vida ribeirinha: Brutos Inocentes (1973), dirigido por Líbero Luxardo, com Zózimo Bubul no papel principal.
No contraponto dessa brutalidade encontramos Rita (muito bem interpretada por Priscila Vilela), esposa de Vicente e matriarca da família em cuja casa acompanhamos a subida do rio como transposição imagética das tensões sociais do contexto ribeirinho amazônico, mas também da história desse casal. Mesmo com todas as dificuldades em manter a família nutrida e segura, Vicente teima em permanecer na casa enquanto Rita acredita que a solução seja partir.
Na esteira do adensamento desse conflito, o filme entrega diversas imagens da água como espelho e figura ligada ao transbordar de sentimentos, concentrados especialmente em Rita, personagem que já percebeu a queda do céu e não suporta mais a condição sufocante daquela vida submersa em melancolia. Vale destacar essa figuração da água como condição melancólica numa metáfora da atitude calada e ensimesmada do caboclo amazônida, lindamente representadas aqui.
Ainda que seja louvável a coragem técnica para realização de um filme praticamente gravado dentro d’água, a mercê dos humores do Rio Negro e da grandiosidade da natureza amazônica, para uma história que pensa o futuro da região, suas escolhas formais expressam a tradição de um cinema antigo e masculino, apesar da direção feminina de Christiane Garcia. A maior expressão dessas escolhas está na cena do estupro marital, que não possui função narrativa para além da reiteração de uma crueldade que se quer naturalizar, ao confundir a crueza do entorno à dureza de uma alma ribeirinha, que não encontra reflexo numa observação atenta. Mais um filme que escolhe repercurtir imagens de estupro, numa chave que parece buscar respostas para a estupidez humana, mas acaba esbarrando na reafirmação da cultura da violência sexual e de gênero.
Que os espelhos da realidade amazônica possam se valer das múltiplas possibilidades da fabulação para seguir contando histórias sobre essa região tão plural quanto desconhecida, trabalhando a delicadeza das epistemologias caboclas e apontando para um futuro em que séculos de manejo de vida fluvial possam gerar imagens prenhes de futuros possíveis.
Visto na Mostra Competitiva do 57o Festival de Brasília