por Felipe Leal
É comum que vejamos se atribuírem às lentes concernidas com os “mundos à margem do humano” a categoria de POÉTICAS, ou ainda de SEMIDOCUMENTAIS, como se a desvinculação das tramas do desenvolvimento das emoções-ação, cujo centro é o indivíduo, significasse, como no mundo medieval, uma inclinação lunática aos pormenores astrais ou elementais capaz de desviar o olhar e o pensamento (e consequentemente a alma e o raciocínio social) em direção aos signos embriagados do mundo fenomênico. Mas um cineasta preocupado com a chuva, com a confecção de sinfonias geométricas citadinas, com a microscopia das algas ou com a população mística das neblinas não está mais próximo de um “cineasta experimental” porque a sequência de suas relações com o filmado pressupõe um fio conceitual-sensorial que melhor o alocaria num museu, galeria ou festival documental.
Ainda que não neguemos que o cinema é arte massivamente atada ao desenrolar mais ou menos concreto de episódicas humanas, isto não significa que o empréstimo de seu olho ao que indivíduo algum (que não tenha intenções estritamente científicas) se debruça, modo comum, a contemplar, lhe confira um princípio “passivo”, de registro funcional-informativo, onde nas imagens moram os espécimes fantásticos, e nos espectadores a recepção antropológica-boquiaberta. As operações do close-up, do plano de longa duração, da câmera-xamânica (simulação da vista de animais), dos ângulos improváveis, gloriosos ou arriscados, alados, todas essas tecnologias pontífices ao mundo que não alcançamos podem, com efeito, ATRIBUIR UMA VIDA ao que se (a)credita ter autonomia, repulsões, necessidades, meios, aptidões, desejos por si só concentrados na selvageria de sua existência.
N’O Planeta Azul (Il Pianeta Azzurro, 1981), de Franco Piavoli e (sua mulher) Neria Poli, a hipótese de que haja uma AÇÃO DESEJANTE inerente às substâncias todas da Terra, seus animais, elementos, fenômenos físico-ou-químicos, suas horas, “acidentes”, ritmos e estações, faz do enquadramento desse “lugar onde o olho não para para olhar” uma prece ao querer metamórfico e autônomo dos viventes que são infinitamente mais populosos que nós, nesta Terra. Com uma sonoplastia psicodélica de bolhas espaçadas que logo nos mergulha num aquário epitelial em que tomadas oceânicas, close-ups de rochas sob a luz lunar ou de superfícies saturadamente safiras remetem à falsa imobilidade alienígena de tais submundos à vista comum, os diretores nos implantam um aviso de boas-vindas tão sentencial quanto àquele que figura no Inferno de Dante: (parafraseamo-lo) “Deixai todo o saber até aqui conhecido sobre as tecnologias de vida, vós que entrais na dimensão azul”.
Ainda mais impressionante que sua catalogação das maneiras de preservação, reprodução, invenção e entropia inerentes à multiplicidade arrebatadora de organismos (captadas como se um burburinho de vivacidade por ali percorresse, incitando micro-primaveras de fecundação e renascimento) é a semelhança que essas formas de vida se instalam no nosso reconhecimento de processos físicos intimamente ininterruptos à fisiologia humana, trazendo ao olho que tudo aquilo assiste em velocidade e sons selvagens um “entendimento” de fato menos racional que pelas entranhas, uma acoplagem da força natural (de satisfação à sua própria natureza-crescimento) à nova linguagem das forças de nossos órgãos e membros, cujas realidades sabemos cada vez mais sem a necessidade integral do alcance ocular.
Em outras palavras: o filme se passa TAMBÉM pela conexão-nascimento de outras faculdades de nosso corpo entre si. Filme-molecular.
O “azul” a que ele se refere é, ademais, o do encaixe misterioso que se tece entre uma semântica de desejos que modularão as propriedades analógicas de seus corpos no encontro do percurso à coisa que os magnetiza. Todos os seres que o casal filma estão em movimento de saciação, de devorar, na plena languidez que mais os caracteriza justamente por pulsarem numa caça vocal, espaçosa, aparecidos e indômitos. Como se a câmera assumisse o papel de “madrugada”, ou ainda de luar, fomentadora das delícias subcutâneas – é de se perguntar como muitas das intimidades foram alcançadas, mesmo com o zoom –, ritos de transações cifradas em seus movimentos mas claras em suas voluptuosas arquiteturas irrompem, os músculos e geometrias cantarolando um hábito quem sabe quase indecente, não porque contenha obscenidades, mas porque não lhe acontece dar vez a nada que seja de ordem pública, traduzível.
O corpo humano desvela boxeadores vulcões, como se expelisse gases involuntários que não são tão literais… mas antes contestações-contrações oriundas de habitantes nada coadjuvantes daquele interior. A tecelagem de bandos de minhocas entre folhagens demonstra curvaturas que advém de impulsos-choques capazes de lhes percorrerem o corpo inteiro, tão ondulantes e potentes quanto as curvaturas do mar. Aos 37 minutos., uma fileira altiva de patos desfila tranquilamente sob o sol, diante de uma bodega em qualquer interior italiano. 8 minutos depois, aquele bar, que servia de banco de prosas entre dois idosos, se transforma num relâmpago de encontros barulhentos entre camaradas, jogadores, amantes e políticos, e sob a noite e madrugada adiante os destinos se repetem e se diferenciam, engenhando histórias que são próteses incandescentes de seus heroísmos enquadradas pelo jorro de luz e vocalidades que os mantém bem-aventurados.
Os diretores se evadem de maneira inquietante da presença da câmera sobre a matéria-filmada, mesmo se cogitamos aquelas que, simulando no olho da lente um olho de peixe-morto, se entregam ao corpo estranho em “radicalidade”.
A câmera d’O Planeta Azul parece fazer parte do ar. Assume nível microbial. Pior: ela é o tempo. Assume uma estase cristalina, um retrato de certa eternidade, e simultaneamente demonstra ser o alimento que traz a voracidade inventiva ao corpo, à língua, às afinidades litúrgicas que o balanceiam com suas outras naturezas na transitoriedade. Não há, entretanto, adesão ao fanatismo hiper-criativo de uma mãe-gênese: a umidade do planeta água demonstra os suores, os escorregos, os uivos e lágrimas, os saboreares descontrolados, as excreções, emulsões protetoras, os ácidos e névoas – estes seres extravasam as emergências que conduzem ao casulo que os trará, em seguida, de volta a travessia à certa totalidade liberta. Seus líquidos podem assim o ser pois são como lamentos pela inteireza que os falta, ainda que sejam cindidos por uma pele traiçoeira, oposta à unidade que deveriam performar, membranosa demais para que sejam isolados.
O hermetismo atuante dessas orquestras à beira da luz, não solar, mas da razão que implicitamente afirma os objetos a que é necessário emprestar o olhar, prolifera “visões sem os olhos”, tatos que enxergam, equilíbrios feitos por ecolocalização (projeções sonoras que sobrevoam e são devolvidas ao emissor, anunciado distâncias estrategicamente), cotovelos que medem o impulso de escavação. Um corpo de poderes dentro, ou melhor, por toda a extensão do corpo põe em orgia as fantasias mutantes com que somente o gênero da ficção-científica ou da ação podiam sonhar. Quanto mais de perto se permite assistir à procissão dos membros díspares de nossos corpos (de habitantes do Azul), mais uma sazonalidade propícia à cada mistério por trás de tantas partes para tão pouco tempo assegura essa “assemblage” (montagem) de corporeidades empilhadas numa intenção de ser só. Somos mais quiméricos do que qualquer especismo possa separar.
A intensificação da sonoplastia quando nos deslocamentos rente aos olhos de sapos acasalando ou a centímetros do festim de uma aranha sobre sua libélula-presa, essa umidade das fusões, golpes e proporções que nos remontam ao “artístico” dessas peles e patas muito antes da arte “nascer” termina por cruzar de vez as barreiras da razão, reforçando a estridência mágica quase insegura deste cinema, posto que seus coaxares, zumbidos, grunhidos e pios ganham dimensão invasiva cada vez mais enlouquecedora ao espectador que não se disponha a ser rachado para deixar outras comunicações penetrarem seu campo de possíveis. Tudo o que a memória computa, afinal, a ela é instrumental.
Mesmo quando as cenas se deslocam das naturezas animais às climáticas, humanas ou domiciliares, o apreço à invasão dinâmica dessa força de assimilação entre sons, texturas, umidades e luminosidades cria fantasmáticas e povoamentos às matérias mais sonâmbulas ou esquecidas. Piavoli e Poli dão justa vida aos acúmulos catárticos de chuva sobre vidraças, desertos de poeira historiográfica, musgo, fungos gráficos, ferrugens esfomeadas, objetos abandonados de aura totêmica, uma estratificação de sobrevidas tão interativas entre si, que seus ressoares criam um “invisível visível”, uma clareza territorial mais vestigial e mais elétrica, mais extática e condutora que qualquer arsenal de fiação em curto-circuito.
Uma vida cogitada continuando muito além de nossa humana extinção fica perfeitamente plausível, mas melancólica, se não há quem as capture, buscando nelas o mínimo interferir. Um esplendor que somente nossa simulação astronauta pode abraçar: pois terá nos considerado (ficticiamente) estranhos a esta heterogeneidade (contraditoriamente homogênea) azul.